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Renan Albuquerque Weberson Grizoste Organizadores Estudos Clássicos e Humanísticos & Amazonidades - vol. 2
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Renan AlbuquerqueWeberson Grizoste

Organizadores

Estudos Clássicos e Humanísticos &

Amazonidades - vol. 2

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Comitê Científico - Alexa CulturalPresidente

Yvone Dias Avelino (PUC/SP)Vice-presidente

Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)Membros

Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid/Espanha)Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)

Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)

Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)

Cristian Farias Martins (UFAM – Benjamin Constant/AM)Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica)

Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina) Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)

Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)

Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)

Heloisa Helena Corrêa (UFAM – Manaus/AM)José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)

Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia) Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)

Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP)Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)

Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)

Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)

Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)

María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina) Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)

Michel Justamand (UFAM – Benjamin Constant/AM)Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)

Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)

Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)

Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)

Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)

Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

Conselho editorial da obraAna Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)

Leandro Infantini (UAlg – Portugal) Patrícia Bayod Donatti (LAP/UNICAMP – Campinas)Patrícia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)

Rita Juliana Poloni (UFPEL – Pelotas/RS)

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Embu das Artes - SP2018

Renan AlbuquerqueWeberson Grizoste

Organizadores

Estudos Clássicos e Humanísticos &

Amazonidades - vol. 2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

CONSELHO EDITORIAL

PresidenteHenrique dos Santos Pereira

MembrosAntônio Carlos Witkoski

Domingos Sávio Nunes de LimaEdleno Silva de Moura

Elizabeth Ferreira CartaxoSpartaco Astolfi Filho

Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUALouis Marmoz Université de Versailles

Antônio Cattani UFRGSAlfredo Bosi USP

Arminda Mourão Botelho UfamSpartacus Astolfi Ufam

Boaventura Sousa Santos Universidade de CoimbraBernard Emery Université Stendhal-Grenoble 3

Cesar Barreira UFCConceição Almeira UFRN

Edgard de Assis Carvalho PUC/SPGabriel Conh USP

Gerusa Ferreira PUC/SPJosé Vicente Tavares UFRGS

José Paulo Netto UFRJPaulo Emílio FGV/RJ

Élide Rugai Bastos UnicampRenan Freitas Pinto Ufam

Renato Ortiz UnicampRosa Ester Rossini USPRenato Tribuzy Ufam

ReitorSylvio Mário Puga Ferreira

Vice-ReitorJacob Moysés Cohen

EditorSérgio Augusto Freire de Souza

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AgradecimentosUniversidade do Estado do Amazonas (UEA)

Centro de Ensino Superior de Parintins (CESP)Universidade Federal do Amazonas (UFAM)Faculdade de Informação e Comunicação (FIC)

ApoioPrograma de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCCom/UFAM)

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (NEPAM)Laboratório de Editoração Digital do Amazonas (LEDA)

FomentoConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM)

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C371t CRUZ T, S,A319t ALBUQUERQUE, R.G431w GRIZOSTE, W.

Estudos clássicos e humanísticos & amazonidades - vol. 2 , Renan Albuquerque e Weberson Grizoste, Alexa Cultural: São Paulo, 2018

14x21cm - 218 páginas

ISBN - 978-85-5467-016-01. Antropologia - 2. Letras - 3. Estudos clássicos e humanísticos - 4, Amazonas - I. Índice - II Bibliografia

‘ CDD - 300

Índices para catálogo sistemático:

LetrasEsrtudos Clássicos e Humanísticos

AmazonasAntropologia

Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emi-

tidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da editora e dos organizadores.

Alexa Cultural Ltda Rua Henrique Franchini, 256

Embú das Artes/SP - CEP: [email protected]@terra.com.brwww.alexacultural.com.br

www.alexaloja.com

Editora da Universidade Federal do AmazonasAvenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, n.

6200 - Coroado I, Manaus/AMCampus Universitário Senador Arthur Virgilio

Filho, Centro de Convivência – Setor NorteFone: (92) 3305-4291 e 3305-4290E-mail: [email protected]

© by Alexa CulturalDireção

Yuri Amaro LangermansNathasha Amaro Langermans

EditorKarel Langermans

CapaK Langer

Revisão TécnicaMichel Justamend e Renan Albuquerque

Editoração EletrônicaAlexa Cultural

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

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PrefácioSobre convergências entre letras clássicas e

interdisciplinaridades

Eis aqui a segunda organização do livro Estudos Clássicos e Humanísticos & Amazonidades, o terceiro e mais robusto resultado oriundo da II Jornada de Estudos Clássicos e Humanísticos de Parintins, um encontro acadêmico com ampla persistência interdisciplinar. Trata-se de uma seleta de textos científicos escritos por palestrantes, membros da comissão científica, participantes da programação e organizadores do evento.

O livro é também um consórcio entre nós, professores Weberson Grizoste (doutor, docente/UEA) e Renan Albuquerque (pós-doutor, docente/Ufam), empenhados na interdisciplinaridade e no diálogo entre as duas maiores instituições de Ensino Superior do Amazonas presentes em Parintins, interior do Estado do Amazonas. Esta segunda organização consolida uma parceria que mostrou êxito na primeira edição, quando lançamos nos formatos e-book e im-presso nosso trabalho de então.

A parte inicial do livro está contida de sistematicamente temas dos Estudos Clássicos e da Recepção dos Clássicos na Posteridade. Buscou-se, por-quanto, acompanhar uma linearidade de acordo com os temas dos proponentes e verificou-se uma parte política e outra literária.

O primeiro texto, Retórica Clássica: Definições e Percurso, do Mestre Fran-cisco Lima (Ufam), inicia-se nas origens da retórica aristotélica até chegar na Roma de Quintiliano. Segue-se o ensaio sobre os moldes da política e da demo-cracia grega a partir de A constituição dos Atenienses de Pseudo-Xenofonte e os seus reflexos na modernidade, de autoria da Doutora Priscilla Leite e Lívia Silva. A política também é o tema do terceiro ensaio. Nesta feita, o doutorando Alexsan-dro Medeiros traça as relações entre política, ética e felicidade a partir da visão teleológica de Aristóteles. O texto a seguir trata do mito como tradução cultural e foi escrito pela Doutora Thais Flores Nogueira Diniz e por Patricia Christina dos Reis.

O ensaio do Doutor Pedro Martins abre uma sessão de crítica literária propriamente dita – numa primeira parte os clássicos greco-romanos, e numa

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segunda parte a Estética da Recepção. Aqui o autor analisa a Hybris em Os Persas de Ésquilo. Abordando ainda a tragédia grega um outro ensaio dissertará sobre a questão do Pharmakós e o estenderá até Sêneca, em Roma. Nos ensaios a seguir chegamos ao Arcadismo brasileiro, dois textos que têm por base A Muhuraida investigam influências clássicas, nomeadamente de Virgílio, em Wilkens. O pe-núltimo texto dessa sessão faz um caminho épico, surge de Roma, passa pela Inglaterra e chega ao Brasil, no período do Romantismo, e investe sobre as in-fluências de Plauto em Shakespeare e daí em Gonçalves Dias.

Na sequência, o mestrando Isaías Santos e o professor Renan Albu-querque fazem destaque acerca do princípio da obediência na clássica obra Enei-da, em correlação a questões espirituais contidas nas escrituras da bíblia cristã. São destacadas proposituras implicadas a partir desse importante livro da anti-guidade e das histórias de vida de personagens testamentários que enfrentaram agruras em suas existências. O artigo teve por embasamento teórico a herme-nêutica das letras grego-latinas e a exegese bíblica, posto que entendeu-se Eneida não somente mediante seus pressupostos de fundação de Roma, mas também das tragédias que um homem teve que enfrentar quando está predestinado pelos deuses.

No artigo Uma leitura comparativa..., da Doutora Francisca de Lourdes Louro, é indicada a problemática de autores redentores da literatura, que traba-lham questões sociais e dão a leitores em geral a visão do universo em que vivem pessoas abonadas ou não. A autora sugere uma importante questão, apontada na ideia de que, por mais trabalho e esforço que se faça em relação a algo, o re-sultado é sempre a penosa atitude diante da inevitabilidade da vida.O entremeio da proposta no paper aparece no comparativo entre as obras estudadas pela via literária.

Arcângelo Ferreira e Suely Galúcio descrevem em seu capítulo o re-sultado parcial de um subprojeto desenvolvido a partir do projeto inscrito no Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC) do curso de História da Univer-sidade do Estado do Amazonas do Centro de Estudos Superiores de Parintins, denominado Fontes para uma nova História de Parintins-AM (1890-1954). A expe-riência é rica e nos mostra o quanto textos documentais podem ser base para pesquisas de porte.

O texto seguinte, que analisa o livro Tykuã e a origem da Anunciação, do indígena Elias Yaguakãg, foi escrito por Renan Albuquerque, Iza Reis Gomes

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Ortiz, Eliane Auxiliadora Pereira e Elizabeth Siel. O quarteto autoral almejou inferir sobre a cosmologia indígena em busca de interpretações sobre a história e cultura do povo Maraguá. Via o teórico Vladimir Propp, pretendeu-se apresentar como a narrativa ameríndia foi construída pelo olhar da linguagem literária.

Em suma, cabe destacar que tais escritos estão diretamente relacio-nados com a interdisciplinaridade proposta na II Jornada. No livro, fruto dos debates, apostamos que o bom relacionamento científico entre as áreas de Letras e Comunicação Social, com aportes da História e das Ciências Sociais, seja pro-vidente e gere novas perspectivas de pesquisa. Com isso, e por fim, enfatizamos nosso compromisso com a publicação científica deste segundo volume, sobre-tudo em tempos difíceis os quais vivemos no contexto do amparo à pesquisa no Brasil.

Boa sorte e boa leitura.

Weberson Grizoste e Renan AlbuquerqueMarço de 2018

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Sumário

PREFÁCIOSOBRE CONVERGÊNCIAS ENTRE LETRAS CLÁSSICAS E

INTERDISCIPLINARIDADESWeberson Grizoste e Renan Albuquerque

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ESTUDOS CLÁSSICOS E HUMANÍSTICOS- 13 –

RETÓRICA CLÁSSICA: DEFINIÇÕES E PERCURSOFrancisco de Assis Costa de Lima

- 15 –

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E DEMOCRACIA: A VISÃO DO POVO EM A CONSTITUIÇÃO DOS ATENIENSES E ALGUMAS REFLEXÕES

PARA O PRESENTEPriscilla Gontijo Leite, Lívia Maria da Silva

- 35 –

A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA, ÉTICA E FELICIDADE, DE ACORDO COM A VISÃO TELEOLÓGICA DE ARISTÓTELES

Alexsandro Melo Medeiros- 53 –

MYTH AS CULTURAL TRANSLATION Thaïs Flores Nogueira Diniz, Patricia Christina dos Reis

- 65 –

DÁRIO E A UNIVERSALIZAÇÃO DO CONCEITO DE HYBRIS EM OS PERSAS DE ÉSQUILO. UNIVERSAL PARA QUEM?

Pedro Martins- 73 –

O PHARMAKÓS: A QUESTÃO DO SACRIFÍCIO VOLUNTÁRIO NA MEDÉIA DE EURÍPEDES E DE SÊNECA

Ruth Serrão da Silva, Weberson Fernandes Grizoste - 85 –

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OS PRINCÍPIOS DA MUHURAIDAWeberson Fernandes Grizoste

- 95 –

ESTUDOS SOBRE A MUHURAIDA E SUAS RAÍZES CLÁSSICAS Maria de Nazaré Carvalho da Silva

- 117 –

UM OLHAR RECEPTIVO NA DRAMATURGIA SOBRE A ALIENAÇÃO E A PERDA DA RAZÃO: PLAUTO, SHAKESPEARE E GONÇALVES

DIAS Nívia Maria Messias Ribeiro

- 139 –

COMPARAÇÕES HERMENÊUTICAS SOBRE O PRINCÍPIO DA OBE-DIÊNCIA EM ENEIAS, ABRAÃO E JÓ

Isaías dos Santos, Renan Albuquerque - 151 –

AMAZONIDADES- 167 –

COSMOLOGIA E ESTRUTURA NARRATIVA EM TYKUÃ E A ORIGEM DA ANUNCIAÇÃO, DO ESCRITOR INDÍGENA ELIAS YAGUAKÃG

Renan Albuquerque, Iza Reis Gomes Ortiz, Eliane Auxiliadora Pereira, Elizabeth Siel Souza

- 169 -

UMA LEITURA COMPARATIVA DOS ROMANCES A SELVA, DE FERREI-RA DE CASTRO E O HÓSPEDE DE JOB, DE JOSÉ CARDOSO PIRES

Francisca de Lourdes Souza Louro- 191 –

“DOUTOR MARCOS SE VOCE É PROMOTOR É ATÉ HOJE, SEU JUDEU SEM VERGONHA”: NARRATIVA DE UM CRIME, OCORRIDO

NA CIDADE DE PARINTINS EM 1938Suely Mascarenhas Galúcio, Arcângelo da Silva Ferreira

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Estudos Clássicos e Humanísticos

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RETÓRICA CLÁSSICA: DEFINIÇÕES E PERCURSO

Francisco de Assis Costa de Lima1

Quintiliano (Marcus Fabius Quintilianus (30 – 96 d. C.)), em sua obra Institutio Oratoria (Educação do orador), apresenta-nos quatro definições repre-sentativas da retórica clássica: 1) a definição atribuída a Córax e Tísias, Górgias e Platão (a retórica como criadora de persuasão); 2) a de Aristóteles (a retórica como a faculdade de descobrir os meios possíveis de persuadir por qualquer modo); 3) a atribuída a Hermágoras de Temnos (retórica como a capacidade de falar bem no que diz respeito às questões públicas); 4) a dele próprio, Quintiliano (a retórica como scientia bene dicendi – a ciência do bem falar) (ALEXANDRE JÚNIOR, in ARISTÓTELES, 1998, p. 15). Todas as definições parecem apon-tar para o consenso de que a retórica visa à criação de discursos com finalidade persuasiva. Unificando os conceitos clássicos, Alexandre Júnior (in Aristóteles, 1998, p. 17) propõe a seguinte definição: “retórica é, pois, uma forma de comu-nicação, uma ciência que se ocupa dos princípios e técnicas de comunicação. Não de toda a comunicação, obviamente, mas daquela que tem fins persuasivos”. Parece-nos que a definição de retórica como ciência não soa muito adequada. O próprio vocábulo empregado por Aristóteles para designá-la, tékne (arte), a coloca em clara oposição com episteme (ciência). Varga (1995, p. 276) assevera que “A retórica não é uma ciência, mas um conjunto de técnicas que se trata de apren-der. A aprendizagem faz-se em certa ordem, e esta ordem é a da produção do discurso”. Discordamos, portanto, da definição proposta por Alexandre Júnior, especificamente quanto à atribuição de estatuto de ciência, a fim de respeitarmos a definição estabelecida pela retórica clássica, mas anuímos com ele quanto à sua finalidade estritamente persuasiva. Podemos dizer que a persuasão é a caracte-rística imanente da retórica. Cícero (de Orat., I, 31, 138) é categórico quanto a

1 É Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, área Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Amazonas (2017). Possui Especialização em Língua e Literatura Latina pela Universidade Federal do Amazonas (2006). É bacharel em Direito pela Faculdade Martha Falcão (2011) e graduação em Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Amazonas (1994). Ministrou a disciplina História e Formação da Língua e da Cultura Greco-Romana na Especialização em Estudos Clássicos da Universidade do Estado do Amazonas (2017).

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esse traço essencial da arte da eloquência: “o primeiro dever do orador é falar de modo adequado a persuadir2”.

RETÓRICA CLÁSSICA: ORIGENS E DESENVOLVIMENTODesde sua origem, de fato, a retórica tem a finalidade de convencer o

interlocutor por meio de técnicas persuasivas de comunicação. Reboul (2004, p. 2) explica que a origem da retórica, por volta de 465 a. C., na Sicília grega, está ligada a conflitos judiciários, uma vez que a arte nasce vinculada à necessidade de defesa jurídica dos cidadãos expropriados de seus bens por tiranos. Para auxiliar os litigantes na defesa de suas causas, Córax e seu discípulo Tísias publicaram uma série de regras procedimentais práticas, uma “arte oratória” (tekhnè rheto-rikè)3, uma espécie de manual didático com exemplos para quem quisesse recor-rer à justiça e sustentar em juízo uma tese com vistas a vencer o litígio.

Da Sicília, a retórica migra para Atenas, que rapidamente a adotou, promovendo um refinamento de suas técnicas para aplicação na esfera políti-ca – principalmente no desenvolvimento da democracia da polis grega, fundada nos debates populares para as decisões políticas – e também na esfera judiciária. Nesse contexto judiciário, vencia não a causa necessariamente mais justa, porém o argumento de persuasão mais eficiente defendido em juízo, o que permite a ilação de que a retórica argumenta não a partir do verdadeiro, mas do verossímil4 (REBOUL, 2004, p. 2).

Nessa primeira fase da retórica, destacaram-se os sofistas, mestres iti-nerantes que ensinavam a eloquência e a filosofia, entre os quais se encontram Górgias (485 - 380 a. C) e Protágoras (486 - 410 a. C). Cabe a Górgias a criação de uma retórica literária, que se utiliza de uma prosa eloquente, fundamentada no uso de figuras de palavras e de pensamento, com o fim de conquistar a plateia por meio da beleza discursiva, mas que não passava de uma prosa grandiloquente, apenas com finalidade estética, sem preocupação com a busca da verdade (RE-BOUL, 2004, p. 4-6). Protágoras, por sua vez, relativizará toda a possibilidade de conhecimento da verdade ao defender que “o homem é a medida de todas as

2 Primum oratoris officium est dicere ad persuadendum accomodate. Todas as traduções do latim para o português da são de nossa autoria, exceto os trechos relativos às obras Retórica a Herênio, cuja autoria da tradução se encontra indicada nas referências.3 Conforme Reboul (2004, p. 233), “Retórica, portanto, na origem é um adjetivo, que significava oratória. Com Aristóteles, a tekhnè rhétorikè tornar-se-á simplesmente rhétorikè, assim como hoje se diz lingüística”.4 Verossímil é o que é provável, o que parece verdadeiro sem sê-lo. “Segundo Aristóteles, só o verossímil é objeto de persuasão, não a verdade. A persuasão está a serviço da opinião. Nesse ponto Aristóteles se opõe radicalmente a seu professor Platão para quem a persuasão é um instrumento de exposição da verdade e da opinião verdadeira” (TRINGALI, 2014, p. 48).

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coisas”, inexistindo, portanto, uma verdade objetiva. Para Protágoras, “não existe a verdade em si, mas uma verdade de cada indivíduo” (REBOUL, 2004, p. 8).

Essa forma de pensar implicará consequências teleológicas funda-mentais para a retórica, pois, partindo da visão de que não havia uma verdade objetiva, mas apenas uma realidade provável, para os sofistas “a finalidade da retórica não é encontrar o verdadeiro, mas dominar através da palavra; ela já não está devotada ao saber, mas sim ao poder” (REBOUL, 2004, p. 9-10). Trata-se, assim, da primazia da eficácia sobre o verdadeiro e até mesmo sobre o verossí-mil, pois o que importa, nesse caso, é vencer pela palavra, auferir o sucesso na persuasão por meio da “aparência de lógica e do encanto do estilo” (REBOUL, 2004, p. 9).

Em seus diálogos, o filósofo grego Platão (427 – 347 a. C) combaterá duramente as ideias dos sofistas, os quais ele acusa de construírem uma falsa arte do discurso: “A autêntica arte do discurso, desvinculada do verdadeiro, não existe e não poderá jamais existir” (FEDRO, 260, apud REBOUL, 2004, p. 18). Em lugar dessa falsa retórica, Platão propõe uma retórica que realmente prepare o cidadão para falar e pensar, uma retórica que se funde na verdade e que busque a aprovação não das multidões, mas dos deuses, contudo a proposta do filósofo cria uma retórica a serviço da dialética, como mera expressão da filosofia, desti-tuída de autonomia (REBOUL, 2004, p. 19). Caberá a seu discípulo, Aristóteles, buscar conferir autonomia à retórica, sistematizando-a de forma rigorosa.

A RETÓRICA DE ARISTÓTELESAristóteles (384 – 322 a. C) tem o mérito de ser o primeiro a sistema-

tizar, na Antiguidade clássica, os estudos sobre os meios de persuasão, lançando o que se pode chamar de verdadeira pedra angular da teoria retórica. Importante observar, como acentua Corbett (1971, p. xi, apud Alexandre Júnior, in Aristóte-les, 1998, p. 12) que

A Rhetorica de Aristóteles não é o produto da mera idealização de princípios nascidos com e por ele convencionados para persuadir e convencer outras pessoas. É, sim, o produto da experiência consumada de hábeis oradores, a elaboração resultante da análise das suas estratégias, a codificação de precei-tos nascidos da experiência com o objetivo de ajudar outros a exercitarem-se correctamente nas técnicas de persuasão.

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Como preleciona Alexandre Júnior, (in Aristóteles 1998, p. 33), “A obra de Aristóteles é fundamental para a consolidação histórica da retórica, não só porque define e aclara a sua função, mas também porque estabelece as ca-tegorias indispensáveis à constituição do sistema retórico”. Dessa forma, claro está que Aristóteles não foi o criador da Retórica, mas organizou-a de tal forma, transformando-a “[...] num sistema, que seus sucessores completarão, mas sem modificar” (REBOUL, 2004, p. 43). Contudo, Aristóteles não apenas organizou a retórica, ele, sobretudo, inovou-a e, conforme Alexandre Júnior (in Aristóteles, 1998, p. 22),

A grande inovação de Aristóteles foi o lugar dado ao argumento lógico como elemento central na arte de persuasão. A sua Retórica é sobretudo uma re-tórica da prova, do raciocínio, do silogismo retórico, isto é, uma teoria da argumentação persuasiva. E uma das maiores qualidades reside no facto de ela ser uma técnica aplicável a qualquer assunto.

A sistematização promovida por Aristóteles divide a retórica em qua-tro partes, que representam as quatro fases de composição de um discurso a serem cumpridas pelo orador, se não quiser que seu discurso se torne vazio, ou desordenado, ou mal escrito, ou inaudível: a invenção (héuresis, em grego) – etapa na qual o orador empreende a busca de todos os argumentos e outros meios de persuasão relativos ao tema do discurso; a disposição (táxis) - fase em que o ora-dor organiza a apresentação das ideias, ordenando os argumentos em um plano de exposição de acordo com as estratégias de convencimento; a elocução (léxis) – etapa em que as ideias são transformadas em palavras escritas, ou seja, a fase de redação do discurso, incluindo aqui o estilo; a ação (hypócrisis) – o momento de enunciação efetiva do discurso, compreendendo todos os efeitos de voz, mímicas e gestos (REBOUL, 2004, p. 43-44)5.

Aristóteles (Retórica, 1355a) diz que existe um método que se ocupa das argumentações, ou seja, um método usado para construir a persuasão:

Ora, sendo evidente que o método artístico é o que se refere às provas por persuasão e que a prova por persuasão é uma espécie de demonstração (pois somos persuadidos sobretudo quando entendemos que algo está demonstra-do), que a demonstração retórica é o entimema e que este é, geralmente falan-

5 Em grego, cada fase é denominada, respectivamente, héuresis, táxis, léxis e hypócrisis. Os romanos, embora com a reconhecida influência grega, cuidaram de traduzir para o latim, criando, na retórica romana, as palavras correspondentes a cada etapa da construção discursiva: inventio, dispositio, elocutio e actio. Além disso, acrescentaram a essas fases a memoria, fase em que o orador procura aprender de cor e reter na memória os argumentos a serem usados.

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do, a mais decisiva de todas as provas por persuasão; que, enfim, o entimema é uma espécie de silogismo, e que é do silogismo em todas a suas variantes que se ocupa a dialética, no seu todo ou nalguma das suas partes, é igualmente evidente que quem melhor puder teorizar sobre as premissas – do que e como se produz um silogismo – também será o mais hábil em entimemas, porque sabe a que matérias se aplica o entimema e que diferenças este tem dos silogis-mos lógicos. Pois é próprio de uma mesma faculdade discernir o verdadeiro e o verossímel, já que os homens têm uma inclinação natural para a verdade e a maior parte das vezes a alcançam. E por isso, ser capaz de discernir sobre o plausível é ser igualmente capaz de discernir sobre a verdade6. (grifos nossos)

Por meio desse método, baseado em provas (pístis), chegamos à de-monstração (apódeixis), sobretudo a uma demonstração retórica (apódeixis retoriké), que é o entimema (enthímema), o qual, ao lado do exemplo (parádeigma), constitui a base dos recursos argumentativos próprios da retórica:

Mas no que toca à persuasão pela demonstração real ou aparente, assim como na dialética se dão a indução, o silogismo e o silogismo aparente, também na retórica acontece o mesmo. Pois o exemplo é uma indução, o entimema é um silogismo, e o entimema aparente é um silogismo aparente. Chamo entimema ao silogismo retórico e exemplo à indução retórica. E, para demonstrar, todos produzem provas por persuasão, quer recorrendo a exemplos quer a entime-mas, pois fora destes nada mais há. (Retórica, 1356b, grifos nossos)

A função da retórica, para o Estagirita7, é descobrir os meios ade-quados para o convencimento: “Entendemos por retórica a capacidade de des-cobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir” (Retórica, 1355b). Quando fala em “descobrir o que é adequado a cada caso”, Aristóteles está se referindo às provas de persuasão, as quais ele divide em átekhnai (não técnicas ou inartísticas) e éntekhnai (técnicas ou artísticas)8:

Das provas de persuasão, umas são próprias da arte retórica e outras não. Chamo de provas inartísticas a todas as que não são produzidas por nós, antes já existem: provas como testemunhos, confissões sob tortura, documentos escritos, e outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que se podem pre-

6 A tradução dos textos originais em grego da Retórica de Aristóteles para o português é de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Confrontamos essa tradução portuguesa com a tradução italiana, edição bilíngue grego-italiano, texto crítico, tradução e notas de Marco Dorati. Os dados relativos às duas obras se encontram nas referências.7 Aristóteles nasceu em Estagira, colônia jônica localizada na Macedônia, no norte da Grécia. Daí o adjetivo pátrio “Estagirita”, usado para referir-se ao filósofo grego. 8 As provas átekhnai (não técnicas), também chamadas de inartísticas ou extrínsecas, são as que não resultam da técnica retórica, pois já estão pré-constituídas; as provas éntekhnai (técnicas), também chamadas de artísticas ou intrínsecas, são aquelas que resultam de um trabalho técnico do orador, de criação, de descoberta, de invenção da arte retórica.

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parar pelo método e por nós próprios. De sorte que é necessário utilizar as primeiras, mas inventar as segundas. (Retórica, 1355b)

Na divisão proposta por Aristóteles, cabe ao orador descobrir, ou seja, inventar as provas técnicas (artísticas ou intrínsecas), pois as não técnicas (inartísticas ou extrínsecas) já existem, cabendo-lhe apenas utilizá-las, uma vez que são pré-constituídas. Observemos os verbos utilizados para uma e para outra prova: utilizar as provas não técnicas e inventar as provas técnicas. Assim, a seara específica de criação do orador – em que ele buscará construir uma demonstra-ção (apódeixis) persuasiva, utilizando-se de recursos argumentativos próprios da retórica (entimemas e exemplos) – concentra-se nas provas técnicas.

O Estagirita aduz que as provas de persuasão (pístis) residem no ethos, no pathos e no logos: “As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras no modo como se dis-põe o ouvinte; e outras, no próprio discurso pelo que este demonstra ou parece demonstrar” (Retórica, 1356a). Depois, o autor da Retórica explica como se obtém a persuasão por meio de cada um dos instrumentos:

Persuade-se pelo caráter (ethos) quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé [...] [...] Persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio (pathos) [...] [...] Persuade-se, enfim pelo discurso (logos) quando mostramos a verdade ou o que parece ser verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular” (Retórica, 1356a; inserções nossas entre parênteses).

Na concepção aristotélica, portanto, as provas técnicas (artísticas ou intrínsecas), ou seja, as provas que o orador precisa inventar, como instrumento de persuasão, compreendem: as provas éticas (ethos), provas patéticas (pathos) e provas lógicas (logos). O ethos constitui o caráter de que o orador deve se revestir para conquistar a confiança do auditório; o pathos é o conjunto de emoções, pai-xões e sentimentos que o discurso do orador deve despertar nos ouvintes; o logos é a dimensão racional do que é exposto no discurso (o raciocínio empregado no discurso). Temos, assim, dois meios de ordem afetiva (o ethos e o pathos) e um de ordem racional (o logos). (REBOUL, 2004, p. 47-48).

Primeiramente, trabalhando a prova ética, o orador há de se preocu-par em construir uma autoimagem moral que o habilite perante o público como

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alguém digno de confiança bem como a imagem de outra pessoa que faça parte da cena do discurso. Provamos, nesse caso, com base no caráter moral do orador que profere o discurso. Conforme Tringali (2014, p. 145)

As provas éticas se baseiam no valor ou desvalor de alguém, manifestado por seu caráter. Pode-se dizer que é o argumento baseado na caracterização moral de alguém. [...] A partir de Platão e de Catão se exige que o orador seja um perito na arte oratória e sobretudo que seja um homem honesto. A boa ou má imagem moral de alguém ajuda a persuadir.

As provas patéticas, por sua vez, resultam das emoções e das paixões que o orador consegue despertar nos ouvintes. Pathos designa, em grego, emoção, paixão. Utilizando-se de provas patéticas, o orador busca suscitar na audiência um estado psicológico permeado por emoções e paixões. Trata-se de um instru-mento de persuasão que apela para o coração e não para a razão. Como salienta Tringali (2014, p. 147), nesse caso:

O poder de coagir do discurso se mede pelo poder da afetividade. Em vez de convencer diretamente a razão, o orador comove o coração para obter o mesmo resultado. O orador modifica o estado de alma do ouvinte. Pela afe-tividade, se estabelece um poderoso vínculo entre orador e auditório. Nessa linha, a Retórica é psicagógica, pois cativa a mente e arrasta a vontade dos ouvintes, compelindo-os a agir.

Esses dois tipos de prova, a ética e a patética, são de ordem afeti-va, pois atuam na área emocional: a prova ética constrói as imagens de caráter, procurando transmitir credibilidade, a fim de conquistar adesão para sua tese; a prova patética desperta a emoção e a paixão nos ouvintes, buscando impelir o público à ação.

As provas lógicas, por outro lado, são de ordem racional, uma vez que se referem à argumentação propriamente dita. Por envolver o raciocínio lógico e persuasivo, a prova lógica constitui a parte mais importante da oratória (DA-YOUB, 2004, p. 16). Ressai da explicação de Aristóteles (1356b) que essas podem ser indutivas e dedutivas:

Mas no que que toca à persuasão pela demonstração real ou aparente, assim como na dialética se dão a indução, o silogismo e o silogismo aparente, tam-bém na retórica acontece o mesmo. Pois o exemplo é uma indução, o entime-ma é um silogismo, e o entimema aparente é um silogismo aparente. Chamo entimema ao silogismo retórico e exemplo à indução retórica. (grifos nossos)

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O exemplo é uma indução, porque, citando-se um caso particular, ocorrido no passado, pode-se persuadir o auditório de que assim também é o caso geral, a ocorrer no futuro; o entimema, sendo um tipo de silogismo, trata-se de um tipo de dedução típico da oratória que parte de premissas apenas veros-símeis, ou seja, prováveis (DAYOUB, 2004, p. 16). O Estagirita confere valor essencial às provas lógicas, uma vez que “[...] para demonstrar, todos produzem provas por persuasão, quer recorrendo a exemplos quer a entimemas, pois fora destes nada mais há” (Retórica, 1356b).

Ainda que dê destaque ao logos, o sistema retórico de Aristóteles pro-move a articulação entre os três instrumentos de persuasão: “privilegiando o logos em seu sistema retórico, Aristóteles articulou, em sua obra Arte Retórica, a argu-mentação (logos) às emoções (pathos) como princípio para a produção do caráter (ethos) do orador” (SACRAMENTO, 2009, p. 92).

Em outras palavras, significa dizer, como explica Pinto (2002, apud Ferragini, 2013, p. 42), que, “para Aristóteles, a técnica retórica está focada na mensagem, mas incorpora o lugar da prova ética (ethos - orador), o lugar da pro-va patética (pathos - auditório) e o lugar da prova lógica (logos - tese, mensagem propriamente dita)”.

A tarefa de encontrar os argumentos adequados pressupõe, nessa fase de inventio, a determinação do tipo de discurso que empreenderá, ou seja, do gênero discursivo adequado à situação. Nesse sentido, após definir os tipos de instrumentos de persuasão, Aristóteles apresenta os gêneros discursivos, dividin-do-os em três: o deliberativo (ou político), o judicial (ou judiciário ou forense) e o epidíctico (ou laudatório ou demonstrativo). Cada gênero discursivo vai compor-tar diferentes tipos de ouvintes (auditório), de atos e de finalidades. No discurso deliberativo, por exemplo, os ouvintes são membros de uma assembleia, os atos desenvolvidos são o aconselhamento ou a dissuasão e a finalidade é o convenien-te ou o prejudicial; no discurso judicial, o ouvinte é juiz, os atos desenvolvidos são a acusação e a defesa e a finalidade é chegar à comprovação do justo ou do injusto; no epidíctico, o ouvinte é o espectador, os atos desenvolvidos são o elogio ou a censura e a finalidade do discurso é o belo ou o feio (Retórica, 1358b). A cada gênero discursivo correspondem, também, segundo Aristóteles, tipos de argumentos a serem utilizados prevalentemente: no discurso deliberativo, usa-se o exemplo (indutivo); no judicial, emprega-se o entimema (dedutivo); no epidíc-tico, a amplificação (Retórica, 1368a).

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Reboul (2004, p. 47) nos apresenta uma excelente tabela síntese da teoria de Aristóteles a respeito dos gêneros discursivos, observando que “o mé-rito de Aristóteles foi mostrar que os discursos podem ser classificados segundo o auditório e segundo a finalidade”:

Os três gêneros discursivos

Auditório Tempo Ato Valores Argumentotipo

Judicial JuízesPassado

(fatos por julgar)

Acusar Defender

JustoInjusto

Entimema(dedutivo)

Deliberativo Assembleia Futuro AconselharDesaconselhar

ÚtilNocivo

Exemplo(indutivo)

Epidíctico Espectador Presente LouvarCensurar

NobreVil

Amplificação

Tabela 1 – gêneros discursivos na concepção de Aristóteles (REBOUL, 2004, p. 47)

Determinado o gênero do discurso, o orador deve achar os argumen-tos apropriados para seu discurso. Aristóteles (1396a) adverte que, antes de tudo, é necessário contar com argumentos pertinentes ao tema sobre o qual se vai falar e argumentar para poder tirar conclusões:

Primeiro, convém saber que o assunto sobre o qual se vai falar ou raciocinar – quer se trate de um silogismo político ou de outro gênero qualquer – tem necessariamente de contar com argumentos pertinentes, senão todos, pelo menos alguns; porque, se não dispomos deles, não teremos nada donde retirar uma conclusão.

Nessa tarefa de descobrir os argumentos, a retórica encontra como disciplina auxiliar a tópica, disciplina inventada por Aristóteles para achar e justi-ficar os argumentos (TRINGALI, 2014, p. 150-151). De fato, o Estagirita susten-ta que é indispensável selecionar argumentos inerentes ao discurso:

Por conseguinte, como parece que todos os oradores seguem este método nas suas demonstrações, quer os seus silogismos sejam mais rigorosos, ou mais brandos, (já que não argumentam a partir de todos os pressupostos, mas somente dos que são relevantes para cada caso), e como também já ficou dito nos Tópicos, é indispensável, antes de tudo, ter selecionado sobre cada assunto um conjunto de propostas acerca do que é possível e mais oportuno.

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Quanto às questões que surgem de improviso, a investigação deve seguir o mesmo método, atendendo não aos argumentos indeterminados, mas aos que são inerentes ao discurso, englobando o maior número possível e que estejam mais próximos do assunto em causa. (Retórica, 1396b, grifos nossos)

Aristóteles enumera no livro segundo da Retórica, de 1397a 1402a, trinta e oito tópicos (tópoi)9 a partir dos quais o orador pode extrair argumentos, entre os quais, podemos citar, por exemplo: a análise dos contrários; as flexões casuais semelhantes; as definições, os diferentes sentidos de uma palavra; o juízo sobre um caso idêntico, igual ou contrário; estabelecer ou refutar um argumento por meio do exagero etc.

Esses tópoi constituem, na retórica aristotélica, as fontes de argumen-tação, ou seja, ponto de partida para a construção da argumentação retórica. São como uma lista de argumentos que os oradores têm à sua disposição para erigir um discurso. Tringali (2014, p. 151) elucida o conceito de lugares-comuns ad litteram:

Lugares-comuns retóricos são nomes que representam conceitos de onde se tiram argumentos que valem para muitas circunstâncias. [...] Assim, quando, na Retórica Antiga, se queria provar alguma coisa, recorria-se a um “menu” de nomes de argumentos, tais como definição, divisão, etimologia, comparação... Pelo que a Tópica se constitui por uma lista de nomes de lugares-comuns donde se tiram argumentos prováveis. No entanto, ela só relaciona os nomes dos lugares-comuns e sua concepção, sem oferecer os argumentos já prontos. Cabe ao orador forjar um argumento orientado por um nome e conceito. Provo alguma coisa pelo conceito de “causa”, de “gênero”...

Aristóteles (Retórica 1377b) parece estabelecer, anteriormente, o itine-rário para a construção de um logos retórico a partir dos tópoi:

Tais são, pois, as matérias donde devemos extrair os argumentos para aconse-lhar e desaconselhar, louvar e censurar, acusar e defender-se; tais são também as opiniões e as premissas que são úteis para as provas, pois é sobre tais matérias e a partir dessas premissas que se retiram os entimemas que tratam propriamente de cada um dos gêneros oratórios.

Dessa forma, o logos retórico tem um ponto de partida (tópos); o tópos gera uma premissa (prótasis); a qual é a base de uma argumentação (pístis) e de 9 Os tópoi koinoi da retórica aristotélica receberam a denominação de loci communes (lugares-comuns) na retórica latina, significando em ambas as fontes de argumentação, isto é, palavras ou frases que dão nomes aos argumentos; não devem ser confundidos com os lugares-comuns da tópica estilística, em que significam motivos que se repetem, enfaticamente, num determinado contexto (TRINGALI, 2014, p. 150).

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onde se retiram o entimemas específicos para cada gênero de discurso.Ao desvelar as técnicas de elaboração do discurso, Aristóteles não só

nos mostra a arte de produzi-los, mas também nos propicia, sobretudo, os meios para interpretá-los, entregando-nos uma teoria que cumpre uma função herme-nêutica da retórica, uma vez que nos ajuda a interpretar o texto clássico.

A RETÓRICA EM ROMAA retórica romana constitui uma reelaboração da retórica grega10.

Desde a Retórica a Herênio até Quintiliano, podemos verificar a marca das teorias aristotélicas e pós-aristotélicas. Garavelli (2000, p. 38) afirma que “os oradores romanos conheceram a téchne rhetoriké dos gregos frequentando suas escolas mais célebres, especialmente a asiática e a ródica11 [...]”. Somente bem depois do sur-gimento da retórica na Grécia (primeiros decênios do século V a. C.), a arte ora-tória florescerá em Roma: [...] é preciso chegar, sem dúvida, ao segundo decênio do século I (entre 82 e 85 a. C.), e não antes, para encontrar uma obra retórica escrita em latim12 [...] (GARAVELLI, 2000, p. 38).

Garavelli refere-se, nesse caso, às duas obras iniciais da retórica roma-na coetâneas, a Rhetorica ad Herennium, cuja autoria, embora considerada por mui-tos como desconhecida, é atribuída hoje ao rétor Cornifício, e o De inuentione13, de Cícero, que se tornaram “os únicos veículos de transmissão da retórica antiga na Idade Média” (GARAVELLI, 2000, p. 38). Nesses dois manuais de retórica, podemos ver as marcas da retórica grega.

A reprodução dos gêneros discursivos descritos por Aristóteles en-contra-se, por exemplo, no Inu., de Cícero, que deixa claro partir das ideias do Estagirita ao citá-lo textualmente:

Aristóteles, pois, que acrescentou a esta arte muitas contribuições e recursos de estilo, considerou dever do orador ocupar-se de três gêneros de discursos:

10 Reboul (2004, p. 71-2) comenta que “A primeira tarefa da retórica latina foi traduzir os termos gregos. Por exemplo, metáfora em Cícero transforma-se em translatio, epidíctico é demonstrativum. Tekhné rhetoriké será chamada de ars oratoria, ou rhetorica. Significativo: a palavra grega rhetor terá duas traduções: orator, que é o executante, o fazedor de discursos, e rhetor, que é o professor, geralmente grego”. 11 Los oradores romanos conocieron la téchne rhetoriké de los griegos asistiendo a sus escuelas más célebres, especialmente la asiana y la rodia [...]12 [...] hay que llegar, sin embargo, al segundo decenio del siglo I (entre el 82 y el 85 a. C.), y no antes, para encontrar una obra retórica escrita en latín [...]13 O De inuentione parece ser anterior à Retórica a Herênio, pois, segundo Garavelli (2000, p. 67) foi escrita “por Cícero aos dezenove anos como primeira sessão de uma obra (que nunca foi concluída) sobre as cinco partes da retórica” (Se ha mencionado aqui la importancia que tuvieron en la Edad Media los dos libros del De Inuentione, escritos por Cicerón a los diecinueve años, como primera sección de una obra (que nunca fue concluída) sobre las cinco partes de la retórica). A considerar, portanto, a idade com que Cícero o escreveu, o De inuentione seria datado de 87 a. C.

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o demonstrativo, o deliberativo e o judicial. O demonstrativo é o que atribui louvor ou censura para determinada pessoa; o deliberativo, o qual numa dis-cussão civil, contém em si a defesa de uma opinião; o judicial, que, usado no tribunal, envolve uma acusação ou uma defesa ou uma petição e uma contes-tação. Então, conforme nossa opinião, deve-se crer que a arte e a capacidade do orador ocupam-se dessa matéria subdividida em três gêneros14. (Cic. Inu., l, 7)

O autor da Retórica a Herênio, a julgar pela similaridade dos textos, parece beber da mesma fonte que Cícero:

Três são os gêneros de causas de que o orador deve incumbir-se: o demons-trativo, o deliberativo e o judiciário. O demonstrativo destina-se ao elogio ou vitupério de determinada pessoa. O deliberativo efetiva-se na discussão, que inclui aconselhar e desaconselhar. O judiciário contempla a controvérsia legal e comporta acusação pública ou reclamação em juízo com defesa15. (RETÓ-RICA a Herênio, 1.2)

O mesmo se pode constatar com relação às partes de retórica, descri-tas nas duas obras. Vejamos o que Cícero escreve a respeito dessa divisão:

Por isso, parece-nos que a matéria da arte retórica seja aquela, a qual como dissemos, foi observada por Aristóteles: suas partes, porém, são aquelas que a maior parte tem denominado de invenção, disposição, elocução, memória e pronunciação. Invenção é a descoberta de argumentos verdadeiros ou ve-rossímeis, que tornem a causa plausível; disposição é a distribuição ordenada dos argumentos descobertos; elocução é a adequação de palavras [e de frases] convenientes à invenção16; memória é a sólida apreensão na mente das ideias e das palavras para os argumentos encontrados na invenção; Pronunciação é o ajuste, de modo conveniente, de ideias e de palavras, de voz e de gestos17. (Cic. Inu., l, 9)

14 Aristoteles autem, qui huic arti plurima adiumenta atque ornamenta subministravit, tribus in generibus rerum versari rhetoris officium putavit, demonstrativo, deliberativo, iudiciali. Demonstrativum est, quod tribuitur in alicuius certae personae laudem aut vituperationem; deliberativum, quod positum in disceptatione civili habet in se sententiae dictionem; iudiciale, quod positum in iudicio habet in se accusationem et defensionem aut petitionem et recusationem. Et, quem ad modum nostra quidem fert opinio, oratoris ars et facultas in hac materia tripertita versari existimanda est. (De inuentione, l, 7)15 Tria genera sunt causarum, quae recipere debet orator: demonstratiuum, deliberatiuum, iudiciale. Demonstratiuum est, quod tribuitur in alicuius certae personae laudem uel uituperationem deliberatiuum est in consultatione, quod habet in suasionem et dissuasionem. iudiciale est, quod positum est in controuersia et quod habet accusationem aut petitionem cum defensionem. (RETÓRICA a Herênio, 1, 2)16 A ideia seria: a adequação de palavras e frases convenientes aos argumentos descobertos na invenção.17 Quare materia quidem nobis rhetoricae videtur artis ea, quam Aristoteli visam esse diximus; partes autem eae, quas plerique dixerunt, inventio, dispositio, elocutio, memoria, pronuntiatio. Inventio est excogitatio rerum verarum aut veri similium, quae causam probabilem reddant; dispositio est rerum inventarum in ordinem distributio; elocutio est idoneorum verborum [et sententiarum] ad inuentionem accommodatio; memoria est firma animi rerum ac verborum ad inuentionem perceptio; Pronuntiatio est ex rerum et verborum dignitate vocis et corporis moderatio.

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No mesmo sentido, a Retórica a Herênio apresenta esta divisão para o sistema retórico:

O orador deve ter invenção, disposição, elocução, memória e pronunciação. Invenção é a descoberta de coisas verdadeiras ou verossímeis que tornem a causa provável. Disposição é a ordenação e distribuição dessas coisas: mostra o que deve ser colocado em cada lugar. Elocução é a acomodação de palavras e sentenças adequadas à invenção. Memória é a firme apreensão, no ânimo, das coisas, das palavras e da disposição. Pronunciação é a moderação, com encanto, de voz, semblante e gesto18. (RETÓRICA a Herênio, 1, 3)

Entre as novidades apresentadas pelas duas obras, temos o acréscimo

de uma quinta parte, a dimensão da memoria, ao sistema retórico apresentado por Aristóteles, o qual é composto de apenas quatro partes (cf. supra, item 3, nota de rodapé n. 5).

A inventio é a primeira etapa na construção de um discurso, corres-pondendo à fase em que o orador seleciona todos os tipos de argumentos. Na concepção de Cícero, é a parte principal e mais importante em todos os gêneros de causas: “por isso a invenção, que é de todas as partes a principal em todos os gêneros de causas, será considerada, acima de tudo, como deve ser19” (CIC., Inu., 1, 9). Não é ocioso recorrer à etimologia para trazer a lume o significado da palavra em latim, a qual deriva do verbo invenio, -is, -ire, inveni, -ventum, que significa achar, encontrar, descobrir (GLARE, Peter G. W. et al (1968). A inventio, portanto, constitui a etapa em que o orador vai buscar compor seus argumentos, listando o que lhe pode servir como argumento na construção do discurso. Nessa fase, o orador elabora realmente um inventário, um rol de todos os argumentos possí-veis e de “outros meios de persuasão relativos ao tema do discurso” (REBOUL, 2004, p. 43).

Tal parte deve constituir, portanto, o ponto de partida para nossa análise de um texto clássico, pois é nela que encontramos todo o material argu-mentativo reunido pelo orador para construir o discurso. Nas palavras de Cícero (Inu., 1, 9), “invenção é a descoberta de argumentos verdadeiros ou verossímeis,

18 Oportet igitur esse in oratore inuentionem, dispositionem, elocutionem, memoriam, pronuntiationem. Inuentio est excogitatio rerum uerarum aut ueri similium, quae causam probabilem reddant. Dispositio est ordo et distributio rerum, quae demonstrat, quid quibus locis sit conlocandum. Elocutio est idoneorum uerborum et sentenciaram ad inuentionem adcommodatio. Memoria est firma animi rerum et uerborum et dispositionis perceptio. Pronuntiatio est uocis, uultus, gestus moderatio cum uenustate.19 Quare inventio, quae princeps est omnium partium, potissimum in omni causarum genere, qualis debeat esse, consideretur.

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que tornem a causa plausível”20. Trata-se, portanto, de achar os argumentos que serão utilizados, de reunir “as provas apropriadas aos três “meios” de instruir, de agradar e de comover (logos, ethos, pathos)” (VARGA, 1995, p. 277). É uma fase em que o orador procede a um trabalho mental para encontrar o que vai dizer, ou seja, as provas que usará. Varga (1995, p. 277) explica que nessa etapa:

O futuro autor percorre os lugares que correspondem ao seu género: reúne leis e causas célebres para o texto judicial, motivos de elogio e de reprovação para o epidíctico. Reflete sobre os modos possíveis do raciocínio, tendo em conta não só a qualidade intelectual mas também as emoções previsíveis do seu público: apreciará este as narrações e os exemplos, será sensível ao efeito patético dos entimemas, quer dizer, dos silogismos “truncados” que silenciam a sua premissa mais geral (e, portanto, mais banal também)?

Na tarefa de descoberta de argumentos, a exemplo do que Aristóteles já havia disposto na Retórica, Cícero aponta para a necessidade de o orador buscar auxílio na tópica, disciplina que ajuda a achar os argumentos nos lugares-comuns. O Arpinate (Inu., 2, 48; 49) assinala que “Chamamos, portanto, lugares-comuns a estes argumentos que podem ser transferidos [e aplicados] a muitas causas. [...] o discurso se distingue e se ilustra, introduzindo de modo máximo lugares-comuns e algum lugar já confirmado com aqueles argumentos mais conhecidos pelos ouvintes.21”.

Encontrados os argumentos, é necessário dispô-los metodicamente, por meio da disposição (dispositio). Cícero (Inu., 1, 9) explica-nos que a “dispo-sição é a distribuição ordenada dos argumentos descobertos22”. Corresponde à etapa em que o orador analisa em quais locais estratégicos poderá colocar os ar-gumentos encontrados na etapa da invenção. Como explica Reboul (2004, p. 60),

A disposição tem primeiramente uma função econômica: permite nada omitir sem nada repetir; em suma, possibilita que o orador “se ache” a cada momen-to do discurso. Depois, quaisquer que sejam os argumentos que organize, a disposição é em si mesma um argumento. Graças a ela, o orador faz o auditó-rio encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que escolheu, conduzindo-o assim para o objetivo que propôs.

20 Inventio est excogitatio rerum verarum aut veri similium, quae causam probabilem reddant.21 Haec ergo argumenta, quae transferri in multas causas possunt, locos communes nominamus. [...] Distinguitur autem oratio atque inlustratur maxime raro inducendis locis communibus et aliquo loco iam certioribus illis [auditoribus] argumentis confirmato.22 [...] dispositio est rerum inventarum in ordinem distributio [...]

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Compreendia esta parte da retórica, segundo Garavelli (2000, p. 118-9), três operações: 1) a operação de divisão natural do discurso e de cada uma de suas seções, de acordo com o que estava previsto para o discurso persuasivo (exórdio, narração, argumentação, epílogo ou peroração); 2) a ordenação dos conteúdos (sobretudo a disposição dos argumentos demonstrativos) a partir de três modelos possíveis: a ordem de força crescente (argumentos mais fracos no início e mais fortes no final), a ordem de força decrescente (argumentos mais for-tes no início e mais fracos no final) e a ordem chamada homérica ou nestoriana23 (argumentações mais sólidas no início e no final do discurso, pondo-se os argu-mentos mais fracos no meio); 3) a ordem das palavras e a formulação das ideias.

Após promover a ordenação de seus argumentos, o orador passa, pro-priamente, à redação de seu discurso. Tal etapa, chamada de elocução (elocutio) é definida por Cícero (Inu., 1, 9) como “a adequação de palavras [e de frases] convenientes à invenção”. Trata-se de conferir uma forma linguística às ideias, aos argumentos encontrados na etapa da invenção. Aqui se relacionam, portanto, forma e conteúdo, buscando o orador lapidar estilo, construir um texto com clareza e correção gramatical, atentando para a escolha das palavras e para a construção da frase de forma ornamental. Cícero (de Orat., 3, 10, 37) aponta quatro qualidades da elocução, a saber, a correção gramatical (latinitas), a clareza (planum), a elegância (ornatus) e a adequação do discurso às circunstâncias (aptum): “Qual então é o melhor modo de eloquência [...] senão quando falamos em bom latim, com clareza, com elegância, de modo conveniente e coeso, a respeito de um assunto qualquer que seja?24”.

Convém assinalar que Aristóteles já havia tratado no terceiro livro da Retórica sobre as qualidades da expressão, indicando como tais a clareza, a cor-reção gramatical, a adequação da expressão ao assunto e a expressão adequada a cada gênero:

Consideremos, por conseguinte, que estas questões foram já examinadas e propúnhamos como definição que a virtude suprema da expressão enuncia-tiva é a clareza [...]. [...] O princípio básico da expressão enunciativa, porém, é falar corretamente. Isto radica em cinco aspectos. [...] O primeiro aspecto reside, pois, na correta colocação das partículas coordenativas. O segundo consiste em falar por meio de termos ‘específicos’, e não ‘gerais’. O terceiro é não utilizar vocábulos ambíguos. Isto a não ser que se prefira o contrário,

23 Chama-se deste modo porque, segundo o relato de Homero no quarto livro da Ilíada, quando Nestor ordenou o alinhamento das tropas gregas, colocou as menos seguras no centro. (GARAVELLI, 2000, p. 119)24 Quinam igitur dicendi est modus melior [...] quam ut Latine, ut plane, ut ornate, ut ad id, quodcumque agetur, apte congruenterque dicamus?

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ou seja, fingir que se diz algo por meio delas quando não se tem nada a dizer [...]. O quarto aspecto reside em distinguir o gênero das palavras tal como Protágoras: masculino, feminino e neutro [...]. O quinto aspecto consiste em empregar corretamente o plural, dual, singular [...]. A expressão possuirá a forma conveniente se exprimir emoções e caracteres, e se conservar a ‘analo-gia’ com os assuntos estabelecidos [...]. É preciso, porém, não esquecer que a cada gênero é ajustado um tipo de expressão diferente. (ARISTÓTELES, Retórica, 1404b, 1406b, 1407a, 1408a, 1413b)

Concluída a parte de redação do discurso, na elocutio, o orador roma-no passava à próxima fase, a memória (memoria)25, que se “fixa, definitivamente, como parte da retórica, a partir dos romanos” (TRINGALI, 2014, p. 211). Trata-se de uma arte de memorizar o discurso por meio de um conjunto de procedi-mentos mnemotécnicos, tais como, associar a imagem de uma âncora para um trecho sobre o navio ou a imagem de um dardo para um trecho sobre a uma batalha. Nessa fase, portanto, o orador busca aprender de cor e reter na memória os argumentos que usará no discurso.

Por fim, o orador chega à ação (actio), que é o momento de enunciação efetiva do discurso com todos os seus efeitos de voz e de gestos. É a fase que completa o ciclo de produção do discurso retórico. Embora Quintiliano ensinas-se que se podia chamar a essa fase, indiferentemente, pronunciação (pronuntiatio) ou ação (actio), em verdade, esta fase estava subdividida em duas partes: uma relativa à voz (a pronunciação) e outra relativa aos gestos (a gesticulação). Dessa forma, como enfatiza Tringali (2014, p. 216),

“[...] seria mais acertado preferir usar a palavra ação, que compreende a pro-nunciação e gesticulação. [...] Na ação, pronuncia-se o discurso acompanhado de gestos. A pronunciação se destina aos ouvidos e a gestualidade, aos olhos. Na ação, em sentido geral, se transmite o discurso ao auditório por meio da voz (pronunciação) e de possíveis gestos (gestualidade). Parece quase impos-sível falar sem algum gesto. Evidentemente que a voz tem o primado sobre os gestos. A gestualidade serve à pronunciação. Pelo exposto, preferimos dar a essa quinta parte o nome geral de ação. A ação compreende a pronunciação e a gesticulação. A pronunciação indica uma parte da ação.

A ação é a parte mais importante da Retórica, uma vez que é nela que o discurso se consuma. Como vimos no início do item 4, Cícero, no Inu., 1, 9,

25 Há uma série de discussões entre os tratadistas quanto a inclusão ou não da memória no “cânon da Retórica”. Alguns defendem que se trata de uma parte incluída na Actio ou Pronunciatio, ou seja, na enunciação do discurso. O fato é que, a partir dos romanos, sobretudo com Quintiliano, que a considerou como uma técnica a ser aprendida por meio de processos mnemotécnicos, a memória passou a ser considerada como uma quinta parte da Retórica.

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considera a invenção (inventio) “a parte principal e mais importante em todos os gêneros de causa”. A fim de evitar qualquer erro de interpretação, julgamos que o orador esteja se referindo à inventio como a parte mais importante para a busca dos argumentos em todos os gêneros de causa, e não como a parte mais impor-tante da Retórica, pois, no Orat., Cícero, para fundamentar seu ponto de vista sobre a parte mais importante da Retórica, acosta o exemplo de Demóstenes, que considerava a ação como a parte principal:

Com efeito, maus oradores frequentemente conseguiram um bom nome gra-ças à dignidade da ação, e bons oradores foram julgados maus oradores pela deficiência da ação, pelo que não foi sem razão que Demóstenes considerou ser a ação o primeiro, o segundo e o terceiro fator de sucesso retórico26. (CIC., Orat., 56)

De fato, sem a fase da ação, que compreende a pronunciação e a gesti-culação, o discurso seria mero texto escrito sem impacto algum para o auditório. O discurso só se aperfeiçoa no momento da ação.

Da abordagem sobre a retórica romana, observamos fortes depen-dências teóricas da ars oratoria romana em relação a Aristóteles no campo da Re-tórica. Apesar disso, os romanos souberam imprimir a própria marca na arte da eloquência. Em Roma, a arte oratória encontrou um solo fértil para seu desenvol-vimento, uma vez que, para fazer carreira e projetar-se no meio da sociedade, o romano precisava percorrer um caminho pré-definido, chamado cursus honorum27. Para isso, era fundamental falar bem em público. A importância do poder de persuasão nas assembleias e nos comícios, constituíram uma excelente oportu-nidade para os romanos se exercitarem na eloquência. Além disso, o exuberante direito romano propiciou o surgimento de grandes advogados, tais como Cícero e Quintiliano, os quais, a partir da prática oratória forense, erigiram verdadeiros tratados de retórica, entre os quais estão, como os mais axiais, o De oratore (55 a. C.), o Orator (46 a. C.), de Cícero, e a Institutio oratória (93 a. C.)

A Antiguidade deixa como herança para a Idade Média o conjunto de sistemas retóricos greco-romanos, que subsistirão, inclusive, sob a égide da

26 Nam et infantes actionis dignitate eloquentiae saepe fructum tulerunt et diserti deformitate agendi multi infantes putati sunt; ut iam non sine causa Demosthenes tribuerit et primas et secundas et tertias actioni.27 Cursus honorum (carreira das honras) designava o percurso sequencial das magistraturas romanas. Era a sequência de cargos na magistratura, regulada no início do século II a. C e revisada no governo de Sila (82 a. C), por meio da lex Cornelia de Magistratibus. A sequência das magistraturas para quem aspirasse à carreira política abrangia numa escala crescente: a questura (idade mínima para o exercício:31 anos); a edilidade (idade mínima para o exercício:37 anos); a pretura (idade mínima para o exercício:40 anos) e o consulado (idade mínima para o exercício:43 anos).

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Igreja, a qual, apesar de rejeitar os autores pagãos, como inúteis e perigosos, utilizou a retórica em seu trabalho missionário como ferramenta de persuasão e comunicação (REBOUL, 2004, p. 77).

A partir do século XVI, atacada por correntes cartesiano-positivistas, a retórica foi se reduzindo a meras construções de artifícios estilísticos. Como preleciona Tringali (2014, p. 233):

A elocução, entre as partes do discurso, se torna hegemônica e central. Assim, a Retórica Clássica se define como uma Retórica da elocução, uma arte da composição do estilo, identificando-se com a Poética. Persuadir se torna irre-levante. Ela se propõe ensinar não só a falar bem como escrever bem, sendo, de modo geral, uma ars bene dicendi28.

Assim, a Retórica deixa de existir como disciplina Retórica e se trans-forma em estilística. Isso, contudo, não significa o sepultamento da Retórica, pois ela sobrevive, como esclarece Reboul (2004, p. 82), no ensino literário, nos discursos jurídicos e políticos, renovando-se coma comunicação de massa até renascer, na Europa, nos anos 60 como uma nova retórica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASA. K. Varga. (1995) “Retórica e produção do texto” in Angenot, Marc et al. (Org.). Teoria literária. Tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira. Lis-boa: Publicações Dom Quixote, p. 268-286.

Aristóteles (1998) Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda.

Aristotele (1996) Retorica. Milano: Arnoldo Mondadori Editore.

B. C. Ferragini (2013) Código florestal: a retórica de ruralistas e ambientalistas nos artigos de opinião. Campo Grande: Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande.

B. M. Garavelli (2000). Manual de retorica. Madrid: Cátedra.

Ciceronis, M. Tulli. Orator. Disponível em http://www.thelatinlibrary.com/cice-ro/repub1.shtml, acesso em 24/02/2018, às 22:40.

__. De oratore. Disponível em http://www.thelatinlibrary.com/cicero/haruspi-cum.shtml, acesso em 24/02/2018, às 22:30.

28 A arte de bem falar.

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__. De inuentione. Disponível em http://www.thelatinlibrary.com/cicero/ha-ruspicum.shtml, acesso em 23/02/2018, às 04:22.

D. Tringali (2014) A retórica antiga e outras retóricas: a retórica como crítica litertária. São Paulo: Musa Editora.

I. Sacramento (2009) “A midiatização da retórica” Fronteiras – estudos midiáti-cos 2, 89-102.

O. Reboul (2004) Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes.

P. G. W. Glare et al (1968). Oxford Latin dictionary. Oxford: Oxford University Press.

Retórica A Herênio (2005) Trad. e introdução de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. São Paulo: Hedra.

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PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E DEMOCRACIA: A VISÃO DO POVO EM A CONSTITUIÇÃO DOS ATENIENSES

E ALGUMAS REFLEXÕES PARA O PRESENTE

Priscilla Gontijo Leite1

Lívia Maria da Silva2

O atual cenário político brasileiro é marcado por crises de ordem po-lítica e institucional, o que provoca na população uma sensação de descrença política. Assim, a política não é vista como um mecanismo capaz de solucionar problemas estruturais na sociedade, refletindo diretamente na participação polí-tica do povo. O indício dessa descrença está no alto número de votos inválidos nas últimas eleições para prefeitos e vereadores em 2016, em que o total de votos inválidos superou o primeiro ou o segundo lugar dos candidatos eleitos em 22 capitais. Essa descrença política também é sintomática no questionamento da própria democracia enquanto regime político, uma vez que, desde as manifes-tações políticas de 2013, acentuou-se o número de manifestações em defesa de uma intervenção militar, propondo a alteração radical do regime hoje vigente. 3

Portanto, é urgente pensar a democracia brasileira, a atuação política do povo e a formação da cidadania, pois esses são elementos intercambiáveis e passíveis de serem analisados por várias óticas. Diante dessas possibilidades, analisar-se-á esses elementos a luz da democracia ateniense, por acreditar-se que esse modelo democrático ainda tem algum interesse político para nós (Castoria-des, 2002, p. 277), por despertar reflexões sobre nossa própria maneira de fazer política. Para isso, o primeiro passo é superar o senso comum que fomenta uma

1 Professora Adjunta de Pré-História e História Antiga da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).2 Graduanda em Letras Clássicas (UFPB) e participante do Programa de Iniciação a Pesquisa PIBIC/Cnpq UFPB. Parte das reflexões do presente texto foram desenvolvidas no plano de trabalho 2016-2017 “Olhares sobre a Democracia - Uma Análise de A Constituição dos Atenienses, de Pseudo-Xenofonte”3 Uma declaração nesse sentido, que recebeu uma grande repercussão midiática, foi a fala do General do Exército ao final de sua palestra, que se mostrou favorável a uma ação militar com o intuito de acabar com a corrupção, posição que defende publicamente desde o governo de Dilma Rousseff. Para mais informações vide “Governo, Exército e Ministério Público não atuam contra general que defende a intervenção militar” Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/19/politica/1505775429_803723.html. Acesso em 25/09/2017.

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visão estática do processo político, com um início bem definido e miraculoso, desenrolando até chegar em um fim que alcançaria todos “os povos civilizados”.

O senso comum gosta de acreditar não somente que o político ou a política caiu do céu, um belo dia, e portanto, na Atenas “clássica”, sob a forma mi-raculosa e autenticada da democracia; mas uma história perfeitamente linear nos conduz pela mão desde a revolução americana, passando pela “Revolução Francesa”, até nossas sociedades ocidentais, tão orgulhosamente convencidas que sua missão é converter todos os povos à verdadeira religião da democra-cia. (Detienne, 2014, p. 127-128)

Esse senso comum está imbuído da ideia de que há somente um mo-

delo de democracia, como se houvesse apenas uma forma de se fazer política, e impede de perceber toda a dinâmica do mundo político. A desconstrução desse senso comum, além de permitir um melhor entendimento do passado, também amplia a visão sobre o presente, abrindo as opções para a intervenção da reali-dade. O estudo de Detienne (2014) se propõe a isso, ao utilizar de uma perspec-tiva que compara experiências políticas gregas a outras distantes do tempo e no espaço. Diante das inúmeras soluções que as diferentes sociedades encontraram com relação à política, um aspecto é convergente: a tomada de decisões em as-sembleia. Portanto, é possível estabelecer um sentido primordial para a assem-bleia, anterior mesmo à sua ampla utilização nos sistemas democráticos. O ato da assembleia significa um querer-se reunir para debater assuntos em comum (De-tienne, 2014, p. 128). Esse sentido traz em si um ideal de política, ressaltando-o como um campo em que se busca a solução dos problemas por meio do debate e adoção de mecanismos que o privilegie.

Definido o objetivo principal da assembleia, deve-se explicitar quem pode participar dela. A participação na assembleia irá variar em cada experiência política e pode assumir contornos diferentes. A assembleia sempre será com-posta por aqueles que a coletividade acredita estarem aptos na condução dos debates e que, consequentemente, terão acesso à cidadania, a qual terá sempre seu controle muito rígido. No caso ateniense, depois de Péricles, o acesso à cida-dania será permitido apenas aos filhos de pai e mãe atenienses, correspondendo a uma parcela pequena da população, girando em torno de um terço.4 Os cida-dãos formam o demos, que terá a prerrogativa de participação na assembleia. Ao participar ativamente na condução dos afazeres da cidade, o demos se proclama

4 A discussão historiográfica sobre o número de cidadãos e sua relação com os demais habitantes da polis já é consagrada e um panorama das principais correntes está em Ferreira (1989).

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absolutamente soberano, por reger suas próprias leis (autonomos), possuir sua ju-risdição independente (autodikos) e governar-se a si mesmo (autoteles) (Castoriades, 2002, p. 304).

Demos é uma das palavras que compõem o termo democracia, a qual é formada pela junção de demos e kratos. A palavra demos possui uma gama de significados, variando de um sentido territorial a político, ou mesmo contendo nuances de ambos, pois pode indicar tanto a porção do território, quanto o povo que nele habita (Benveniste, 1995, p. 92; Chantraine, 1968, p. 273). A palavra pode indicar o povo como um todo, o corpo de cidadãos especificamente ou as pessoas mais pobres (Xenofonte, Memoráveis, IV, 2.37). Uma acepção geral para demos é um grupo de homens unidos por uma mesma condição, e, na visão de Aristóteles, o demos é composto por pequenos comerciantes, marinheiros, arte-sãos e agricultores:

Assim, na facção popular (δήμου) existe uma espécie de cidadão, os agriculto-res; uma outra, a dos artesãos; uma outra, a dos mercadores dedicados à com-pra e à venda; e outra, a dos homens do mar que incluem os que se dedicam à marinha de guerra, à marinha de longo curso, ao transbordo, e à frota pesquei-ra. [...] Além destas, a classe popular integra ainda outras espécies de cidadão. Tal como a dos operários e a daquele cujo patrimônio é tão escasso que não lhes permite fruir de tempos livres; e há ainda os indivíduos livres devido ao estatuto de cidadão de um dos pais. (Aristóteles, Política, IV, 1291b 16-21)

Já a palavra kratos indica força, soberania, superioridade e predomi-nância (Benveniste, 1995, p. 71). A formação da palavra “democracia” difere de outras já consolidadas no vocabulário político grego, como “monarquia” e “oligarquia”, que são compostos por monos (um) / oligos (poucos) e arché (poder). Assim, democracia nasce como um termo polêmico, pois ressalta a violência, por ser a manifestação da predominância de uma parcela da população, os mais pobres, sobre a cidade pelo uso da força (Platão, República, VIII, 557a-c; Canfo-ra, 2015, p. 180-181). Os inimigos da democracia ressaltavam sua ausência de convivência política, por ser fundada no domínio da violência e sobre ela, com grandes traços de intolerância, por não permitir que seus adversários tenham es-paço (Canfora, 1999, p. 55) – o que na prática não ocorreu, como se verifica em Atenas uma difusão de textos contendo críticas à democracia.

A atuação do demos é a característica determinante da democracia, porém nem sempre o demos e a democracia são visto de forma positiva, e para entender a relação entre ambos, analisar-se-á as representações do demos e de sua

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atuação na democracia descritas no opúsculo Constituição dos Atenienses, presente no corpus de Xenofonte. No texto, a atuação do povo é vista como essencial para a manutenção do sistema democrático e são apresentados aspectos do funciona-mento da democracia e críticas diretas ao ethos do povo.

A palavra demos (δημος) tem 42 ocorrências na Constituição dos Atenien-ses, distribuídas nos parágrafos: 1.2 (2x); 1.3 (4x); 1.5; 1.7; 1.8 (2x); 1.9; 1.10; 1.13 (4x); 1.14; 1.16 (3x); 1.17; 1.18 (2x); 2.9 (2x); 2.10; 2.14; 2.15; 2.17 (3x); 2.18 (3x); 2.19 (2x); 2.20 (2x); 3.1; 3.11 (2x); 3.13. Já a palavra democracia (δημοκρατία) tem um total de nove ocorrências, distribuídas nos parágrafos 1.4 (2x); 1.5; 1.7; 2.20; 3.1; 3.8; 3.9; 3.12. O que é significativo, se considerarmos que o opúsculo tem 53 parágrafos, pois demonstra que a temática sobre o povo e sua relação com a democracia é recorrente. Além do termo demos há vários outros correlatos, tais como δημότης5 (1.4), δημοτικός6 (1.4 (2x); 1.6; 1.15; 2.18; 2.19), δημόσιος7 (2.9; 3.4).

Sobre o opúsculo é difícil precisar a datação e a autoria. A respeito do primeiro, as evidências internas, como a descrição de tributos e impostos pagos regularmente pelos aliados (1.15, 1.17, 2.1, 3.2, 3.5), indicam que a obra foi escri-ta durante a primeira tassalocracia ateniense, no período de 431 a 4248 (Canfora, 1999, p. 99; Martins, 2011, p. 37-52). É consenso a data limite do opúsculo ser 413, antes da derrota naval da Sicília, por ser a democracia descrita como um sis-tema estável, algo impensável após este episódio. É consenso, também, a vivência do autor no ambiente sócio-político dos anos de 420, tornando a Constituição dos Atenienses o exemplar mais antigo da prosa ática e também a mais remota crítica conhecida sobre a democracia. A maioria dos estudiosos também concorda que o público-alvo do opúsculo seria grupos aristocráticos, sendo a circulação restrita a esses (Canfora, 1999, p. 43). Isso torna-o ainda mais singular, pois, ao mesmo tempo em que critica a democracia, reconhece seu valor enquanto regime políti-co e sua capacidade de atingir seu objetivo principal, que é o fortalecimento do demos, por ser o responsável pela talassocracia.

5 δημότης: homem do povo, pessoa privada; cidadão.6 δημοτικός: pertencente ao povo, popular, partidário do povo, democrata.7 δημόσιος: pertencente ao povo ou ao Estado, comum, público. Como substantivo: servidor público.8 As datas mencionadas no texto, com exceção das referências bibliográficas, todas correspondem ao período antes de Cristo e, para evitar repetições, não se utilizará a sigla a.C.9 Canfora ainda reduz esse intervalo ao propor 429-424 para a data provável do discurso, pois aparentemente o quadro democrático descrito pelo autor não tem a presença de Péricles e a descrição de como os atenienses se comportam em caso de guerra é indicativo de um período anterior a Guerra do Peloponeso.

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Sobre a autoria há pouco consenso, com debates intensos e uma va-riedade de hipóteses. Por pertencer ao corpus de Xenofonte, foi considerada a possibilidade de ele ser autor, que logo foi descartada por causa da cronologia e do estilo, uma vez que o opúsculo tem repetições e o uso de um vocabulário destoante de outras obras de Xenofonte (Martins, 2011, p. 19). A partir de então, o opúsculo foi comparado com obras de outros autores como Eurípides; An-tifonte; Crítias; Xenofonte, o Velho; Xenofonte de Melite, filho de Eurípedes; Tucídides, filho de Melíseas. Em todos os casos, os dados biográficos, estilístico e o posicionamento político não conseguiram fornecer provas suficientes para atestar a autoria da Constituição dos Atenienses. Como não é possível determinar com precisão quem é o autor, os estudiosos tentam traçar seu perfil sócio-políti-co para entender as críticas contidas na obra, considerando o autor um membro da aristocracia, com conhecimento dos cargos políticos e do ffuncionamento da democracia de Atenas, tendo recebido uma educação, provavelmente sofística, comum entre os cidadãos mais abastados da cidade. Acredita-se que o autor teve uma participação ativa nos negócios públicos e, em decorrência disso, foi exilado (Martins, 2011, p. 27). Para Canfora (1999, p. 10), o opúsculo é um diálogo escri-to por alguém ligado à aristocracia, representado por dois personagens, um tradi-cionalista, detrator da democracia, e um oligarca inteligente, porta-voz das ideias do autor (Canfora, 1999, p. 46). O oligarca inteligente sustenta a ideia de uma coerência da atuação política do povo, mesmo com suas características negativas, opondo-se, assim, a visão tradicional aristocrática de que o demos é estúpido.

Por causa da dificuldade de se estabelecer a autoria, as tradições fran-cesa, espanhola e italiana utilizam a denominação de Pseudo-Xenofonte. Parte da tradição anglo-saxônica denomina o autor de Velho Oligarca, destacando sua posição favorável aos oligarcas. Mais recentemente, alguns estudiosos utilizam simplesmente X para expressar a imprecisão da autoria. No presente trabalho, optou-se em utilizar Pseudo-Xenofonte para referir ao autor do opúsculo, pois, além de ser um nome recorrente na historiografia, demonstra a trajetória do ma-nuscrito até nós, já que ele foi encontrado no corpus de Xenofonte, que escreveu Constituição dos Lacedemônios, relatando o modo de vida e organização política dos espartanos.

A redação de constituições (politeiai) foi típica dos séculos V e IV, mo-mento em que a discussão em torno das melhores formas de governo ocupava os círculos intelectuais. As politeiai têm caráter político, científico ou filosófico

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(Martins, 2011, p. 57) e, a partir de Aristóteles, passam a ser um gênero literá-rio específico. O Liceu foi responsável pela escrita de 158 politeiai, cuja maioria conhecemos apenas os títulos. O filósofo define politeia como o conjunto de regulamentações e normas para a vida na cidade, pois o viver na pólis baseia-se na aceitação das leis: “Ora a politeia é a organização que, nos Estados, têm as ma-gistraturas, a forma como se encontram distribuídas, bem como a determinação do elemento soberano e do objetivo de cada comunidade” (Aristóteles, Política, IV, 1289a15-18).

A obra de Pseudo-Xenofonte, porém, não se propõe a estabelecer uma constituição ideal e nem demonstrar o desenvolvimento histórico da pólis. O nome Athenaion Politeia – Constituição dos Atenienses – foi atribuído posteriormente, possivelmente a partir das primeiras linhas do opúsculo, o que explica sua singu-laridade diante das demais politeiai. O opúsculo é uma crítica à democracia sob a ótica aristocrática, por ela ser um regime político que concede privilégios ao povo. Porém, ao mesmo tempo, o autor ressalta as funcionalidades desse regime e a atuação do povo para o fortalecimento e a manutenção da democracia. Por-tanto, a partir dessa fonte, é possível destacar a relação entre demos e democracia, numa prática real em que as qualidades e defeitos são apontados, bem como as disputas de poder entre os ricos e pobres. Para entender esses aspectos deve-se também destacar a relação entre democracia e talassocracia e a atuação do povo no exercício hegemônico de Atenas no Mediterrâneo.

Logo no primeiro parágrafo, Pseudo-Xenofonte se mostra contrário à democracia ateniense pelos privilégios que os mais pobres recebem, apresentan-do assim uma característica do demos: πονηρός. Mesmo assim, ele irá concentrar na apresentação de como ela funciona e os motivos para sua preservação, apesar das severas críticas que o regime recebe dentro e fora de Atenas.

Quanto à forma de governo dos Atenienses, que escolheram este tipo de constituição, eu não a aprovo pela seguinte razão: aqueles que a escolheram optaram por privilegiar a ralé (πονηρούς) ao invés da elite (χρηστούς). Eis por que a não aprovo. Mas já que decidiram desta maneira, pretendo demonstrar como eles conseguem preservar a sua constituição e resolver os restantes as-suntos de Estado, mesmo recebendo a crítica dos outros gregos. (Pseudo-Xe-nofonte, Constituição dos Atenienses, 1.1)

Umas das grandes façanhas políticas da democracia ateniense é sua relativa estabilidade política no ambiente da Hélade, em que crises e trocas de

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governo eram constantes. Atenas permaneceu democrática por praticamente dois séculos, com pequenos momentos de interrupção, com os golpes de 404 e 411. Essa estabilidade é explicada em termos materiais pelo afluxo de riquezas para Atenas devido à talassocracia, à relação estabelecida com as cidades aliadas (1.14; 1.15; 1.16; 1.17; 1.18; 3.2), ao comércio marítimo (2.12), ao seu poderio naval (2.2; 2.3; 2.4) e à escravidão (1.9; 1.10; 1.11; 1.12; 1.17; 1.19). Para o autor, por meio da talassocracia, os aliados foram-se transformando, cada vez mais, em escravos do povo ateniense (1.18).

No opúsculo, os atenienses são caracterizados como senhores do mar, conseguindo buscar para si as principais riquezas de cada cidade:

Entre os Gregos e Bárbaros, os Atenienses são os únicos com capacidade de criar riquezas. Pois se uma cidade é rica em madeira para construção naval, a quem a irá vender se não tiver o acordo dos senhores do mar? E o que acon-tece se uma cidade é rica em ferro, cobre ou linho? Onde os irá vender se não tiver o acordo dos senhores do mar? Pois é exatamente destes materiais que são feitos os meus navios: de uma cidade vem a madeira; de outra, ferro; de outra, cobre; de outra, linho; e de outra, cera. (Pseudo-Xenofonte, Constituição dos Atenienses, 2.11)

Essa enorme riqueza além de se materializar nas edificações públicas, em especial na Acrópole, também assegura uma maior participação nos negócios públicos a partir da instituição do pagamento do mithos, com Péricles. Apesar de a renumeração ser inferior a um dia de trabalho, permitia que os trabalhadores li-vres pobres abdicassem de suas atividades corriqueiras para participar das discus-sões nas instituições políticas da cidade, pelo menos alguns dias durante o ano. Portanto, há um ganho psicológico e cívico com o fortalecimento do sentimento de pertencimento da cidade e a ampliação da participação popular, favorecendo a manutenção da democracia.

A riqueza advinda da talassocracia também serviu para aliviar tensões sociais, uma vez que gerava empregos dentro e fora da cidade, como o trabalho na construção de obras públicas e na marinha, em que os remadores, majorita-riamente os mais pobres dentre os cidadãos, ficavam boa parte do tempo fora da cidade. Tudo isso diminuía o número de pessoas ociosas e desempregadas em Atenas, favorecendo a estabilidade política.

A estabilidade política foi assegurada pelo aspecto material pelas ri-quezas e da perspectiva simbólica pelos valores basilares da democracia (isonomia, isocracia, isegora) pautada na igualdade e no diálogo para a solução de problemas.

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A prática constante do intenso debate nas assembleias e o acesso a palavra por qualquer um, permitiram a criação de um ambiente propício à aceitação das crí-ticas como algo natural do jogo político, o que ajuda a entender as razões para o opúsculo realizar fervorosas críticas e, ao mesmo tempo, justificar a permanência da democracia.

Os conceitos de isonomia, isocracia, isegora não são utilizados expres-samente no opúsculo, mas suas premissas ecoam principalmente quando autor explica o funcionamento da democracia. A democracia é caracterizada pela per-missão do uso da palavra em igual condição (isegoria), bem como pela possibili-dade de qualquer um de participar dos cargos públicos (isocracia). A participação do povo é um ponto importante para assegurar a defesa de uma política que o beneficie, e num tom prático, ainda justifica essa medida uma vez que, caso a democracia fosse dirigida pela elite, esta não elaboraria uma política de interesse para o povo:

Pode argumentar-se: não era necessário que eles permitissem a todos o uso da palavra em igualdade de condição, nem que todos fossem aceitos no Con-selho, mas que somente concedessem tais direitos aos mais competentes e aos mais dotados; no entanto, também neste aspecto foi tomada a melhor decisão, a de deixar os da ralé (πονηρούς) falarem. Se fossem os da elite a falar e a legislar, seria excelente para os do nível deles, mas mau para os membros do povo. Atualmente, porém, qualquer um da ralé (πονηρός) que queira pode levantar-se e usar da palavra para defender os seus interesses e os do seu gru-po. (Pseudo-Xenofonte, Constituição dos Atenienses, 1.6)

A participação popular nos negócios públicos é uma crítica aristocrá-tica comum à democracia, por não ter o povo condições de tomar as melhores decisões, pois não foi preparado para isso, já que lhe falta dinheiro e educação, sendo então ignorante (Pseudo-Xenofonte, Constituição dos Atenienses, 1.5; Heró-doto, Histórias, 3.81-82). Essa participação é necessária para fazer prevalecer os interesses do povo e, se opondo a visão tradicional, Pseudo-Xenofonte afirma que o povo possui consciência de seus interesses e de como agir para realizá-los, a ponto de aceitar no poder a permanência de homens de moral duvidosa, pois um homem mau que defende o povo valeria mais do qualquer outro, que sendo excelente, promoveria os interesses da elite: Pode questionar-se: O que poderia um ho-mem deste nível dizer que seja útil para si e para o povo? Mas é sabido que a ignorância, a per-versidade e a boa vontade dos homens do povo valem mais do que o mérito, a sabedoria e a má vontade dos que compõem a elite. (Pseudo-Xenofonte, Constituição dos Atenienses, 1.7)

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O autor do opúsculo, ao demonstrar o funcionamento da democracia, utiliza críticas comuns da perspectiva aristocrática, principalmente no que se re-fere à capacidade do povo de governar, que são manifestas na sua caracterização do demos. Apesar disso, diferente de obras posteriores, como Platão e Aristóteles, ele não chega a propor um novo regime, seja real ou ideal. Também não se veri-fica a defesa da permanência do poder nas mãos da aristocracia e ainda afirma a posição contrária da elite a esse regime, que sempre se oporia à democracia (1.5).

Democracia e demos estão interligados e há poucas possibilidades de sobrevivência da democracia caso o poder do povo seja diminuído (3.9). Além disso, o povo fora do poder também poderia acarretar numa mudança econômi-ca de Atenas, com impactos na talassocracia e interferindo no afluxo de riquezas para cidade. Dessa forma, mesmo acreditando que os aristocratas teriam me-lhores condições de realizar um bom governo, a continuidade da democracia é vista como algo inevitável, pois este é o único regime que assegura a liberdade ao povo:

A cidade pode não ser a ideal por praticar estas regras, mas a democracia está mais protegida desta maneira. Pois o povo não deseja um governo que o es-cravize, por melhor que ele seja. O que o povo deseja é ser livre e comandar, pouco importa se o governo for ruim, pois as razões que te fazem considerar este um mau governo são as mesmas que conferem força e liberdade ao povo. (Pseudo-Xenofonte, Constituição dos Atenienses, 1.8)

Assim, a ocupação do poder pelo demos é vista como algo legítimo, por ele ser o responsável pela frota marítima, fonte de riqueza e poder da cidade (1.2). Essa ocupação ocorre de duas maneiras: sorteio e eleições (1.3). O povo se-leciona os cargos de maior risco e impacto na administração da cidade para serem decididos por meio de eleições. Esse é o caso de cargos militares, que normal-mente fica nas mãos dos aristocratas. Os demais são escolhidos por sorteio e o demos reivindica para si. Esses cargos são remunerados e expressam a concepção de uma igualdade natural entre os cidadãos, por estar apto a exercê-lo qualquer cidadão. O sorteio permite um rodízio na ocupação dos cargos e uma alternância entre comandar e obedecer, assegurando a liberdade dos cidadãos (Aristóteles, Política, 1317b), bem como a participação de todos. Por meio dessa participação, os cidadãos se reconhecem e se reafirmar como demos:

A igualdade que os partidários da democracia pretendem para a massa da po-pulação é justa e vantajosa desde que vise os semelhantes. Se muitos cidadãos

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exercerem cargos públicos, há toda a vantagem em que a legislação seja de índole democracia. É com esse intuito que se define um período de seis meses para o exercício de uma magistratura, de modo a possibilitar que todos os que pertencem à mesma facção social possam desempenhar cargos governa-mentais. A disposição que restringe a duração das magistraturas, permite que todos os indivíduos semelhantes participem por que formam uma espécie de povo. (Aristóteles, Política, V, 1308a)

A discussão sobre sorteio e eleição remete à discussão sobre as for-mas de governo e à oposição entre democracia e oligarquia e, finalmente, à dis-cussão sobre quem estaria preparado para exercer o poder. Nesse aspecto, Pseu-do-Xenofonte retoma elementos comuns da crítica aristocrática de considerar o povo interessado em governar apenas para receber um ganho financeiro, o mithos, numa argumentação semelhante à desenvolvida por Aristófanes, em As Vespas. O povo também é caracterizado como incapaz de atividades mais complexas e, por isso, delega essas funções aos aristocratas. Assim, a mistura de sorteio e eleições seria de interesse do povo, que conseguiria fazer valer seus interesses e ainda receber para isso.

O mithos é uma das formas do povo receber os benefícios da talasso-cracia. O império marítimo se mantém através do medo e da necessidade que Atenas impõe a seus aliados (2.3), conseguindo devastar terras mais poderosas (2.4) e tendo força para fazer expedições por vários dias (2.5). Atenas controla o comércio (2.11), principalmente o comércio marítimo (2.12), e, além do mithos, as riquezas advindas do comércio são revertidas ao povo com a realização de sacrífi-cos e festivais com o erário público. Dessa forma, o povo usufruiu dos banquetes e da repartição dos animais sacrificados (2.9), algo que provavelmente não acon-teceria sem a interferência da cidade, pois a maioria não teria condições de pagar por isso. As riquezas também são aplicadas na construção de obras públicas, e o povo planeja construir para si os mesmos espaços que os aristocratas possuem, como palestras, vestiários e banhos. Esses espaços são mais utilizados pelo povo, pois os aristocratas têm suas próprias instalações particulares (2.10). A talassocra-cia permitiu ao demos ascender a um estilo de vida que pertence a aristocracia, ao proporcionar a distribuição de riquezas para aqueles que estavam no poder. Essa distribuição era questionada na própria Antiguidade, como demonstra a fala de Bdeliclêon, que defende o fato do povo receber apenas migalhas das riquezas do império, sendo a verdadeira riqueza retida nas mãos dos aristocratas:

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Então ouça: você poderia ser tão rico quanto todos os outros colegas seus; mas esses eternos aduladores do povo lhe tiram os meios. Você reina sobre uma porção de cidades, desde o mar Negro até a Sardenha, e sua única sa-tisfação é esse salário miserável; e eles ainda lhe pagam avarentamente e gota a gota, como o óleo na mecha de um lampião; na realidade eles querem que você seja pobre. (Aristófanes, As Vespas, 695-705)

Para Trabulsi (2016, p. 29), mithos, banquetes, sacrifícios, banhos e outras edificações usadas pelo povo têm grande importância do ponto de vista simbólico e trazem em si satisfações reais no campo do sensível. Assim, a com-binação entre poder marítimo e o poder do povo na cidade criou uma situação confortável em que quase inexistia o risco da fome, pois a talassocracia assegura-va o abastecimento de grãos a preços estáveis. É inquestionável que a democracia ateniense possibilitou um ganho material para o demos, configurando uma de suas principais conquistas percebidas de imediato.

A democracia antiga alargou o número de beneficiários a uma quantidade de pessoas muito maior do que todos os regimes antes dela, muito maior do que todos os regimes não democráticos de seu próprio tempo, assim como de todos os regimes que existiram entre eles e as nossas democracias. (Trabulsi, 2016, p. 30).

No regime democrático, a melhoria de vida do cidadão está aliada ao exercício da liberdade (Ober, 2015) e, por isso, o governo cumpre o seu objetivo ao conferir ao povo o poder de realizar ações de seu interesse. O autor do opús-culo, por sua visão pragmática sobre democracia, concorda com isso, mesmo com as críticas e insatisfações manifestadas pela elite, que mesmo recebendo partes dos ganhos da talassocracia se sentia prejudicada por dividir o poder com o demos.

O olhar pragmático do autor não foi capaz de minimizar a imagem negativa do demos, tão forte nos círculos aristocráticos. A caracterização do povo se dá por meio de adjetivos negativos como πονηρός10 (ralé), πένης11 (pobres) e χείρους12 (os de condição inferior), como bem exemplifica a passagem 1.4:

Há quem se impressione com o fato de em diversas circunstâncias se conce-derem mais benefícios à ralé (πονηρούς), aos pobres (πένησι) e aos populares (δημοτικούς) do que à elite, mas é exatamente ao defender esta prática que eles preservam a democracia. Os pobres (πένητες), os populares (δημόται) e

10 πονηρός, ά, όν (adj.): difícil, mal, vicioso.11 πένης, ητος (adj.): pobre, indigente, que trabalha para viver; pobre de, que precisa de.12 χείρων, ων, ον (adj.): mais fraco, de raça ou de condição inferior; mais malvado.

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os de condição inferior (χείρους), quando prosperam, por serem muitos os que constituem este grupo, reforçam a democracia; mas quando são os ricos e a classe alta a prosperar, os populares armam contra eles uma feroz oposição.

A utilização desses termos serve para caracterizar o demos em termos econômico, moral e político e por isso não devem ser considerados como sim-ples sinônimos. A caracterização moral do povo se dá pelo termo πονηρός, a econômica por πένης e a política por δημοτικός. Essas fronteiras se mesclam no termo χείρων que indica tanto uma ambiguidade econômica quanto moral. O termo mais utilizado para caracterizar o demos é πονηρός, que tem dez ocor-rências distribuídas nos parágrafos: 1.1; 1.4; 1.5; 1.6 (2x); 1.7; 1.9; 1.14; 2.19 (2x). A maioria se concentra na primeira parte do opúsculo, momento em que são demonstrados o funcionamento da democracia ateniense e os motivos para o povo ser beneficiado no regime. Já πένης tem cinco ocorrências (1.2; 1.4 (2x); 2.9; 2.18) e, na metade delas, aparece correlacionado a πονηρός, já as demais apa-recem no contexto em que se demonstra os benefícios do povo, como na partilha dos sacrifícios públicos (2.9) ou o tratamento nas comédias, sendo o povo menos criticado do que a elite (2.18). O termo χείρων tem uma ocorrência menor, apa-recendo duas vezes (1.4; 3.10), no contexto em que se deprecia àqueles que irão apoiar a decisão do povo, pois ele tende a escolher os piores cidadãos. O demos também é caracterizado por sua ignorância (ἀμαθία, 1.5 (2x); 1.7); desordem (ἀταξία, 1.5), loucura (μαινόμενος, 1.9), perversidade (πονηρία, 1.5; 1.7).

A elite, por sua vez, é caracterizada positivamente, tendo associadas a ela palavras como mérito (ἀρετή, 1,7; 2.19); nobre (χρηστός, 1.1; 1.2; 1.4 (2x); 1.5; 1.6; 1.7; 1.9 (2x); 1.14 (5x); 2.19 (2x)); sabedoria (σοφία, 1.7); rico (πλούσιος, 1.2; 1.4; 1.13 (3x); 1.14; 2.10; 2.14; 2.18), poderoso (δυνατός, 2.8) e afortuna-do (εὐδαίμων, 2.10). Também encontramos os superlativos “o mais excelente” (βέλτιστος, 1.5 (2x), 1.14; 3.10; 3.11 (2x)); “o mais poderoso” (δυνατωτάτός, 1.3) e “o mais competente” (δεξιωτάτος, 1.6; 1.9).

Além do demos e da elite, outros habitantes da cidade são caracteri-zados no opúsculo. Metecos e escravos são descritos como possuidores de um estilo de vida muito próximo a dos cidadãos, pois em Atenas o povo não se veste melhor do que os escravos e metecos e sua aparência também em nada é melhor (1.10). Segun-do Pseudo-Xenofonte, esta seria a razão para a existência de uma lei que proíbe castigar fisicamente os escravos, pois haveria o risco de agredir um cidadão ao confundi-lo com um escravo. A boa condição de vida dos escravos é assegurada pelo império marítimo (1.11), que, por sua vez, é dependente da escravidão.

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A construção da imagem do demos, da elite e demais habitantes da cidade segue critérios basicamente econômicos, num claro movimento de oposi-ção da elite com relação aos demais. As boas condições de vida do demos, escravos e metecos são asseguradas pelo regime democrático e por isso a preferência deles por esse regime. A relação entre formas de governos e critérios econômicos aparece na Política de Aristóteles, em que observa-se a verdadeira oposição nos regimes reside na riqueza e pobreza:

A verdadeira diferença entre oligarquia e democracia é a pobreza e a riqueza. É inevitável que quando o poder se exerce em virtude da riqueza, quer sejam poucos ou muitos, trata-se de uma oligarquia; quando os pobres governam, trata-se de uma democracia. Acontece, porém, que os ricos são escassos e os pobres numerosos. (Aristóteles, Política, III, 1280a)

Durante a maior parte da história da Grécia Antiga, prevaleceu re-gimes oligárquicos. Isso, somado ao fato de a pobreza ser vista como algo abo-minável (Trabulsi, 2016, p. 12), explica a construção de um pensamento que alie pobreza à falta de educação e, consequentemente, à incapacidade do povo de governar. A essa ideia, associa-se ainda a de que o povo seja ignorante, volúvel, instintivo e grosseiro. Portanto, a caracterização do demos por parte dos aristocra-tas sempre será hostil (Aristóteles, Política, V, 1310a).

A inovação da Constituição dos Atenienses de Pseudo-Xenofonte advém de um esforço para o entendimento da democracia que vá além da caracterização negativa do demos. De certa forma, há um elogio da democracia por alcançar seu objetivo e possibilitar a intensa participação daqueles que são importantes para manutenção material do regime. A ligação entre democracia e império marítimo assegura ao demos a possibilidade de construir um governo baseado na liberdade (1.6, 1.8), nas leis e na igualdade, graças à rotatividade dos cargos e ao seu acesso via sorteio. Essa visão de democracia, coincide com a proposta depois por Aris-tóteles. Segundo o filósofo, o objetivo da democracia é garantir a liberdade e isso acontece devido ao poder exercido pelo demos:

O fundamento do regime democrático reside na liberdade, tal como se costu-ma dizer; com efeito, dizem alguns que é apenas neste regime que se partilha da liberdade, e que nisso consiste o fim de toda a democracia. Ora, um dos atributos da liberdade consiste em ser governado e governar em alternância (....) o que acontece por via disso nas democracia é que os pobres são mais poderosos que os ricos, pois são em maior número, e o que prevalece é a opinião da maioria. (Aristóteles, Política, VI, 1317b)

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O opúsculo apresenta uma forte visão política da realidade e com grande pragmatismo: Trata-se de um realismo político em estado puro, e o resultado é uma grande lucidez na análise política (Trabulsi, 2016, p. 14). A intenção da democracia é a defesa do interesse do povo, numa luta constante entre duas ordens, demos (os mais pobres) e a aristocracia (os ricos), pela hegemonia política da cidade. Para a aristocracia conseguir ocupar cargos importantes, deveria conciliar-se politi-camente com o povo, lhe assegurando os benefícios da exploração do império, mesmo que isso, na visão de alguns conterrâneos, seja apenas migalhas.

Para o autor do opúsculo, o povo é capaz de conhecer seu interesse e lutar por ele através da criação de mecanismos políticos que possibilitem acesso ao poder e, com isso, a divisão das benesses do império marítimo, trazendo uma melhoria real para sua vida material e um ganho psicológico à medida que incre-menta o sentimento de pertencimento à cidade por meio da participação política. Para tanto, é necessária uma participação popular efetiva, que é expressa na sua cultura política da participação direta (Trabulsi, 2016, p. 14).

A participação popular é a experiência de uma coletividade que funda uma soberania sobre si própria ao atribuir uma autoridade de deliberar sobre o justo e o injusto (Detienne, 2014, p. 134). Ao deliberar, o demos cria os valores norteadores da democracia (participação, liberdade e igualdade), que permane-cem como referenciais até a atualidade, pois ao pensarmos em democracia evo-camos uma determinada forma de expressá-los. Para nós, liberdade e igualdade estão conjugadas e alcançam seu pleno sentido apenas quando juntas (Castoria-des, 2002, p. 272). Elas, aliadas à justiça, formam a base do que consideramos uma vida digna. Para os gregos, além disso, tem-se as ideias de belo e o bom (kalos kagathos), renome (kuos e kléos) e virtude (arete), todos elementos formativos de uma boa vida (Castoriades, 2002, p. 273). O exercício da democracia molda o âmago do cidadão, numa expectativa do exercício da liberdade e da igualdade, aliada a condições materiais que lhe permitem alcançar o belo, o bom, o renome e a virtude. O desafio das sociedades contemporâneas ainda é aliar esses ele-mentos, principalmente a liberdade, igualdade e justiça, permitindo uma ampla participação popular e que o cidadão se reconheça nessa participação como um sujeito ativo, e isso se torne um traço constituinte de sua identidade.

Pensar a democracia é refletir sobre quem exerce a soberania neste regime, independentemente se é uma democracia real ou idealizada. Quando o povo é caracterizado exercendo a soberania, se sobressai uma visão negativa so-

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bre ele. A principal acusação contra o povo é sua ingerência e ignorância, que conduz a ações nefastas para a coletividade. Ainda hoje, esse é um dos pilares das teorias antidemocráticas e é usado nas críticas a democracia, em especial, quando se tem um forte apelo para mudança de governo. Infelizmente, na conjuntura recente brasileira, essa acusação ganha mais força nas manifestações públicas e privadas, como demonstra a corriqueira frase o “povo não sabe eleger”.

O fato do povo não saber eleger não deslegitima a democracia em si, e deve-se buscar refletir sobre os motivos e expectativas do povo com rela-ção aos seus governantes eleitos. Trazer a discussão de Pseudo-Xenofonte para o cenário brasileiro é demonstrar a possibilidade de se defender a democracia, mesmo com a caracterização negativa do povo e também de se perceber que essa caracterização é uma construção realizada pelas elites, que, de uma forma ou de outra, sempre se mantém no poder. Portanto, a caracterização negativa do povo não pode servir de argumento para a destituição da democracia, que deve ser en-tendida como um espaço de negociação entre ricos e pobres, em que os últimos têm voz e assim capacidade de expressar suas demandas.

A obra de Pseudo-Xenofonte apesar de representar o demos como “ignorante, volúvel e interesseiro”, demonstra sua capacidade de constituir um governo em que a soberania estava pautada numa busca pela igualdade, nas deli-berações e na instituição da justiça. Além disso, o opúsculo também apresenta a força da democracia na intensa participação popular, sendo o povo o elemento fundamental para sustentação do regime, seja em termos materiais seja de seu funcionamento institucional. Portanto, mesmo com um conflito de dois grandes grupos: os ricos e os pobres, a democracia prevalece norteada pelos valores liga-dos a liberdade e igualdade. A prática democrática é uma resposta a esse conflito, que leva à acomodação dos interesses dos grupos.

A longevidade da democracia ateniense indica que ela foi uma respos-ta ético-política a determinados problemas que eram vivenciados. Mesmo quan-do a democracia recebe ferrenhas críticas sobre seu funcionamento, ela é capaz de fornecer ao homem um projeto de construção que visa a autonomia, aprimo-ramento ético e moral e participação direta e efetiva nos processos decisórios.

Voltar o olhar para a crítica antiga à democracia é perceber este regi-me como um campo de negociação e de conciliação pautado na busca da igual-dade política. Atualmente, quando a democracia brasileira recebe crítica de todas as frentes, é salutar ter essa percepção a partir de uma fonte que ressalte a cultura

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política da participação direta, da qual grande parte da população brasileira se sente excluída, e aprimorar o exercício da cidadania em nosso país.

Portanto, a democracia é o regime pautado na participação política que abre espaço para o maior número de pessoas se expressam com seus atos e suas palavras. Valorizar este aspecto é acreditar que ela permite a criação de espaço e tempo públicos, que permitem a coletividade pensar e repensar sobre si mesma, sendo um mecanismo de criação de sua identidade e da busca por seus valores. A democracia sempre estará ligada aos ideais de liberdade, igualdade e justiça, que não devem ser encarados como mitos, mas algo de passível realiza-ção (Castoriades, 2002, p. 270). Esses ideais não são unívocos e estão em jogo, num processo de constante disputa de tal maneira que são sempre revisitados e repensados. Mesmo com este jogo, a democracia consegue instituir o debate a respeito liberdade, justiça, equidade e de igualdade dentro do funcionamento de suas próprias instituições.

A democracia ateniense, apesar de ser alvo de intenso estudos da his-toriografia ao longo de vários séculos, ainda se mostra capaz de produzir refle-xões pertinentes para os dilemas contemporâneos. Assim, a ela não deve ser vista como um modelo, mas um gérmem (Castoriades, 2002, p. 280), para nos impulsionar na construção da democracia que almejamos.

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A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA, ÉTICA E FELICIDADE, DE ACORDO

COM A VISÃO TELEOLÓGICA DE ARISTÓTELES

Alexsandro Melo Medeiros1

INTRODUÇÃOPara o filósofo grego Aristóteles tudo na vida tem um propósito, tudo

na vida visa um determinado fim. O propósito da medicina é a obtenção da cura. O propósito da arte é a busca pelo belo. O propósito “da construção naval é um navio, o da estratégia é a vitória e o da economia é a riqueza” (ARISTÓTELES, 1984, 1094a 9-8) 2. Mas de todos os propósitos, qual é aquele que é buscado e almejado por todos? A resposta dada pelo filósofo é que o propósito da vida de todos é a busca pela felicidade (eudaimonia)3. Com efeito, se perguntarmos a qual-quer pessoa, seja médico, filósofo, artista ou o cidadão comum, se ele quer ser feliz, é evidente que obteremos como resposta um “sim”: “quase todos estão de acordo, pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o bem agir como o ser feliz” (id., ibi-dem, 1095a 18-20). Consoante sua doutrina teleológica e metafísica fundamental, todo ser tende necessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade. Se a própria Natureza não age sem propósito, tampouco o homem. É o que vemos logo no início da Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1984, 1094a 1-5):

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia/Universidade Federal do Amazonas. Professor de Filosofia da Universidade Fe-deral do Amazonas. Bolsista e Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas. Contato: [email protected] Para as citações da obra de Aristóteles, utilizou-se as referências numéricas existentes na obra, de preferência ao número da página. Tal referência facilita a busca pela citação em edições diferentes daquela utilizada neste texto, independente do número da página, desde que a edição consultada também apresente as referências numéricas que aparecem no corpo do texto.3 Chih (2009, p. 11 – grifo do autor) ressalta que o conceito de eudaimonia, embora traduzido por felicidade, consiste muito mais em “uma atividade prática que envolve o uso de nossas disposições e de nossas capacidades psíquicas do que como um sentimento momentâneo, um estado ou uma emoção como quando alguém se declara ‘feliz’, porque sentiu a alegria de uma vitória numa disputa atlética”. O conceito de eudaimonia, portanto, vai além da ideia de uma emoção passageira ou momentânea.

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Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer, e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que as coisas tendem. Mas observa-se entre os fins uma certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos distintos das atividades que os produzem. Onde existem fins distintos das ações, são eles por natureza, mais excelentes do que estas.

Todas as ações humanas visam um fim com o propósito de obter um bem. E esse bem, como uma finalidade própria da vida humana, é a eudaimonia (felicidade). Mesmo que a ideia de felicidade seja diferente para cada pessoa, como de fato sucede, o fato é que todos querem e desejam uma vida feliz.

Diferem, porém, quanto ao que seja a felicidade, e o vulgo não o concebe do mesmo que os sábios. Os primeiros pensam que seja alguma coisa simples e óbvia, como o prazer, a riqueza ou as honras, muito embora discordem entre si; e não raro o mesmo homem identifica com diferentes coisas, com a saúde quando está doente, e com a riqueza quando é pobre (ARISTÓTELES, 1984, 1095a 20-25).

Se todos querem e almejam uma vida feliz, nada mais justo do que então se perguntar acerca dessa tal felicidade. Afinal, o que é a felicidade, o que é uma vida feliz? E acima de tudo, o que fazer para alcançar uma vida boa e feliz? São questões como estas que são levadas à cabo pelo filósofo logo no primeiro livro de sua obra magistral Ética a Nicômaco. E é significativo que um livro sobre ética trate da questão da felicidade antes mesmo de analisar quais são e o que são as virtudes, pois a resposta dada por Aristóteles de como alcançar uma vida feliz, como veremos, passa pelo bom uso da razão e das virtudes4.

O cerne da argumentação de Aristóteles passa pela análise daquilo que é próprio do ser humano pois, conhecendo sua natureza, é possível saber o que fazer para encontrar sua realização. Aristóteles analisa então o que faz parte da natureza humana e conclui que homem é o único animal capaz de reflexão, “de refletir sobre suas ações passadas, presentes e futuras segundo qualidades que, além de manifestarem prazer e dor, manifestam também o útil e o nocivo, o justo e o injusto, o bem e o mal” (LOPES, 2004, p. 12). O homem não é apenas um ser dotado de apetites, como os outros animais, nele existe a razão, a capaci-dade de reflexão. “Por isso, ele não vive apenas para satisfazer as exigências natu-rais de sua animalidade, mas, principalmente, vive para exercer-se segundo o que

4 O argumento de que a felicidade é uma atividade conforme a virtude encontra-se tanto no Livro I da Ética a Nicômaco, como é retomado também no Livro X da obra.

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há de melhor nele – a sua racionalidade” (LOPES, 2004, p. 19). Sendo a função característica do homem e que claramente o distingue dos demais seres vivos a racionalidade, é na realização dessa função que ele encontra seu maior bem.

O simples fato de viver é, evidentemente, uma coisa que o homem com-partilha, inclusive, com os vegetais; ora, o que nós procuramos é o que é próprio ao homem. Então, devemos deixar de lado a vida de nutrição e a de crescimento. A vida sensitiva viria em seguida, mas essa ainda parece comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, portanto, uma certa vida prática da parte racional da alma, a qual pode ser encarada, de um lado no sentido em que é submissa à razão e, de outro, no sentido em que possui a razão e o exercício do pensamento (ARISTÓTELES, 1984, 1097b 33).

Aristóteles, portanto, ao estabelecer uma divisão das partes da alma, conclui que ela é dotada de uma parte racional e outra irracional. A parte irracio-nal é comum a todos os seres vivos e inclui a alma vegetativa e a alma apetitiva.

Ao falar da alma (psykhe) na Ética a Nicômaco, Aristóteles a divide em três partes: a racional, que possui o princípio racional (tò lógon), e a irracional (tò álogon), sendo que nesta última existe a faculdade desiderativa (tò orektikón) e a vegetativa (tò phytikón). A faculdade vegetativa é comum a todos os seres vivos que assimilam alimentos, é a faculdade responsável pela nutrição e pelo crescimento, enquanto a faculdade desiderativa, que pode ter a participação do elemento racional, se refere à parte da alma relacionada às paixões (pathé) e aos desejos (epithymías) (CATUNDA, 2008, p. 130).

No homem surge a parte racional, a atividade da razão, que o diferen-cia dos demais seres vivos. Visto ser a razão a essência característica do homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e sendo disto consciente. Agir conforme a razão é agir de acordo com o que há de melhor no homem e, assim, consegue ele a felicidade e a virtude, que é precisamente uma atividade confor-me à razão (como veremos mais adiante), isto é, uma atividade que pressupõe o conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é necessária à virtude, e a esta é necessária a razão.

Aristóteles não ignora que existem formas diferentes de pensar e en-tender a felicidade como já vimos acima e é sobre estas questões que ele irá se debruçar antes de demonstrar a sua concepção de felicidade que, como dissemos, está de alguma forma relacionada com princípios éticos e morais e com a vida em sociedade.

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Passemos então a analisar quais são esses diferentes tipos de felicidade para depois então compreender como essa felicidade só pode realizar-se no seio de uma comunidade política e orientada por valores e princípios éticos. Veremos então como Aristóteles, baseado em sua concepção teleológica de que tudo visa um fim,

construiu um sistema de preceitos e condutas que orientam as pessoas a agirem retamente buscando um ideal de felicidade baseado na convivência harmoniosa na cidade, de forma que a natureza do homem seja moldada e encontre completude no âmbito da política e da ética (AMARAL; SILVA; GOMES, 2012, p. 19).

OS TIPOS DE FELICIDADEDentre os diferentes tipos de felicidade Aristóteles passa a considerar

aquelas que são bem evidentes. Existem aqueles que identificam a felicidade com a riqueza, outros com o prazer e outros ainda com as honrarias. Ora, quem não acredita que a felicidade está, de alguma forma, relacionada com o bem estar material e que, quanto mais dinheiro, maior a felicidade que a vida proporciona? E quem não sente um prazer indescritível ao receber algum tipo de honra, so-bretudo em uma sociedade como a nossa que valoriza o espetáculo e a exposição pessoal?

Todavia, para Aristóteles (1984, 1095b 14-15), a felicidade não está nos prazeres.

A julgar pela vida que os homens levam em geral, a maioria deles e os homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos gozos. (...) A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial.

Para aqueles que identificam a felicidade com o prazer, Aristóteles não nega que os prazeres materiais e físicos sejam agradáveis. O que ele ressalta é que tais satisfações não são suficientes para garantir a felicidade porque depen-dem de um fato externo aos indivíduos. “[...] a vida feliz des crita na Ética não é a dos gozos materiais ou físicos, mas Aristóteles insiste que ela é igualmente uma vida agradabilíssima porque contém em si o máximo das satisfações possíveis” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 254). É motivo de felicidade, por exemplo, o prazer da especulação filosófica ou o prazer da prática das virtudes que é agradá-

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vel para quem as possui e prática. Segundo Aristóteles (1984, 1099a 17 e 21), “o homem que não se regozija com as ações nobres não é sequer bom [...] Sendo assim, as ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas”.

A questão do prazer é retomada no Livro X da Ética a Nicômaco: “jul-ga-se que ele [o prazer] está intimamente relacionado com a nossa natureza hu-mana [...] essas coisas nos acompanham durante a vida inteira, com um peso e um poder próprios tanto no que toca à virtude como à vida feliz” (ARISTÓTE-LES, 1984, 1172a 19 e 24-25). Há a opinião daqueles que julgam que o prazer é o bem; para outros ele é mal, pois aqueles que se inclinam para uma vida de prazeres terminam como seus escravos. Consoante com os argumento já desen-volvido no Livro I, o filósofo pondera que “nem o prazer é o bem, nem todo prazer é desejável, e que alguns prazeres são realmente desejáveis por si mesmos” (ARISTÓTELES, 1984, 1174a 9-10). No mesmo Livro X encontramos também a ideia de que, embora Aristóteles não identifique a felicidade com o prazer, ele também não nega que haja prazer na busca pela felicidade, por exemplo, quando se trata da atividade filosófica e contemplativa “julga-se que o seu cultivo oferece prazeres maravilhosos pela pureza e pela durabilidade, e é de se supor que os que sabem passem o seu tempo de maneira mais aprazível do que os que indagam” (ARISTÓTELES, 1984, 1177a 25-27).

No que concerne à felicidade, ela também não está na riqueza. “Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não é evi-dentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa” (ARISTÓTELES, 1984, 1096a 6-8).

Quem pensa que a felicidade possa estar na riqueza esquece que o bem estar material é apenas uma forma ilusória de felicidade, pois se assim o fosse a felicidade dependeria de algo que é externo ao ser humano e esse é um dos fatores que Aristóteles irá levar em consideração para definir o que seja uma vida feliz: a felicidade não pode depender de algo que é externo aos homens, pois assim sendo, a felicidade seria algo que depende menos de si mesmo do que de algo acidental.

[...] se a felicidade fosse identificada com a fortuna, ela seria dependente das circunstâncias externas. Mas sabemos que a felicidade depende, em muitos casos, da escolha deliberada, escolha esta que implica um certo uso prático da faculdade racional. Logo, não poderia conceber a felicidade como algo dependente daquelas circunstâncias extrínsecas que escapam às decisões do indivíduo (CHIH, 2009, p. 64).

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A felicidade também não se encontra na honra, pois a honra “depen-de mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado” (ARISTÓTELES, 1984, 1095b 24-26).

No Livro X da Ética a Nicomâco, Aristóteles (1984 1176b 10-30) desen-volve ainda a ideia de que a felicidade não está na recreação, no divertimento ou no lazer. “A felicidade não reside, por conseguinte, na recreação; e seria mesmo estranho que a recreação fosse o fim, e um homem devesse passar trabalhos e suportar agruras durante a vida inteira simplesmente para divertir-se” (ARIS-TÓTELES, 1984, 1176b 27-30). O divertimento é uma espécie de relaxamento e, naturalmente, precisamos desse tipo de relaxamento, porque não se pode tra-balhar incansavelmente, todavia, nem o divertimento nem o relaxamento é um fim em si mesmo e não é esse o caso que estamos buscando para definir o que seja a felicidade.

“Diferentemente da honra, da inteligência e da riqueza, a felicidade é auto-suficiente (autárkeia)5, pois não necessita de bens exteriores para ser atin-gida, ao passo que os outros meios são buscados em favor de distintos bens” (AMARAL; SILVA; GOMES, 2012, p. 15). A felicidade é um bem em si mesmo e não em função de nada que lhe seja exterior. “A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes [a honra, o prazer, a riqueza], nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria” (ARISTÓTELES, 1984, 1097b 6-7).

O fato de ser um bem em si mesmo não significa que os bens exterio-res não ajude a ter uma vida feliz, como pondera Hobuss (2015, p. 27-28)

O sábio, ele também, possui a necessidade de bens exteriores, como diz Aris-tóteles, ele é humano, “e a natureza humana não é plenamente autossuficiente pelo exercício da contemplação, mas é necessário que o corpo esteja em boa saúde, que ele receba alimentação, etc.”, não sendo possível, “sem a ajuda dos bens exteriores, ser perfeitamente feliz”. Não há a necessidade de muitos bens, tão somente o imprescindível para viver uma vida de acordo com a virtude.

De qualquer modo, é preciso encontrar se não existe algo que torne o homem feliz por suas próprias ações e dependa muito mais de si mesmo do que de fatores externos a sua existência.

5 “[...] definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de todas as coisas [...] A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação” (ARISTÓTELES, 1984, 1097b 14-17 e 20-21). A ideia de auto-suficiência da felicidade também é retomada no Livro X da Ética a Nicômaco, (1984, 1176b 5).

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Mas então o que é ser feliz para Aristóteles? A felicidade (eudaimonia) é uma atividade conforme a reta razão e o uso das virtudes. Seguimos aqui a ideia de uma complementaridade da noção de felicidade enquanto uma atividade teo-rética (contemplativa, intelectual) e uma atividade prática, que faz uso da virtu-de, sejam elas as virtudes dianoéticas (prudência, sabedoria) ou éticas (coragem, temperança, etc.). “Compreende-se que as virtudes éticas sejam tão necessárias quanto as virtudes intelectuais, para constituírem a atividade fundamental da na-tureza humana” (CHIH, 2009, p. 62). Uma concepção que considera a felicidade a composição de todos estes fatores, sem excluir o outro, que poderíamos cha-mar de inclusivista (ACKRILL, 1999).

À concepção de felicidade como uma atividade conforme à virtude e racional, é preciso acrescentar o elemento contemplativo, teorético, intelectual, no sentido de que nos aproxima daquilo que é divino em nós. “Isto é, ela faz com que a nossa vida se assemelhe à vida dos deuses; essa vida é possível na medida em que nos imortalizamos, em virtude da própria existência da razão (nous) divi-na que há em nós” (CHIH, 2009, p. 66). Todavia, é preciso ressaltar, que não é uma contemplação desprendida do mundo concreto. O homem contemplativo, embora exercita aquilo que há de tal modo excelente que o aproxima dos deuses não é um homem liberto das contingências da vida e, embora o homem con-templativo não necessite de muitas coisas para o exercício de sua atividade, ele deseja praticar ações conforme as virtudes pois sabe que convive com os outros de sua espécie. Assim, “a atividade moral (praxis) e a atividade intelectual (theoria) se complementam, constituindo a vida completa do homem feliz” (CHIH, 2009, p. 71 – grifos do autor).

Temos então uma vida reflexiva pautada na ação virtuosa cujo objeti-vo é auxiliar-nos na realização da felicidade. E essa felicidade só pode ser alcan-çada “de modo excelente e virtuoso por uma praxis [...] isto é, por uma atividade efetiva, concreta e atualizante, que não se restringe apenas ao conhecimento” (CHIH, 2009, p. 17 – grifo do autor).

Ao definir a felicidade como uma atividade da razão e atrelada a prá-tica das virtudes, Aristóteles se faz coerente com a ideia de que a felicidade deve ser algo buscada em si mesmo e que não dependa de nada exterior. Afinal, temos aqui algo em torno do qual não há nada que nenhum homem não possa alcan-çar e que não dependa exclusivamente de suas disposições interiores. O uso da razão, da reta razão, da razão com equilíbrio, não é algo que dependa de alguém ou de qualquer objeto exterior, é algo que depende única e exclusivamente de si

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mesmo. O mesmo pode ser dito em relação a prática das virtudes. Se escolho ser temperante ou intemperante, corajoso ou covarde, não é algo que dependa muito mais de si mesmo do que de fatores externos. E, nesse caso, uma vida feliz é algo que pode ser alcançada por todos, sem exceção, porque a felicidade não depende de bens materiais ou da satisfação de prazeres passageiros. Uma vida feliz é algo que pode ser alcançada por todos, desde que homens sábios e racionalmente equilibrados.

Não é de se admirar também que a prática da virtude esteja de alguma maneira relacionada com o uso da razão. Aristóteles não disse que basta o uso da reta razão ou que basta a prática da virtude para se tornar uma pessoa feliz. Ele conjugou estes dois fatores porque, na visão do estagirita, a prática da virtude está de alguma forma ligada com o uso da razão. O homem virtuoso é aquele que é capaz de agir de acordo com a razão e, por conseguinte, dominar suas paixões e se afastar dos vícios (kakós)6. O homem que se deixa guiar pela razão se torna temperante, não se deixando dominar pelos desejos em excesso ou pela falta deles. Os homens são capazes de agir de acordo com o vício ou a virtude, deixar-se dominar pelos vícios ou governar-se de acordo com a parte racional da alma.

A composição dessas duas faculdades, o apetite e a razão, por um lado, distin-gue os homens dos deuses, cuja natureza, por não ser composta, não envolve bons ou maus apetites: a bem-aventurança dos deuses não exige atos de jus-tiça, de coragem, de temperança, de liberalidade etc.. Por outro, distingue os homens dos animais irracionais, que não possuem vício ou virtude, porque nunca agem em desacordo com sua natureza, também composta, mas não racional, e realizam sua essência de acordo com suas especificidades naturais (LOPES, 2004, p. 20).

A VIDA FELIZ E O VIVER BEM EM SOCIEDADEFalta analisar agora a vida feliz em sociedade. Para um filósofo grego

como Platão e Aristóteles é inconcebível pensar a vida unicamente do ponto de vista individual. Os filósofos gregos não separam o indivíduo do cidadão, por isso, a busca por uma vida feliz passa necessariamente pela vida em comuni-dade, pela vida na polis, pois o homem é um animal político – um zoon politikon (ARISTÓTELES, 1985) – e não pode se afastar da vida em sociedade. Não só a existência humana deve ser pensada em sociedade como deve visar o melhor dos fins, ou seja, uma vida feliz. “E isto, como é de ver, concorda com o que dissemos no princípio, isto é, que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa

6 Em Reale (2007, p. 107 e 108) há um elenco de virtudes e vícios.

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ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações” (ARISTÓTELES, 1984, 1099b 28-31).

A ciência responsável pelo estudo da polis é a política que, enquanto ciência prática, está diretamente relacionada com a ética7: “elas apenas se diferen-ciam pelo fato de a primeira apresentar uma dimensão social, coletiva, enquanto a outra se restringe ao particular, individual” (AMARAL; SILVA; GOMES, 2012, p. 12). E agora percebemos também que, além de não se dissociar da ética, a po-lítica deve fazer com que os cidadãos sejam nobres, capazes de boas ações, e, fe-lizes. À ciência política cabe investigar as ações belas e justas, o bem mais elevado dentre os bens práticos, o bem humano, a ser promovido na cidade. “Aristóteles não deixa margem a dúvidas: o bem humano pertence à ciência política. E esta é uma ciência prática, na medida em que legisla sobre as ações que devem ser praticadas ou não. Investiga as ações belas e justas a serem promovidas na polis” (CHIH, 2009, p. 19).

É na vida em comunhão com os demais que os indivíduos encontram sua mais plena realização. Se individualmente existe um propósito para as ações humanas, o mesmo pode ser dito em relação a vida social e, para a vida na cidade (na polis), a finalidade é o viver bem em uma comunidade.

A finalidade da política é o bem da cidade e o bem de seus cidadãos, que só pode ser alcançado mediante ações boas e nobres. “Vale dizer que o modo próprio de realização da cidade não se configura, expressamente, não recebe sua forma, sem a latitude de autonomia ética desse animal político, o homem” (LOPES, 2004, p. 37). Por isso a ética e a política estão diretamente relacionadas e o viver bem em comunidade está diretamente relacionado com a vida virtuosa e sábia de seus cidadãos.

o homem que Aris tóteles analisa e de quem descreve os comportamentos corretos é sempre pensado por ele como o cidadão de uma sociedade orga-nizada, uma pessoa que vive entre concidadãos em relação aos quais age e se comporta de modo a permitir que se chame a sociedade boa ou nociva. O agente moral da ética de Aristóteles é antes de tudo e sempre um cidadão da polis (DONINI; FERRARI, 2012, p. 250).

A felicidade está diretamente relacionada com o espaço público da polis. Não se pode ser feliz vivendo no isolamento, mas na vida em comunidade:

7 Tal como a política, a ética também é uma ciência prática. “Segundo a classificação aristotélica das ciências, a ética é uma ciência prática porque não tem por objeti vo o mero conhecimento, mas visa também fazer com que nos tornemos bons” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 248). E como ciência prática, a ética deve não apenas investigar o que é o bem, mas o que fazer para nos tornarmos bons.

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“a felicidade não poderá ser apartada do âmbito social e político. É esta a ideia fundamental. Podemos formulá-la da seguinte forma: a eudaimonia é um bem excelente, completo e auto-suficiente, situado no mundo social” (CHIH, 2009, p. 42 – grifo do autor).

Ao buscar um definição do que seja o bem tendo como horizonte o espaço sócio-político da polis, Aristóteles entende que esse bem é o mesmo tanto para o indivíduo quanto para o cidadão e a vida feliz não é possível no isolamento ou em um distanciamento em relação ao espaço da polis.

Não só a política enquanto ciência prática, mas também o político, o homem que exerce a política “goza a reputação de haver estudado a virtude acima de todas as coisas, pois que ele deseja fazer com que os seus concidadãos sejam bons e obedientes às leis” (ARISTÓTELES, 1984, 1102a 9-11). O político deve estudar e examinar a virtude tanto do ponto de vista teórico quanto prático. Do ponto de vista teórico porque sem esse conhecimento ele não terá como fazer com que os cidadãos sejam capazes de boas e nobres ações. Do ponto de vista prático porque, pertencendo a uma comunidade que almeja a vida feliz, ele deve também ser um cidadão virtuoso.

Para que o sujeito possa alcançar a vida feliz, seja enquanto indivíduo, seja enquanto cidadão, ele precisa agir. Sua ação deve ser inserida em uma ativida-de social e ética, pois só assim ele poderá se habituar às ações excelentes.

E dentro dessa atividade social e ética há que se observar a prática das virtudes que, segundo o filósofo, constitui em uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão – para alcançar a felicidade tem grande valor a ideia aristotélica de virtude concebida como hábito racional –, um costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, que deve ser adquirida mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se, mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de fácil execução – assim como o vício.

As virtudes éticas derivam em nós do hábito, pela natureza somos potencial-mente capazes de formá-los e, mediante o exercício, traduzimos essa potenci-lidade em atualidade. Realizando atos justos, tornamo-nos justos, adquirimos a virtude da justiça, que, depois, permanece em nós de maneira estável como um habitus, o qual em seguida, nos fará realizar mais facilmente ulteriores atos de justiça. Realizando atos de coragem, tornamo-nos corajosos, isto é, adqui-rimos o habitus da coragem, que em seguida nos levará a realizar facilmente atos corajosos. E assim por diante (REALE, 2007, p. 105).

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A virtude não é inata no ser humano, mas adquirida pelo hábito8. Na medida em que o homem se habitua a praticar ações virtuosas, ele se torna virtuoso. É praticando a virtude da coragem que ele se torna corajodo, a virtude da temperança que ele se torna temperante. Por conseguinte, a felicidade de-pende dessa disposição para agir virtuosamente, já que a felicidade é concebida como um resultado das açõs virtuosas: “abre-se um campo em que é possível a realização do bem humano. A realização se dá através das ações, principalmente daquelas que são paradigmaticamente virtuosas” (CHIH, 2009, p. 20). É só com o tempo e com a prática que seu caráter vai sendo moldado de acordo com as disposições morais mais apropriadas, serão formadas sua conduta ético-política, a sua qualidade de indivíduo e cidadão virtuoso.

CONSIDERAÇÕES FINAISPara Aristóteles, a felicidade (eudaimonia) é a realização bem-sucedida

da natureza humana: a de animal ético político racional. O homem pode deixar-se dominar por seus apetites e vícios ou agir de forma sábia e procurar viver eticamente e de acordo com sua razão, em uma comunidade organizada segundo a justiça – a cidade, e nisso consiste sua felicidade.

Vimos que para ser feliz o indivíduo deve ser virtuoso. A riqueza e outros bens pertencem à ordem das coisas úteis e podem até favorecer a feli-cidade. Mas se um homem não for bom e não possuir a virtude, mesmo que possua riqueza, poder, todos os bens da fortuna, ele não será feliz, no sentido a que define Aristóteles, pois para o filósofo, a felicidade não se define pela boa fortuna ou pela quantidade de honras ou poder concedidos a uma determinada personalidade.

Todavia há que considerar que a busca pela felicidade não deve ser só apenas uma preocupação individual, mas social e coletiva. E um dos objetivos da política consiste em promover uma vida feliz para seus cidadãos, concomitante-mente com a prática da excelência ou da virtude. A política deve criar as condi-ções necessárias para o exercício das ações nobres de seus cidadãos. A política vai além das deliberações e do julgamento das questões administrativas e relativas à comunidade. A política se ocupa com o exercício das virtudes humanas, para formar o cidadão virtuoso. E o político, aquele que se ocupa da atividade política, deve igualmente ser virtuoso. Somente assim, à medida que todos se tornarem

8 Aqui uma observação merece destaque em relação ao papel da educação na formação do caráter dos indivíduos (embora essa ideia não seja aqui desenvolvida): a educação desempenha um papel fundamental; é papel dos educadores levar a pouco e pouco à formação de uma disposição de caráter virtuoso nos indivíduos.

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cidadãos virtuosos, a felicidade poderá ser alcançada.Finalmente compreende-se porque o homem deve agir de acordo

com a excelência da alma (razão e virtude): para que a sua atividade seja boa, nobre, moralmente virtuosa, desejável enquanto cidadão da polis e em vistas da felicidade.

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MYTH AS CULTURAL TRANSLATION1

Thaïs Flores Nogueira Diniz2

Patricia Christina dos Reis 3

... all the stories would have to be told differently, the future would be incalculable, the historical forces would, will, change hands, bodies, another thinking, as yet not thinkable, will transform the functioning of all society. (Hélène Cixous)

all the male poets write of orpheusas if they look back & expectto find me walking patiently

behind them, they claim I fell into helldamn them, i say.

i stand in my own pain& sing my own song.

(Alta)

We can define myth as an ancient story that is based on popular beliefs or that explains natural or historical events4. All myths operate by modelling reality and many apparently unconnected myths can be shown, by semiotic analysis, to be linked in a paradigmatic relationship. An aspect of substantial significance in the study of myths concerns the relationship between the environment in which myths live and the image of the world that they express. In this sense, myth represents a system of values which belongs to a group, a society or culture, having the possibility to express or translate feelings, thoughts and values of that society or group. As this system of values, it presents elements which give coherence to the group to which it belongs. In the origin of any myth of the modern society there is a sense of lack that must be fulfilled by something which has a double function for the group: either it compensates the existential vacuum or it recounts the group’s own history.

So, each time a myth is expressed in a particular culture, it takes a different meaning, according to the image of the world of that culture. For this

1 O presente artigo resultou de uma pesquisa realizada pelas autoras, enquanto professora e aluna, respectivamente, na Universidade Federal de Ouro Preto. Na ocasião o trabalho foi apresentado no XXIX Seminário Nacional de Professores Universitários de Língua Inglesa e publicado em seus Anais. 2 Pesquisadora do CNPq e professora associada, aposentada, pela faculdade de Letras da UFMG, onde atua como professora colaboradora no programa de pós-graduação em Estudos Literários.3 Professora Assistente de Língua Inglesa do Centro de Estudos Superiores de Parintins da Universidade do Estado do Amazonas. 4 Dictionary of English Language and Culture, Longman, 1992.

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reason, even for the same people, a particular myth can express different meanings in different times. It can thus be said that one myth is capable of changing its “ori-ginal” signification, according to mutable conditions of its expression, that is, the temporal, spacial and sometimes social context of its production. Because of this characteristic of carrying with itself changing meanings, determined by time and place, and also because it can be seen as an element of a system of signification, a myth can be regarded as a kind of intersemiotic translation, subject to all the constraints any translation is.

With this idea in mind, it can be said that mythical material, on being appropriated by, say, literature or any other art, is likely to be transmuted. The way in which this transmutation occurs deserves consideration.

The myth of Orpheus and Eurydice tells the story of a loving hus-band who was such a magnificent musician that even wild animals would stay and listen to him. When his wife, Eurydice, died, he followed her down into Hades and sang to the gods there, who allowed him to rescue her up, as long as Orpheus didn’t look back to see if she was following him. He did look and lost her forever.

According to Charles Segal, the myth of Orpheus, that magical singer, hal-f-man, half-god who was able to move all of nature by his song, expresses the power that words/songs have in impelling us to act and the fear that this fact inspires5.

The most familiar version of the myth is that of Virgil and Ovid, in which Orpheus convinces the gods of Hades to relieve Eurydice but loses her forever. Renouncing women he is torn apart by the Furies. His head and tyre float down the river and are endowed by Apollo with prophetic powers. What these wri-ters dramatize is poetic inspiration and the power of persuasive language.

Later Milton splits the Orpheus voice into two, a mournful and a re-vitalized one, when he wrote “Lycidas”, an elegy written on a friend, a student of great promise. The theme of the poem is the power of death in the premature loss of life of Calliope’s son, Orpheus, to whom Milton compares his friend. But Milton presents the opposite in the shepherd-singer, whose song will be reborn with the morning/life that is approaching. This poem exemplifies one aspect of the Orphic power which contains two poles corresponding to the double role of language: the power of form to master passion and the power of passion to engulf form.

Each age has actualized a different aspect of Orpheus, this protean figure, in myth and art. But underlying all the differences there is a fundamental 5 Charles Seagal in Orpheus: the Myth of the Poet.

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unity: a mythic vision of the unity between life and death as the inseparable po-les of a single reality. It is this unity that enables the Orphic voice to cross from the living to the dead, to move living beings and stones as well, although it always carries the idea that not even his melodious magic could reverse death.

In ancient references to Orpheus, Eurydice always plays a very small role in contrast to the role played by Orpheus. In many versions, the backward glance, his cowardice at dying in the place of his beloved and even his love for Eurydice -symbols of his weakness— are absent while his success is emphasized: the courageous descent into Hades, the rescuing of his dead wife, his taming of animals, stones and even Gods, his teaching of religion, bridging the gap between the living and the dead.

In recent decades there were many revivals of the myth, each with a different focus. Two filmic versions, for example, the French Cocteau’s Or-phée and the Brazilian Marcel Camus’ Black Orpheus both present the journey into the underworld as their central focus. The plays by Anouilh, Eurydice, and by Tennessee Williams, Orpheus descending, focus respectively on Orpheus’ refu-sal to be consoled for the loss of his beloved, and on the contrast between a sensitive artist and the brutal world where he must find his survival. Rainer Maria Rilke’s Sonnets to Orpheus, the most significant modern interpretation of the myth, deals with a particular aspect of it: the drive to transcend the limits of physical matter.

But a renewal of the myth of noticeable importance in the XXth century has taken a different direction: the refocusing of the myth on the figure of Eurydice. In a century when women, discriminated by sexual pre-judices, have tried to make their voice heard, a poem which reverses the genre role deserves to be analysed. According to Alicia Ostriker, the body of poetry by American women, in the last two decades, has the project of defining a female self. She argues that what distinguishes these poets is a vigorous invasion of sanctuaries of existing language, the treasures where our meanings for ‘male’ and ‘fema-le’ are preserved (315). Her conclusion is that as in myth, revisionist mythmaking in women’s poetry may offer one significant means of redefining us and our culture. It is therefore with a poem written in the last decades that this paper deals.

In the XIXth century Robert Browning had already let us hear Eurydice’s voice but only at a moment when she needs Orpheus and feels

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a desperate wish to regain her life and her beloved6. However, many other modern and contemporary women poets such as Hilda Doolittle, Edith Sitwell, Adrienne Rich and Muriel Rukeiser have gone beyond him. They have faced the ancient tradition and reclaimed the myth of the female voice, against the one of the superiority of men. These poems, sometimes written in an aggressive tone, represent striking attempts to expand the awareness of the feminine consciousness.

Indeed, H. Doolittle, writing mainly during the two world wars, although she has mostly remembered for poems that helped define the literary movement called Imagism, wrote long poetic narratives which later developed into a kind of work indebted to a series of contemporary men. Lately her work has been transformed into a mythology that reflected her effort to un-derstand her identity as a woman and a poet. According to Sandra Gilbert, she matured into the recognition that while there was always a challenge in the creativity of the men whom she admired or even adored, the Monster is the Muse, the Creator (1461).

The poem “Eurydice” at first seems to represent only a genre reversal of the speaking- position, for in earlier writings Orpheus always represents the master poet, the one who speaks. His journey downward has been seen as the origin of his knowledge and Eurydice, reduced to a mere representation of an aspect of this mastery. While she is the “bearer of meaning”, he is “the controller”. However, by voicing the poem through Eurydice, H.D. calls into question the logic of representation and creation that supports the Orpheus narrative (Purkiss, 449).

The poem begins with a lament. Eurydice blames Orpheus for his arrogance and ruthlessness. She blames him for his failure to rescue her and for her being sent back to a place “where dead lichens drip”. “You have swept me back”, she says, “why did you turn back” so that Hell should be re-inhabited by me?. To emphasize her feelings of sadness, smallness and subjection before him, the poet describes her place using images related to caves: lichen, cinders and ash. These are set in direct opposition to her desire of liberty, symbolized by her “walking above the earth with the live souls” and “sleeping among the flowers.” Here traditional images for the female body retain their gender identification but their attributes are transformed, so that flowers means force, instead of fragility and earth means creative imagina-6 ”Eurydice to Orpheus: A Picture by Leighton”

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tion instead of passive generativeness. It is Eurydice who says that she would have preferred to live unconsciously resting peacefully with the dead and be forgot-ten, to being rescued being sent back to death again.

In the second part of the poem, she recognizes Orpheus’s arrogance and ruthlessness as manifestations of a narcissistic attitude: What was it you saw in my face? /the light of your own face,/ the fire of your own presence? She claims that what he was looking for when he glanced back was only his own face. As a shadow and a face, Eurydice is reduced to a simple mirror, a mere reflection of the masculine power and she fights against it.

The third part reflects her rage against a tremendous loss, symbolized by the black colour that crosses everything, a loss that pervades the fourth part of the poem through images of confinement (walls, fringes, silence) in opposition to images of fertility and life (yellow saffron, red and golden flowers). In rejecting being regarded as a mere part of the male body, she demands her right to reflect the happiness and freedom that exists in “golden flowers”. This part is connected with the last part of the poem which presents the closed feminine space able to open as a rose: from the darkness of hell she is becoming free as a red rose.

The poet further deconstructs the prior myth, simultaneously constructing a new one which includes, instead of excluding, Eurydice. She also demands Eurydice’s/women’s right for completeness in death, denied by Orpheus because of his authoritative interference. In other words she claims the right to die in peace.

So for your arrogance and your ruthlessnessI have lost the earthand the flowers of the earth,and the live souls above the earth, and you who passed across the lightand reached ruthless;

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you who have your own light,who are to yourself a presencewho need no presence;

yet for all your arrogance and your glance, I tell you this:

such loss is no loss,such terror, such coils and strands and pitfalls of blackness, such terror is no loss

Eurydice reaffirms, through death, the hardship of her own journey and her right to personal integrity, without his interference.

Against the blackI have more fervourthan you in all the splendour of that placeagainst the blacknessand the starky greyI have more light

At the end, she discovers that she can find a selfhood in a kind of hell that is described as feminine, in an explicitly and evocatively sexual image, a hell which... “before I am lost, /. . . must open like a red rose/ for the dead to pass”. She discovers that the realm of the feminine, even whether it is described as hell or death, can be freer than the oppressive life of the masculine one. As in Adrienne Rich’s poem, “I dream I’m the Death of Orpheus”, in which Death, in allusion to Jean Cocteau’s film Orphée, is represented by a woman in black who comes from the underworld through a mirror, Eurydice once more shows her preference for natural death, caused simply by a snake biting, rather than that imposed and brought about by the masculine hero’s selfishness.

H.D.’s poem thus reveals, through women voice, a familiar figure

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from male tradition 5 8 5 that emerges altered. It reasserts the double power of mythic material either in existing objectively or appearing as intimate mate-rial — everything that is unreal to rational consciousness. The poem can thus be classified as a work of revisionist myth, like many written by American women to whom the blame of having always been writing “personally” and “confes-sionally” was imposed. “Eurydice” reflects women’s thoughts and attitudes which have pervaded the beginning of the XXth century society. According to Gilbert, Hilda Doolittle “sought to annihilate the inherited forms and formulas of tradition, [questing], through overt re-creations of matriarchal images as well as through inventive wordplay, for styles and forms that would free them from the burden-some conventions which infected ‘patriarchal poetry’

with the same urgency that marked the work of writers like Woolf and Stein. (. . .) As women were no longer to be primarily defined through their erotic relationship with men, (. . .) the task of women writers was for the first time to trace the prospects and problems of an expanding female intellectual community” (1241-42). The poem by H.D., “Eurydice”, works towards this goal, thus functioning as cultural translation.

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DÁRIO E A UNIVERSALIZAÇÃO DO CONCEITO DE HYBRIS EM OS PERSAS

DE ÉSQUILO. UNIVERSAL PARA QUEM?

Pedro Martins1

INTRODUÇÃONa peça Persas de Ésquilo, o recorrente tema da hybris (desmesura) é

aplicado a personagens históricos, trazendo uma nova camada de interpretação para a teologia do dramaturgo. Dário, rei persa que volta dos mortos para profe-rir um discurso moralizante, empresta a Zeus todas as características de um deus único e universal para os dois povos. Será discutido em que medida o conceito de hybris é tratado de forma universal nesta peça. Para tal, ideias de Edith Hall e Broadhead serão contrastadas. O que torna a hybris universal? O fato de que mesmo quando bárbaros sofrem com ela, os gregos poderem dividir o mesmo sentimento de dor? Ou universal é um produto ideológico forjado para sobrepor uma crença sobre outros povos?

O AUTOR E SUA OBRAPara compreendermos melhor o dramaturgo por trás dos Persas, deve-

mos ressaltar alguns aspectos biográficos de Ésquilo. As fontes que revelam sua vida são escassas e controversas e podem ser divididas em quatro tipos: 1) a Vida encontrada em diversos manuscritos medievais; 2) inscrições como o Marmor Parium; 3) os argumentos anexados a algumas peças; 4) o Fasti Theatri Atheniensis; 5) anedotas e detalhes preservados nos trabalhos de outros autores antigos (IRE-LAND, 1986, pg. 4).

Das discrepâncias encontradas entre as fontes, Ireland (op. cit.) produz a seguinte cronologia, alegando tratar-se de uma cronologia relativamente bem aceita entre os acadêmicos.

1 Doutor em Filologia Grega pela Universidade de Göttingen, Alemanha (2016), mestre em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra, Portugal (2010) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (2008).

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525-4 Nascido em Eupátrida em Elêusis. (Vida. A data é retirada do Mar-mor Parium, o que indica que Ésquilo teria 35 anos de idade na altura da batalha de Maratona em 490 a.C.)

490 Lutou em Maratona (Vida, Marmor Parium).484 Primeira vitória em concursos (Marmor Parium).472 Vitória com os Persas, tendo como choregos Péricles. (Argumento,

Fasti Theatri Atheniensis).c.470 Visita à Sicília. (Vida, Escoliasta em As Rãs de Aristófanes 1028)2

467 Vitória com os Sete contra Tebas. (Argumento)

c. 463 Vitória com As Suplicantes (Pap. Oxy. 2256.3)458 Vitória com Oresteia (Argumento). Retorno à Sicília.

456 Morte em Gela (Marmor Parium, o que indica que Ésquilo teria 69 anos à esta altura).

De acordo com sua Vita 2, Ésquilo teria sido o único dramaturgo a ter o direito de ter suas peças encenadas mais de uma vez. A relação de Ésquilo com a política ateniense é um assunto difícil de ser tratado pois encontramos diferen-tes opiniões sobre as peças do autor. Enquanto Hall (1989, passim) defende a tese de que Ésquilo seja um nacionalista extremista e que a peça Persas endosse um chamado de autonomia identitária, Ireland (1986, pg. 6) argumenta que a obra de Ésquilo foi influenciada pela política de seu tempo, mas esta não teria sido sua preocupação primária. Ou seja, Ésquilo estava mais preocupado com seu ofício de dramaturgo do que com as aplicações políticas de sua obra.

Para efeito de discussão dos Persas, sublinho o fato de Ésquilo ter participado da batalha de Maratona e de, provavelmente, ter estado em Salamina, o que justifica a vívida descrição do mensageiro e todas as descrições de batalha na peça.

OS PERSASA obra tem como cenário a cidade de Susa, povoada apenas pelo

conselho de anciãos, chamados de fiéis dos fiéis e que constitui o coro da peça. Adams (1983, pg. 36) afirma que o coro é o personagem principal da peça, pois

2 A Vita também coloca Ésquilo nas batalhas de Salamina e Plateia, no entanto, Ireland (1986, 4) argumenta que a presença na primeira batalha é plausível, mas a presença na segunda é um tanto obscura.3 A principal razão da viagem seria uma encenação dos Persas na Sicília.4 Anotação do escoliasta à peça Os Acarnenses de Aristófanes 10 e Rãs 868.

4

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é ele quem vai traduzir a dor da perda, tanto na forma passional quanto na visão do Estado que perde, deixando seu testemunho mais vívido. O coro possui uma função clara neste primeiro estásimo de ressaltar a grandiosidade persa, fazendo com que a derrota vindoura tome proporções épicas. Ao valorizar o adversário, Ésquilo acaba valorizando a própria vitória ateniense.

Por outro lado, a rainha apresenta a visão da familiar que teme pelo filho, mas ao mesmo tempo teme pela Pérsia. A rainha Atossa, relatada por He-ródoto, é decisiva para o desenrolar da peça pois ela funciona como pilar de compreensão do mundo grego. Ela se mostra todo o tempo curiosa para saber quem eram aqueles Atenienses, possibilitando assim o coro a fazer uma longa explanação sobre Atenas e seu poderio. Nesta primeira parte da peça, o pânico está instalado no ar pela falta de informações do fronte de batalha. O coro e Atossa dialogam para tentar compreender a força dos inimigos da Pérsia enquan-to aguardam com ansiedade um mensageiro com notícias. Como a audiência já sabia que as notícias que chegariam seriam da pior espécie, Ésquilo prepara ainda mais habilmente seu público para que a notícia da queda dos Persas fosse rece-bida mais como lamento, expressando, assim, uma empatia aos personagens do drama em detrimento de um patriotismo chauvinista.

A segunda parte da tragédia é justamente a recepção da notícia de que a Pérsia havia tombado frente ao exército grego e que, aparentemente, tudo estava perdido. Nesta parte há vívidas descrições do combate que se dera em Salamina. O resultado é a encenação dos gemidos da poderosa Rainha e de seu fiel Coro.

A terceira parte concentra-se na discussão de Dário com o coro e Atossa e será analisada mais detalhadamente neste artigo. A quarta parte mostra a chegada do rei Xerxes em seus farrapos. O coro dialoga com ele e divide toda a sua dor. Este é um genuíno kommos, uma lamentação, e mostra toda a desgraça da sorte persa concentrada em seu causador: Xerxes.

A SITUAÇÃO POLÍTICA DA REPRESENTAÇÃO DOS PERSASEm 476, Frínico trouxe ao palco uma peça com o tema similar aos

Persas, chamada Fenícias. Na ocasião Temístocles fora o choregos da peça, ou seja, o responsável por patrocinar a execução da peça. Em 472, Ésquilo tem como financiador de seu coro ninguém menos que o jovem Péricles, por volta de seus vinte anos à época, o que evidencia a importância do tema histórico e sua relação com os patrocinadores.

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Temos aqui uma peça dual, repleta de contrastes marcantes que in-tensificam e dão brilho à questão principal: a hybris, a desmesura. O dramaturgo abusa de símbolos para marcar a todo instante as diferenças culturais entre Persas e Gregos: o arco usado pelos Persas em contraposição à lança grega, a vestimenta nobre e exótica persa, os rituais de lamentação exaltados e exagerados dos Persas. Temos aqui uma caracterização extrema dos Persas com adereços de cena que permitem o espectador entender que a peça se passa em Susa, pleno território persa. No entanto, o conteúdo ideológico dos discursos é profundamente grego.

É comum a construção ideológica de que os Persas são os portadores inevitáveis da tirania e do misticismo, enquanto os gregos defenderiam a demo-cracia e o racionalismo3. Edith Hall (1989, pg. 59) argumenta que uma das estra-tégias dos partidos democratas atenienses era justamente relacionar a tirania aos Persas, para que assim o inimigo ideológico “tirania” ganhasse corpo e gestos e a capacidade de ser exterminado em favor da liberdade e da democracia4. Assim, o bárbaro como conceito teria ganhado, através da projeção dos próprios proces-sos políticos endógenos de Atenas, o status de adversário despótico.

DA REALIDADE AO MITOA pedra fundamental da teologia de Ésquilo é a seguinte proposição:

prosperidade excessiva desencadeia, primeiramente, a hybris e então leva à des-truição. Esta é uma lei geral que regula a comunidade moral grega e que serve, nesta peça, como mecanismo de explicação para a derrota persa, mesmo sendo este exército muito superior em números (HALL 1989, pg. 70).

Para além da questão ideológica da hybris, deve-se discutir o caráter da peça. Classificada regularmente como tragédia histórica, os Persas trazem um tema que no ano de 472 ainda estava vivo na memória daqueles que vivencia-ram as guerras médicas em solo grego após as batalhas de Salamina e Maratona. Primeiramente, devemos nos perguntar se o fato de os Persas serem baseados em personagens históricos influencia na forma da tragédia. Normalmente, os heróis trágicos possuem uma genealogia bem definida e trazem consigo o peso da hamartia (erro) cometido por eles mesmos ou por seus ancestrais. O coro tem a função de refletir conjuntamente com a figura trágica. Existem um ou dois per-sonagens secundários que auxiliam a personagem principal no desenvolvimento

5 Fenômeno também visto na atualidade, vide a Graphic Novel 300 de Frank Miller que ganhou uma adaptação cinematográfica e explora esta dicotomia.6 Hall relata ainda que Callias, filho de Crátias, recebeu o apelido “Medo”, um dos nomes para denominar os Persas, e em seu ostrakon aparece vestido com roupas persas.

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de sua questão trágica, seja trazendo ao espectador informações sobre a perso-nagem, seja instigando a personagem a tomar alguma decisão e, finalmente, um mensageiro que relata infortúnios (BROADHEAD 1960, pg. xvi). Esta fórmula geral revela algumas peças chaves da tragédia grega. Ao analisarmos os Persas com a ajuda desta ferramenta, percebemos que se trata de uma verdadeira tra-gédia. A maior das diferenças entre esta peça e as outras é que seus personagens pertencem a um passado recente e não a um passado distante e mitológico. Estas personagens estão sendo mitificadas pelo próprio autor e pelos espectadores que conferem a este fato histórico o caráter universal e mitológico.

A discussão entre os rótulos “mítico” e “histórico” é contestada. Hall (1989, pg. 66) recolhe algumas argumentações que afirmam que os gregos não reconheciam tal distinção. Principalmente baseada na ‘arqueologia’ de Tucídides (1.9) demonstrando que até este historiador considerado extremamente raciona-lista encara a historicidade da guerra de Troia e o comando de Agamenon como fatos históricos. No entanto, mesmo aceitando a hipótese de que os gregos não discerniam seu passado histórico de seu passado mitológico, é razoável pensar que eventos ocorridos há menos de dez anos da apresentação da peça figurassem no imaginário do povo grego de uma forma mais clara em relação ao processo histórico que eles mesmos participaram do que uma longínqua invasão à Troia ocorrida há séculos atrás.

A discussão da definição de historicidade entre os gregos é importan-te para que possamos entender como Ésquilo elevou um fato histórico para um patamar mítico. A universalização do conceito de hybris colabora para entender-mos se Ésquilo de fato conseguiu transformar a Salamina histórica numa Salami-na mitológica. Que o tema da hybris atravessa toda a peça e é fundamental para seu enredo é ponto pacífico entre os estudiosos da peça, no entanto, os autores diferem sobre o uso da própria temática religiosa. Teria Ésquilo levantado a ques-tão da hybris no intuito de vangloriar a glória de Atenas ou seu objetivo era jus-tamente usar o exemplo persa para provar sua teologia da punição pelo excesso?

O campo que defende os Persas como um produto de propaganda e vangloriamento patriótico vem do século 19 e defende que a peça foi criada sob um prisma completamente grego. Esta posição tem como resultado a designação da tragédia como uma falsa tragédia, pois falha ao trazer elementos demasiados viçosos de patriotismo para um suporte que tradicionalmente não permite tal assunto. As variantes assumidas pelos defensores do patriotismo são as seguin-

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tes: a exposição dos ideais de liberdade, disciplina e moderação gregas; o papel desenvolvido por Atenas em contraposição à Esparta e outras cidades gregas e a contribuição de Temístocles, que canaliza a discussão política sobre as adver-sidades entre Címon e Temístocles, polarizando a importância das batalhas de Maratona e Salamina (HALL 1989, pg. 70).

Dos que defendem o uso da universalização da hybris como um fim em si mesma, Broadhead (1960, pg. xvii) argumenta que Ésquilo, como Aristóte-les sugere em sua Poética 1451b, intermedeia as ações das personagens através das leis de probabilidade e necessidade. As personagens não reagem ao particular, mas sim ao universal que está condensado e simbolizado no particular. Para além disto, Broadhead (1960, pg. xviii) defende que Ésquilo tomou uma atitude supra-nacional, tratando os Persas da mesma maneira que teria tratado os gregos em circunstância similares, extraindo assim do particular, o universal. Este ponto de vista reassume a peça como uma tragédia legítima, tendo como ponto principal a referência teológica da hybris e da phthonostontheon (inveja dos deuses).

Winnington-Ingram (1983, pg. 3) desenvolve um argumento para de-fender o ponto de vista não patriótico e uma abordagem metafísica universal. O autor pergunta-se porque numa peça produzida em Atenas e sobre o seu melhor momento, a deusa Atena só é mencionada uma vez (não mais que Poseidon, Hermes, Phoebus ou Pan) e nem mesmo é caracterizada como salvadora. Sua resposta para esta questão é que a escolha de Atena seria demasiadamente patrió-tica, excessivamente local. Para o autor, Ésquilo interpreta a campanha não em termos de Atena salvando sua cidade protegida, mas Zeus mantendo a ordem moral do mundo.

Edith Hall (1989, pg. 72) defende que o primeiro ponto de vista defi-ne claramente o retrato da pátria grega em contraposição aos excessos dos bár-baros. Já o segundo ponto de vista trata de apagar as diferenças entre gregos e bárbaros em prol do estabelecimento do tema principal da tragédia como ver-dadeiramente universal, até para os espectadores de hoje. Halldurante todo seu livro, defende a tese de que o maior produto ideológico criado pelos gregos foi justamente o outro, o bárbaro. E, para tanto, as tragédias tiveram função-chave, pois encarregaram-se de dar vida e voz aos bárbaros e de equipá-los com carac-terísticas estereotipadas para que pudessem ser exemplarmente punidos a partir das cartilhas morais gregas. Hall (1989, pg. 73) sugere que entendamos os Gregos em sua plenitude, com suas virtudes e vícios e esforça-se a atrelar à ideologia grega o seu arrogante e insistente chauvinismo.

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O MAIS GREGO ENTRE OS PERSAS: DÁRIOOs persas estão representados. Nomes e indumentária refletem a rea-

lidade persa. A cidade é Susa que, apesar de helenizada no sentido de atrair sobre si um conceito de polis tipicamente grego, ainda carrega ares persas. Estamos diante de uma representação fiel dos conceitos persas? Ou toda essa cenogra-fia só existe no intuito de marcar a diferenciação entre Gregos e Persas? Hall defenderia a hipótese de que toda essa cenografia é, nada mais, do que uma criação ideológica de costumes e hábitos, mesmo quando alguns deles já foram claramente documentados. Broadhead está preocupado em saber se aquele ce-nário será suficientemente convincente para emular o pathos persa naquele mo-mento tão difícil para que, assim, os gregos possam dividir sua compaixão com os derrotados persas naquele momento. Em termos da tragédia em si, a visão de Broadhead parece-nos mais lúcida, pois trabalha com a questão da compaixão, já apontada por Aristóteles em sua poética, como uma das ferramentas essenciais para a produção da catarse em seus espectadores. Se o objetivo do dramaturgo é, através da punição divina decorrente da hybris persa, insuflar a dor nos que a cometeram, esta dor tem que ser de alguma maneira assimilada e dividida pela audiência grega, senão não passaria de um episódio sádico e patriota. Apesar de Ésquilo equipar seus personagens com falas, andares, gestos e indumentárias persas, tudo o que sai da boca deles é extremamente grego. São suas próprias convicções religiosas que emergem dos diálogos entre os Persas. Chamar isto de universal significa dizer que a maneira de pensar grega era universal e obscurecia a maneira persa e todas as outras. No entanto, se entendermos como universal o fato de que os Gregos compreendiam sua própria maneira de pensar mesmo quando deslocada no espaço, ou seja, projetada na desgraça persa, podemos ter um conceito de universal mais profícuo.

A personagem principal que assume o habitus grego na peça é Dário, que é chamado de volta ao mundo dos vivos para pregar a filosofia moral grega baseada na desgraça advinda da hybris. Dário é, sem dúvida, a peça-chave para entendermos o discurso moralizante pretensamente universal dos gregos. Sabe-mos que o status superior de Dário é ressaltado desde a sua invocação, quando é caracterizado como divino. Dário tem a função de trazer respostas ao coro e à Atossa.

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Vamos, amigos, entoai sobre estas libações feitas aos mortos hinos propíciose evocai o divino Dario, enquanto eu dirijo aos deuses infernais estas home-nagens que a terra vai beber.5 (619-622)

Dário aparece e quer saber o que se passa com sua cidade e qual é a causa dos lamentos. Não passa pela sua cabeça que todo o exército persa fora destruído. Atossa revela, então, qual foi a causa da desgraça que se abateu sobre os Persas: O impetuoso (thouros) Xerxes, que esvaziou todo o território do continente (718).

O julgamento moral começa pela fala de Atossa, que classifica seu filho com o adjetivo thouros, abrindo o caminho para que Dário intensifique as acusações de soberba advinda da falta de reflexão. Dário pergunta como Xerxes conseguira fazer tão grande exército atravessar o mar ao que Atossa responde que ele arranjou meios de lançar um jugo sobre o Helesponto para abrir uma passagem (Persas 722). Esta cena é uma repetição da célebre passagem do coro vangloriando-se da passagem do exército:

A esta hora já o exército real, destruidor de cidades, chegou à costa fronteira do continente vizinho. Para trás deixa o estreito de Hele, a Atamântida, que atravessou em jangadas unidas por cordas de linho, estrada de mil pregos que lançou como um jugo sobre o pescoço do mar (Persas 65-72)6.

O mesmo fato comemorado em 71-72 é execrado durante o diálogo

com Dário. A travessia do Bósforo é um dos topoi marcantes da hybris de Xerxes, juntamente com a destruição dos templos de Atenas. O Dário helenizado fará com que os Persas sintam temor pelo que antes se orgulharam. O seguinte diálo-go mostra esta transformação de pensamento.

7 ἀλλ᾽, ὦ φίλοι, χοαῖσι ταῖσδε νερτέρων ὕμνους ἐπευφημεῖτε, τόν τε δαίμονα Δαρεῖον ἀνακαλεῖσθε, γαπότους δ᾽ ἐγὼ τιμὰς προπέμψω τάσδε νερτέροις θεοῖς.Todas as traduções dos Persas são de Pulquério (1998).

8 πεπέρακεν μὲν ὁ περσέπτολις ἤδη βασίλειος στρατὸς εἰς ἀν- τίπορον γείτονα χώραν, λινοδέσμῳ σχεδίᾳ πορθ- μὸν ἀμείψας Ἀθαμαντίδος Ἕλλας, πολύγομφον ὅδισμα ζυγὸν ἀμφιβαλὼν αὐχένι πόντου.

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DárioChegou ao ponto de fechar o grande Bósforo!AtossaAssim foi, de facto. Um deus (daimon), por certo, havia atacado o seu espírito.

DarioAh! Grande deus (megadaimon) foi, para o fazer desvairar (me phroneinkalos) a esse ponto.

AtossaO resultado está à vista: grande desastre ele consumou! (723-726)7

Em seguida, o primeiro discurso longo de Dário indica profunda cren-ça nos deuses e nos castigos que estes podem executar àqueles que descumprem suas ordens ou vão de encontro a eles. Dário usa o exemplo do agrilhoamento do Bósforo como uma tentativa de parar a própria vontade divina, atribuindo elementos sobre-humanos ao estreito e caracteriza como insensatez a atitude de ir contra os próprios deuses e, neste caso, contra Poseidon que comanda os mares. É sobre uma profecia que Dário baseia seu discurso e obtém legitimidade para apontar culpados e, mais tarde, falar do futuro em Plateia. Segue o texto:

Ah! Chegou depressa a realização dos oráculos e foi sobre o meu próprio filho que Zeus fez cair a concretização das profecias (thesphatos). Tinha eu a ilusão de que os deuses precisariam de longo tempo para as levar até ao fim, mas, quando um mortal se apressa para a ruína, os deuses ajudam. Hoje uma fonte de males (kakospege) foi descoberta por todos os que me são caros e isto graças ao meu filho que, sem medir as consequências, tudo fez com a sua audácia juvenil (thrassoneos). Com grilhões de escravo, ele tentou deter o curso do Helesponto sagrado, o Bósforo que é a corrente um deus; ele quis trans-formar em estreito, lançando-lhe cadeias forjadas a martelo, para abrir um imenso caminho ao seu imenso exército. Mortal, ele pensou, na sua insensatez (oukeuboulia), poder triunfar sobre todos os deuses, triunfar sobre Poseidon. Não foi uma verdadeira loucura (nososphrenon) que se apoderou do meu filho? Receio bem que a enorme riqueza, com tanto esforço por mim acumulada, venha a ser presa fácil para o primeiro que resolva antecipar-se (739-752)8.

9 καὶ τόδ᾽ ἐξέπραξεν, ὥστε Βόσπορον κλῇσαι μέγαν: ὧδ᾽ ἔχει: γνώμης δέ πού τις δαιμόνων ξυνήψατο. φεῦ, μέγας τις ἦλθε δαίμων, ὥστε μὴ φρονεῖν καλῶς. ὡς ἰδεῖν τέλος πάρεστιν οἷον ἤνυσεν κακόν.

10 φεῦ, ταχεῖά γ᾽ ἦλθε χρησμῶν πρᾶξις, ἐς δὲ παῖδ᾽ ἐμὸν Ζεὺς ἀπέσκηψεν τελευτὴν θεσφάτων: ἐγὼ δέ που διὰ μακροῦ χρόνου τάδ᾽ ηὔχουν ἐκτελευτήσειν θεούς: ἀλλ᾽ ὅταν σπεύδῃ τις αὐτός, χὠ θεὸς συνάπτεται. νῦν κακῶν ἔοικε πηγὴ πᾶσιν ηὑρῆσθαι φίλοις. παῖς δ᾽ ἐμὸς τάδ᾽ οὐ κατειδὼς ἤνυσεν νέῳ θράσει: ὅστις Ἑλλήσποντον ἱρὸν δοῦλον ὣς δεσμώμασιν ἤλπισε σχήσειν ῥέοντα, Βόσπορον ῥόον θεοῦ: καὶ πόρον μετερρύθμιζε, καὶ πέδαις σφυρηλάτοις

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Em seguida, Atossa tenta defender seu filho afirmando que ele foi influenciado por más companhias e que suas atitudes foram frutos de um am-biente de competitividade em que Xerxes viu-se forçado a mostrar suas forças implementando, assim, seu projeto de poder sobra a Grécia.

O segundo discurso de Dário faz uso de uma gênese da política na Ásia, retrocedendo até o momento em que Zeus confia o cetro de poder a um só homem. Este é um passo importantíssimo para a argumentação já exposta de Winnington-Ingram 1983, 3-10 sobre a importância de Zeus como um deus maior e símbolo de uma união entre os dois povos. Zeus aparece para delegar poder, para punir e para ensinar o bom caminho através das palavras de Dário. Desta monarquia divina desenrola-se a dinastia persa que Dário e Xerxes fazem parte. Através do discurso do crescimento do poder persa, Dário destila elemen-tos da noção de prudência, que será o conselho principal de toda sua aparição (759-786).

O Coro pergunta, então, qual é a conclusão que se deve tirar destas palavras. Como o povo persa deverá agir da melhor forma? Dário responde da maneira mais grega possível:

DárioNão voltando a invadir o território grego, mesmo que o exército dos Medos seja ainda maior: é que o próprio solo combate com eles (790-791)9 .

Dário relata a conclusão da profecia: o restante dos soldados persas morrerá. O mal que os acomete é um castigo devido às atitudes em relação ao sagrado. Neste terceiro e mais longo discurso (63 linhas), Dário explicita de vez a noção grega de castigo por decorrência da desmesura. O rei persa não poupa palavras para mostrar que outros males recairão sobre os Persas e ressalta a gra-vidade dos crimes cometidos por seus compatriotas:

Aqui os espera o cúmulo dos males, em castigo da sua insolência e pensa-mentos sacrílegos. Ao invadir a terra grega, eles não hesitaram em despojar as estátuas dos deuses e em incendiar os templos. E os altares destruídos e as estátuas dos deuses desenraizadas e deitadas abaixo dos seus socos, em

περιβαλὼν πολλὴν κέλευθον ἤνυσεν πολλῷ στρατῷ, θνητὸς ὢν θεῶν τε πάντων ᾤετ᾽, οὐκ εὐβουλίᾳ, καὶ Ποσειδῶνος κρατήσειν. πῶς τάδ᾽ οὐ νόσος φρενῶν εἶχε παῖδ᾽ ἐμόν; δέδοικα μὴ πολὺς πλούτου πόνος οὑμὸς ἀνθρώποις γένηται τοῦ φθάσαντος ἁρπαγή.11 εἰ μὴ στρατεύοισθ᾽ ἐς τὸν Ἑλλήνων τόπον, μηδ᾽ εἰ στράτευμα πλεῖον τὸ Μηδικόν. αὐτὴ γὰρ ἡ γῆ ξύμμαχος κείνοις πέλει.

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confusão. Os crimes por ele cometidos estão a ser pagos condignamente e outros castigos se seguirão: o edifício da desgraça ainda não tem assentes os seus fundamentos, o mal ainda está na infância (806-815)10.

E, por fim, caracteriza o ideal da hybris nos seguintes versos, classifi-cando a Grécia como uma espécie de lição moral a ser aprendida pelos Persas para que eles possam desenvolver sua civilização:

E pilhas de mortos, sempre presentes aos olhos dos homens, dirão, mesmo sem voz, até a terceira geração, que nenhum mortal deve ter pensamentos acima da sua condição. A insolência, ao crescer, produz a espiga da cegueira e a ceifa far-se-á numa seara de lágrimas. Conservado diante dos olhos este castigo, lembrai-vos sempre de Atenas e da Grécia e que ninguém despreze a sua sorte presente porque, ao cobiçar o que é dos outros, pode deitar por terra uma grande felicidade. Zeus, severo juiz, castiga os pensamentos demasiado soberbos (817-829)11.

CONSIDERAÇÕES FINAISO dramaturgo, com maestria, conseguiu imputar a um personagem

moralmente superior aos demais os ingredientes necessários para convencer seus pares de seus erros e, ao mesmo tempo, oferecer uma explicação razoável para seus infortúnios. Desta forma, Ésquilo consegue traduzir suas próprias crenças numa ideologia universalizante que explicou, em forma de arte, para seus con-terrâneos em 472 a.C. a razão do fracasso persa, sem precisar lançar mão de uma propaganda escancarada, mas sim trabalhando de forma meticulosa com as duas culturas envolvidas no evento. Os Persas é, sem dúvida, um importante testemu-

12 οὗ σφιν κακῶν ὕψιστ᾽ ἐπαμμένει παθεῖν, ὕβρεως ἄποινα κἀθέων φρονημάτων: οἳ γῆν μολόντες Ἑλλάδ᾽ οὐ θεῶν βρέτη ᾐδοῦντο συλᾶν οὐδὲ πιμπράναι νεώς: βωμοὶ δ᾽ ἄιστοι, δαιμόνων θ᾽ ἱδρύματα πρόρριζα φύρδην ἐξανέστραπται βάθρων. τοιγὰρ κακῶς δράσαντες οὐκ ἐλάσσονα πάσχουσι, τὰ δὲ μέλλουσι, κοὐδέπω κακῶν κρηνὶς ἀπέσβηκ᾽ ἀλλ᾽ ἔτ᾽ ἐκπιδύεται.

13 θῖνες νεκρῶν δὲ καὶ τριτοσπόρῳ γονῇ ἄφωνα σημανοῦσιν ὄμμασιν βροτῶν ὡς οὐχ ὑπέρφευ θνητὸν ὄντα χρὴ φρονεῖν. ὕβρις γὰρ ἐξανθοῦσ᾽ ἐκάρπωσεν στάχυν ἄτης, ὅθεν πάγκλαυτον ἐξαμᾷ θέρος.τοιαῦθ᾽ ὁρῶντες τῶνδε τἀπιτίμια μέμνησθ᾽ Ἀθηνῶν Ἑλλάδος τε, μηδέ τις ὑπερφρονήσας τὸν παρόντα δαίμονα ἄλλων ἐρασθεὶς ὄλβον ἐκχέῃ μέγαν. Ζεύς τοι κολαστὴς τῶν ὑπερκόμπων ἄγαν φρονημάτων ἔπεστιν, εὔθυνος βαρύς.

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nho da consolidação da teologia grega, buscando atingir o patamar de universa-lidade. O que não significa que, objetivamente, tenham conseguido transformar suas próprias crenças em produto cultural dividido por outras culturas.

Temos aqui o estabelecimento de um conceito grego que, mesmo quando representado e sentido por outras culturas, consegue gerar emoções nos próprios Gregos. Este é o limite da universalização do conceito de hybris. Afinal, seria demasiadamente forçado imaginarmos que persas concordariam com esta ideologia da punição e que esta teria sido a razão de sua derrota.

REFERÊNCIASS. M. Adams. (1983) “Salamis symphony”. In: Oxford readings in greek tragedy. Segal, Erich (org.)

H.D. Broadhead (1960). The persae of Aeschylus. Cambridge: Cambridge university press.

E. Hall (1989). Inventing the barbarian: greek self-definition through tragedy.Oxford: Clar-endon press.

T. Harrison (2000). The emptiness of Asia: Aeschylus Persians and the history of the fifth century.London:Duckworth.

S. Ireland. (1986) “Aeschylus”. Greece and Rome: New Surveys in the Classics n. 18. Oxford: Clarendon Press.

M. Pulquério (1998). Persas de Ésquilo. Lisboa: Edições 70.

H. W. Smyth (1926) Aeschylus. Persians. Cambridge: Cambridge, Mass., Harvard University Press.

R. P. Winnington-Ingram (1983) Studies in Aeschylus. Cambridge: Cambridge uni-versity press.

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O PHARMAKÓS: A QUESTÃO DO SACRIFÍCIO VOLUNTÁRIO NA MEDÉIA

DE EURÍPEDES E DE SÊNECA

Ruth Serrão da Silva1

Weberson Fernandes Grizoste2

A questão do sacrifício de humanos como um pré-requisito feito por uma divindade para obtenção de benefícios perpetuou o imaginário humano des-de os seus primórdios, pelo qual a morte sacrificial de Cristo em resgate de uma humanidade pecaminosa é, por excelência, o exemplo que mais conhecemos na atualidade. Entretanto, a questão do sacrifício de humanos, voluntário ou invo-luntário; a questão do sofrimento dos inocentes reabre os pontos de uma ligadu-ra do nosso pensamento moderno com o ritual da Targélia grega, cujo aspecto encontra semelhanças noutras sociedades antigas, pelo que já evidenciamos a judaica. Permeando as dolorosas vias desse sentimento judaico-greco-romano reascenderemos o papel do sacrifício de humanos na tragédia greco-romana, no-meadamente a questão do Pharmakós particularmente nas tragédias homônimas – Medéia(s) de Eurípides e Sêneca.

Sob a luz da filosofia, já os primeiros pensadores do Cristianismo tentavam compreender a questão do sofrimento dos justos e dos inocentes, bem como a origem do Mal na terra. Dada as fontes esvaziadas e fornecidas pela fi-losofia, não houve nenhuma destas explicações que preenchessem em absoluto as lacunas do pensamento cristão, quando muito só forneceram novas formas as resiliências do Cogito. Dentre estas vagas explicações evidenciamos Liebniz (Apud Lacroix, 1998, 71), segundo o qual o equilíbrio entre o bem e o mal pode ser comparado a uma obra de arte ou musical, por que é a dissonância que torna-a harmoniosa, e no caso da pintura é uma mistura de sombras e luzes. Um outro filósofo, Lacroix (1998, 71), reabre a questão da finalidade em proveito da culpabi-1 Licenciada em Letras pela Universidade do Estado do Amazonas (2015), foi pesquisadora voluntária de Programa de Apoio a Iniciação Científica (2014-2015); Possui especialização em Língua Portuguesa e Literatura pela Facibra (2017).2 Professor Adjunto de latim e Estudos Clássicos do Centro de Estudos Superiores de Parintins da Universidade do Estado do Amazonas. Membro do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da UC desde 2008. Possui Licenciatura Plena em Letras na Universidade do Estado do Mato Grosso (2006); é Mestre (2009) e Doutor (2014) em Poética e Hermenêutica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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lidade (itálico do autor). Para Lacroix, a humanidade liberta da especulação teoló-gica, sublinha a responsabilidade dos atores, designa culpados. Assim, o homem atual inclina-se para o passado com a firme resolução de responder acerca dos erros cometidos pelos mais antigos. Todo erro que o homem cometia era pro-veniente do pecado, a possibilidade do pecado decorria da liberdade concedida ao homem (Lacroix, 1998, 26). Portocarrero (2005, 17) nos fala que o mal foi quase sempre considerado segundo o prisma da culpa, isto é, enquanto mal moral é associado á condição corpórea e finita do existir.

Por conseguinte em Lacroix a finalidade arrancada da culpabilidade é o erro ou pecado cometido pelos nossos antepassados. Logo, a forma de pagar por este erro histórico, ou seja, de expiar essa culpa genética, seria em forma de sacrifício ao deus. Do sacrifício de um sujeito que efetivamente não cometeu o delito, mas herdou-o geneticamente. Paul Ricoeur (Apud Grizoste, 2013, 71) reconhece no exemplo de Cristo um modelo muito antigo daquilo que o pecado causa na vida das pessoas, e a explicação desse mal parte da culpabilidade impu-tada por um conceito biológico.

Vejamos em que consiste a morte sacrificial de Cristo. Ao destruir o mundo sob o efeito catastrófico de um dilúvio, Jeová salvou a única família ino-cente. Ao destruir Sodoma e Gomorra sob fogo e enxofre, o mesmo deus salvou os membros inocentes de uma família. Contudo, após a destruição do mundo esse deus prometera não destruir a humanidade caso ela voltasse a degenerar-se. Quando Nínive caiu em declínio foi-lhe enviado um profeta para resgatá-la. Todas as vezes que Israel falhava, Jeová enviava-lhe um novo profeta com exi-gências sacrificiais para evitarem a sua destruição. Porém, houve um tempo em que toda a humanidade havia se degenerado e Jeová exigiu, para resgatá-los, o sacrifício de um homem inocente. Esta vítima não foi encontrado entre os ho-mens. Todos os homens haviam nascido em pecado. Todos eram genéticamente culpados. Havia que nascer um inocente para que a humanidade não fosse des-truída. Cristo, por isso, nasce no corpo de uma virgem sob a intervenção divina e sem a herança sanguínea e pecaminosa daquela humanidade. Ele se fez homem. Homem inocente. Eis o por quê ainda nos dias atuais os homens precisam, para se manterem limpos, beber daquele que é o único sangue incorrupto. Sangue, não de homens, mas de um deus. Sangue de um deus que se fez homem.

Qual é, portanto, a origem do sacrifício na comunidade judaica? Frye e Bremmen3 encontram uma relação entre o Pharmakós da Grécia e o Scapegoat em

3 Frye, 1957, 41; Bremmen, 1983, 300 Obj. Cit. Grizoste, 2013, 72.

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Israel. O Scapegoat, isto é, o Bode expiatório, exerceu uma influência muito grande na cultura hebraica, pelo ritual de expiação da culpa do povo que era efetuado por um sacerdote, cujo culto transcrevemos abaixo:

E Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo e sobre ele con-fessará todas as iniquidades dos filhos de Israel e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode e enviá-lo-á ao deserto, pela mão de um homem designado para isso. Assim, aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles á terra solitário; e o homem enviará o bode ao deserto (Levítico 16: 21, 22).

O Scapegoat não poderia ser um bode qualquer. Teria que ser um ani-mal sem mancha e sem quaisquer defeitos senão o sacrifício seria rejeitado por Jeová. Nesse ritual de purificação eram oferecidos dois bodes e um carneiro. O carneiro oferecido pelo sacerdote em prol de sua família e para obter o próprio perdão. Em seguida lançava-se sorte entre os bodes, um para ser oferecido à Jeo-vá e outro à Azazel. A partir desse ritual que o sacrifício humano terminantemen-te proibido por Jeová foi por ele requerido anos mais tarde. Foi esse equilíbrio entre Azazel e Jeová, o mal e o bem, que suscitou debates acalorados sobre as relações do sofrimento de inocentes e a onipotência daquele que detém as forças do bem. De fato, ao que parece, a saúde cósmica no universo judaico-cristão possui semelhanças muito bem fundamentadas e entrelaçadas com a legalidade cósmica no universo greco-romano pré-cristão.

A LEGALIDADE CÓSMICA DA SOCIEDADE GRECO-RO-MANA

A legalidade cósmica do mundo greco-latino era regida pela Ordem, Justiça e Destino. Essa coordenação surgia no Concílio dos deuses, pelo que em virtude da singularidade da legalidade cósmica judaico-cristã Grizoste opta por denominar este Concílio por Instituição Divina. Quando os deuses, ou os seres di-vinos capazes de intervirem na vida humana reunem-se, esta reunião é o que dá origem a Instituição Divina. Assim temos o destino de Job, de Eneias, dos Troianos e Aqueus, entre outros tantos heróis e povos.

Os heróis não podem mudar o destino traçado pelos deuses, mas eles podem perturbar a Ordem. Ao perturbar a Ordem o herói pratica a Hybris. Por isso de acordo com Octávio Paz (1982, 244-245 et apud Grizoste, 2013, 74), a Hybris é o pecado por excelência contra a saúde cósmica e politica. Ao praticar a Hybris,

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o herói coloca em risco toda Saúde Cósmica. Contudo, se o herói perturba a Ordem, ele não pode perturbar o Destino e muito menos fugir da Justiça. Só a Justiça pode reestabelecer a Ordem, só ela conduz o Destino de acordo com a Instituição Divina. A Justiça Cósmica requer sangue inocente, é por isso que As-treia deixa a terra impregnada de sangue. A vítima imolada, no caso, é o Pharma-kós. Esse sangue faz com que a Legalidade Cósmica seja reestabelecida.

O exemplo mais antigo de perturbação na Legalidade Cósmica pode ser encontrado dentro das epopeias homéricas. Na Ilíada encontramos diversas e constantes intervenções que os deuses faziam nos campos de batalha e na vida dos heróis. Cada herói nascia já com um destino prédeterminado. Muitos dos heróis homéricos já nasceram predestinados a morrer nos campos de batalhas. Quando a batalha em Tróia começou, e já muito antes dela começar, nada no seu destino podia ser mudado. Na Instituição Divina, isto é, no Concílio dos deuses ficou pré-estabelecido: os Aqueus deveriam vencer os Troianos e Aquiles deveria morrer na batalha; contudo sem a presença de Aquiles os gregos não sairiam vencedores. Por isso, ao retirar-se da batalha em virtudade da ira que sentiu por Agammênon, Aquiles feriu a Legalidade Cósmica, colocou em risco o Destino que os deuses haviam preparado para ele, para os Gregos e para os Troianos.

Com o Destino em risco, somente a morte do melhor amigo poderia promover o retorno de Aquiles. Pátroclo é um inocente na medida em que o mal que lhe é causado é muito menor do que aquele que ele provoca. Pátroclo deve morrer. Pátroclo é um Pharmakós para aquela Saúde Cósmica degradada, ele é um “bode expiatório” que, morto, purga o ‘pecado’ de Aquiles.

Os melhores exemplos, por excelência, de Pharmakós surgem nas Tra-gédias. Os Gregos foram muito mais notáveis nessa arte que os Romanos e por isso toda a compreensão de vítima trágica é grega, mesmo quanto elas rebentam numa arte romana, rebentam sob feições da Grécia. As Troianas de Sêneca, por exemplo, revelar-se-ia como uma face oposta da mesma moeda que vemos em Ifigência em Áulide de Eurípedes. Nessa esteira de Sêneca está Hécuba de Eurípedes. Políxena e Astíanax oferecidos em sacrifício. De um lado Andrômaca e Hécuba, de outro Clitemnestra cujas tentativas de poupar seus filhos do sacrifício foram insuficientes. Ifigênia aceita ser sacrificada. Políxena não só aceita, quanto auto-i-mola-se. Astíanax é apenas uma criança e não conhece o mal o qual lhe acomete.

De um lado, por causa do anseio pela glória, Ifigênia muda de ideia, chama para si a honra de sua morte, toma para si tão grande responsabilidade, e

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assume que seu sacrifício trará um bem maior para sua sociedade do que a sua sobrevivência. Do outro lado, Políxena primeiro reage, depois percebe que nada mais podia esperar desse mundo se Tróia estava arrasada para sempre. Por isso, a filha de Príamo conduz-se serenamente, tão serenamente que o sacrifício chei-ra-nos suicídio – e assim seria se o seu sangue não tivesse sido pedido, se não se tratasse de um sacrifício voluntário. São passos tão assemelhados com os passos de Cristo. Todos eles reagem para depois conduzirem-se passivamente para o matadouro. Através de seu sacrifício, de seu sangue, Ifigênia garantiu os ven-tos em Áulide proporcionando os exércitos Gregos condições para navegarem contra Tróia. Através de seu sangue, de seu sacrifício, Políxena garantiu que os ventos devolvessem os Gregos vitoriosos em suas terras. Assim a Saúde Cósmica e Política foi resgatada.

O SACRIFÍCIO VOLUNTÁRIO NA MEDÉIANa obra Médeia de Eurípides e de Séneca o assunto do Pharmakós e

da questão do sacrifício voluntario reaparece como uma das expressões mais dra-máticas do tema do sacrifício humano. Jasão, ainda jovem, aceita os benefícios da Medéia e ao aceitar pratica a Hybris, porque vence a partida pelo feitiço e não pela astúcia. Assim, torna-se presa do amor de Medeia, amor que ele renegará mais tarde. A renúncia ao amor de Medeia já é uma consequência do laço em que caíra, já era o início da expurgação de sua culpa que acarretia num castigo ainda maior: para que sua culpa seja expurgada totalmente seria necessário o sacrifício de seus filhos.

A literatura clássica está repleta de exemplos de sacrifícios que acon-teceram em diversas nações da antiguidade, mostra-nos que isso era uma prática comum entre povos diferentes e de diferentes épocas. Contudo, em determina-das comunidades era mais frequente o sacrifício de animais, na religião judaica, o holocausto designa um sacrifício ritual, destinado a Deus e efetuado por um sacerdote (Lacroix, 1998, 18). Os animais comumente ofertados nos sacrifícios eram domésticos, tais como o carneiro, cabras e bezerros. Os tipos mais frequentes de sacrifícios são àqueles oferecidos aos deuses cujo, depois de degolado, ofertava-se a fumaça dos ossos e da gordura queimada em ritual. Depois os membros da comunidade reuniam-se e comiam a parte que cabia aos homens. Assim, o mundo humano se estreitava e estabelecia contato e laço com o mundo divino.

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Eurípides desenvolveu em suas tragédias a adesão voluntaria, trazendo um novo impacto de grandeza mesmo aos exemplos mais vulgarizados (Silva, 2005, p. 129). Nele, o sacrifício voluntário de humanos nasce de uma exigência sobrenatural das instituições divina. Pode-se dizer que não passa de um mero capricho de um deus que exige o sacrifício de uma vítima inocente, já que não encontramos uma explicação racional para a imolação ritual. Assim o é o sacrifí-cio de Ifigênia, de Políxena, de Astíanax, de Cassandra, de Hipólito, de Palinuro e inclusive o mais conhecido de todos, o de Cristo.

Vejamos a questão do sacrifício voluntario na obra Medéia. Jasão chega a Cólquida com uma missão difícil de cumprir. Para con-

seguir o velo de ouro deveria subjugar dois touros cujos pés e chifres eram de bronze e que vomitavam turbilhões de flamas; Jasão deveria atrelá-los numa char-rua de diamante e fazê-los arar um campo consagrado a marte, do qual surgiriam homens armados que Jasão devia exterminá-los e por fim matar o monstro que guardava o velo de ouro. Todas as atividades deviam ser realizadas no decurso de um só dia. Medeia, habilidosa nas artes de encantamento e magia, apaixonada pelo herói, intervém usando de suas artes de magia fazendo-o bem sucedido nas provas. Ao aceitar os benefícios da amada jurando amor eterno, Jasão comete a Hybris.

Jasão casa-se com Medeia na ilha dos Feácios, da côrte do rei Alcí-noo; ao chegarem na terra dos Iolcos, são expulsos para Corinto e aí viveram alguns anos. Contudo, Jasão se apaixonou por Creúsa, filha do rei Creonte, com quem decidiu se casar. Furiosa, Medeia, arrependida de tudo quanto tinha feito por amor à Jasão – deixado a pátria, a família, ajudado-o com artes de magia – sofrendo pela ingratidão do herói, pelo rompimento do laço de fidelidade, do juramento de amor eterno; decide vingar.

O desejo de vingança é reforçado também por ver-se impedida de criar os filhos do amor de sua vida com o homem que jurou amor eterno. An-gustiada tem que se despedir dos filhos. Medeia estava sendo privada do direito de ser mãe, não podia ser maior a dureza da vida para uma mulher cujo ama o marido e os filhos. Na Medeia euripidiana declara à Jasão que sua sensatez não é nada, senão que está apenas a pensar nos filhos. Em Eurípedes, Medeia roga à Jasão para que seus filhos não sejam expulsos da cidade – contando que ela tinha sido expulsa; em Sêneca, Medeia deseja partir com os filhos para o exílio. Em ambos Medeia vê-se, porém, privada de levar os filhos para o exílio. Despede-se,

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contudo, ainda simulando ter aceite o destino, em ambas as tragédias, pedindo aos filhos que levassem uma oferenda de casamento para a madrasta.

Tanto em Eurípedes quanto em Sêneca o motivo da morte de Creúsa fica bem aparente: Medeia regalara presentes enfeitiçados, assim a princera foi morta sufocada pelas vestes amaldiçoadas; a coroa de ouro agarrou-se a cabeça fazendo correr sangue do alto da cabeça, enquanto sua carne se desprendia de seus ossos. Creonte é o único que encontrou coragem de tocar a moça, e morre também sob o poder dos finos véus do vestido enfeitiçado.

Não satisfeita, Medeia comete gnaticídio. Ela que tinha sido privada de ser mãe e esposa, agora vinga-se e priva Jasão de ser também pai. Na obra de Eurípedes é possível ouvir os gritos das crianças sendo executadas pela mãe irada enquanto o côro tomado de pânico conclama a desditosa mulher. A obra de Sêneca inova, pois é a primeira tragédia clássica a colocar no palco uma cena horripilante normalmente resguardada e contada por um narrador ou mesmo pelo côro. Aqui, Medeia executa um filho diante do público, em seguida aparece para o público em cima de um telhado. É uma cena horrenda, a mãe carregando o filho morto e acompanhada do outro filho que em seguida matará, no alto de uma cumeeira, quando mais devia se esconder. Dali Medeia ainda travará uma discussão com Jasão. Jasão implorará pela vida do segundo filho, implorará por ser ele mesmo castigado e tentará demonstrar em vão quão grande já era o castigo da morte de um dos filhos. Medeia manterá-se intransigente e, diante do público, executará o segundo filho. Na obra de Sêneca, Medeia deixa os filhos e em seguida parte em um carro alado por um caminho pelo céu. Em Eurípedes, Medeia escarnece o marido, mandando-o enterrar a noiva – aqui Jasão implora em vão ao menos por tocar em seus filhos mortos antes que ela se partisse no carro de fogo pelos céus.

Os filhos de Medeia são como ovelhas levadas ao matadouro. Em Eurípedes pode-se ouvir o grito das crianças, e ainda o mais velho questionando o que fazer diante da ira de sua mãe – mas em Sêneca não eles não têm qualquer voz. São imolados como um pharmakos, e nesse caso – como no caso de Políxena – não se trata da exigência de algum deus, mas de exigência humana. Como todo pharmakos, sabem que não podem escapar ao destino e por isso, aceita-o. Essas crianças sabiam: estavam sendo sacrificadas por um conjunto de erros de seu pai, principiados desde o momento em que jurou casar-se com Medeia para obter vitória na conquista do velo de ouro. Ao usurpar dessa forma, Jasão praticou

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a Hybris. O seu erro levou-o a ter dois filhos com uma mulher que ele, efetiva-mente, não amava, mas que tirara proveito. A ausência de amor leva-o ao ato de infidelidade, daí para a expiação um passo apenas. O sacrifício das crianças, para além de purgar a culpa de Jasão – filhos que ele nunca deveria ter tido o direito de os ter – é o único remédio capaz de reestabelecer a Legalidade Cósmica.

Chegando ao término desse ensaio, os heróis nascem predestinados a cumprir o destino imposto pelos deuses, eles de fato são escolhidos por suas virtudes e coragem. A maneira como cada herói encara o destino tem grande re-levância para a sociedade que depende dele, é como se carregasse em suas costas a responsabilidade da sociedade inteira – da sociedade em que estavam inseridos, para que todos pudessem viver harmoniosamente impedindo o caos cósmico e social. Os heróis até podem usar de liberdade, como diria Ricardo Reis: só esta liberdade nos concedem | os deuses: submetermo-nos | ao seu domínio por vontade nossa. A liberdade, portanto, é apenas uma ilusão. Os heróis que extrapolam os limites da liberdade praticaram a Hybris. Quando aos pharmakos, isto é, as vítimas de Jasão é preciso relembrarmos que aos bodes expiatórios também são concedidos certas liberdades. Para Paz (1982, 252 et apud Grizoste, 2013, 94) os gregos foram os primeiros a compreender que para se cumprir o destino há necessidade da ação da liberdade. Assim, nenhum Pharmakós é oferecido contra a sua vontade, todos eles tiveram o direito de optar pelo que queriam. Contudo, ao cabo, todos esco-lhem cumprir o destino: seja pela honra, pela religião, pela família ou pela pátria.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASJ. F. Almeida (1995) Bíblia. São Paulo: Sociedade Bíblia do Brasil.

J. Bruna (1999) Homero, Odisseia. São Paulo: Cultrix.

C. A. Nunes (2001) Homero, Ilíada. Rio de Janeiro: Ediouro.

M. Silveira, J. S. Gonçalves (2004) Eurípedes, Medéia. São Paulo: Martin Claret.

A. A. A. Sousa (2011) Séneca, Medéia. Coimbra: CECH, 2011.

J. Bremmer (1983) “Scapegoat Rituals in Ancient Greece”, Harvard Studies in Clas-sical Philology 87. 299-320.

A. Emilio (1998) Michael Lacroix. O mal, Lisboa: Instituto Piaget.

N. Frye (1957) Anatomy of criticism: four essays. London: Oxford University Press.

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W. Grizoste (2013) “O pharmakos: a questão do sacrifício voluntário em Eurí-pedes” in K. Katsuzo, W. Grizoste, Estudos de Hermenêutica e Antiguidade Clássica. Coimbra: Edição de autores, 71-96.

M. F. S. Silva (2005) Ensaios sobre Eurípedes. Lisboa: Cotovia

T. O. Spalding (1965). Dicionário de mitologia greco-latina. Belo Horizonte: Ita-tiaia.

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OS PRINCÍPIOS DA MUHURAIDA

Weberson Fernandes Grizoste1

O gênero épico surgiu no Brasil com De Gestis Mendi de Saa, publi-cado em 1563 na cidade de Coimbra. O século XVII é um vazio imenso para a literatura brasileira, ou portuguesa feita em solo brasileiro – digo isso se o compararmos com os outros quatro séculos da nossa curta existência. O gênero épico no Brasil assumiu as suas verdadeiras feições apenas no século XVIII, com a publicação dos poemas árcades O Uraguai de Basílio da Gama, de 1768; e, o Caramuru de Santa Rita Durão, de 1781. Estas feições, as quais falamos, são as formas e características depois adotadas e melhoradas pelo indianismo, já no século XIX. Entretanto, é verdade que o índio era tema, também, na epopeia do padre José de Anchieta – que consideramos ser a epopeia mais antiga da América Latina[Grizoste, 2013, 68-70, (b)]. No século XVIII, nomeadamente do ano de 1785, surgiu também o poema Muhuraida, que só veio a ser publicado, de fato, em 1819. Levando em consideração as condições históricas específicas, a Muhuraida se configura como o terceiro poema épico em ordem cronológica do arcadismo brasileiro; um fator curioso nesse episódio é o fato de o poema de Basílio da Gama ter sido escrito com bases nos acontecimentos no Sul, o poema de Durão com base nos acontecimentos no Nordeste e o poema de Wilkens ter sido escrito com base nos acontecimentos no Noroeste, configurando as mesmas formas geométricas e delimitações geográficas do Brasil. Poder-se-ia, talvez, por isso, denominarmos estes poemas como uma trilogia árcade de poemas épicos2.

Por outro lado, a Muhuraida se iguala ao De Gestis Mendi de Saa e ao Caramuru, no seu tema; e foge em algumas escalas d’O Uraguai. Tendo sido pu-blicado em 1819, já em cálidos momentos que antecediam a independência política do Brasil, a Muhuraida se torna uma espécie de retorno ao arcadismo que tentava fundamentar o desígnio de Portugal na terra – a noção do Quinto

1 Professor de Latim e Estudos Clássicos do Centro de Estudos Superiores de Parintins da Universidade do Estado do Amazonas. Possui Licenciatura Plena em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2006); é Mestre (2009) e Doutor (2014) em Poética e Hermenêutica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É Membro do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (Coimbra) desde 2008, e do Nucleo de Investigação da Cultura e Educação do Baixo-Amazonas (Parintins), e do Centro de Estudos João Calvino (São Luís – MA). 2 Tânia Pêgo elege-o como um dos três precursores do romantismo ao lado dos poetas supracitados; porque todos eles demonstram a bondade natural do índio. Pêgo, 2010, 60.

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Império irradiada pelo padre Antônio Vieira e difundida posteriormente pelo poeta Fernando Pessoa. Quatro anos antes da Muhuraida, a Impressão Régia de Lisboa imprimiu o poema Brazilíada que continha os mesmos matizes épicos do poema de Wilkens. Enquanto o poema de Wilkens invocava o “triunfo da fé”, o poema de Thomaz Antônio dos Santos e Silva invocava o “Portugal imune, e salvo”, que em suma, tinham as mesmas conotações do papel de Portugal na evangelização dos povos bárbaros do Novo Mundo. Thomaz Silva exalta o cetro lusitano por estender-se sobre dois mundos, o Velho e o Novo (Braz. 1.50-513) e Durão faz semelhante afirmação (Car. 1.8.44), a Muhuraida, ao contrário, tem uma velada preocupação em denunciar a exploração e o massacre dos índios; processo desencadeado pelos colonizadores e pela aculturação manipulada pelos missionários [Pêgo, 2010, 76].

O que o Muhuraida tem em comum com os outros árcades é o enorme interesse, e no caso de Basílio da Gama a simpatia, pelos indígenas com as quais tiveram contato. Há quem fale em um nacionalismo implícito na obras de Durão e Basílio, não fosse a defesa que estes autores teceram em torno da legitimidade de Portugal, e da subordinação das tribos indígenas, como de toda colônia bra-sileira, fato que se confirma também no poema de Wilkens; todos, ressaltando, claro, o papel de Portugal enquanto dinamizador da fé cristã no Novo Mundo. Por outro lado, a Muhuraida assemelha-se com o De Gestis Mendi de Saa, porque ambos os poetas eram portugueses, ao passo que Durão e Basílio da Gama eram oficialmente nascidos no Brasil. Nesse caso, invalida-se a hipótese de Roderick J. Barman, segundo a qual o conflito político-ideológico entre a lealdade à Mo-narquia e as ideias dissidentes do Iluminismo caracterizavam aquela geração de letrados, porque embora nascidos no Brasil, estavam isolados da pátria devido à formação cultural na Europa, e por isso eram marginalizados e vistos como uma minoria exótica5. Se o poema de Wilkens se assemelha ao poema de Anchieta, o poeta-soldado da Muhuraida se assemelha ao poeta-soldado de La Araucana; ambos são nascidos na península Ibérica, ambos são soldados à serviço de suas respectivas Coroas, e ambos fizeram um poema que legitimava a posse Ibérica sobre a América do Sul.

3 Que não coube em dois Mundos, velho, e novo Onde foi transplantar Sceptro mais amplo,4 Que aumenta tanto império ao vosso cetro:5 Roderick J. Barman, Brazil: the forging of a nation, 1782-1852, Stanford, Stanford University Press, 1988, pg. 32-33 Apud Treece, 1993, 14.

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São dois momentos distintos que fazem a Muhuraida. E nisso ela se difere de todos os poemas supracitados. O primeiro momento se deu em 1785 quando o poema foi escrito; o segundo se deu em 1819 quando o poema foi pu-blicado. Nessa época o projeto colonialista português estava passando por uma crise sem precedentes. Na realidade as crises políticas surgiram na segunda meta-de do século XVIII e se intensificaram até a independência ainda nos meados da primeira metade do século XIX.

O primeiro paradoxo de Muhuraida está já no seu nascedouro. O poe-ma que enaltece o triunfo da fé surge exatamente numa época em que o Marquês de Pombal expulsou a Companhia de Jesus do Brasil. A Companhia havia contro-lado por dois séculos as aldeias missionárias e coordenavam o trabalho indígena, muitas das quais se tornaram empresas agrícolas bastante lucrativas. As Leis de Liberdade de 1755 trouxe o fim à escravidão indígena e promoviam o casamento inter-racial (vale lembrar que desde o início, como revela o plano colonizador do Padre Manuel da Nóbrega, a miscigenação foi um fator de relevada importância para a Coroa portuguesa). Dentre estes projetos de colonização, nomeadamente para o Grão-Pará, destaca-se o famoso Directório do que se deve observar nas Povoa-ções dos Índios e do Pará, e Maranhão enquanto sua Majestade não mandar o contrário de 1758. Estas comunidades indígenas saíram da tutela de Jesuítas e acabaram sendo transferidos a administração de Diretores leigos. Por trás de uma propaganda anti-jesuítica e das leis de emancipação e integração das comunidades indígenas estava o real interesse em libertarem a mão-de-obra indígena para os difusores do que podemos denominar como o primeiro projeto agrícola pró-capitalista [Treece, 1993, 14]. A Muhuraida, portanto, nasce exatamente em um momento de crise entre o Estado e a Igreja e no limiar do Capitalismo moderno. Como já dissemos, os dois momentos da Muhuraida estão alicerçados em duas conjunturas de crises. No primeiro a crise da Igreja, e no segundo momento a crise do Estado Português. Trata-se de um poema paradoxal porque canta aquilo que já não se devia mais cantar e portanto antiépico.

A temática antiépica tem sido abordada por nós em outras ocasiões, nomeadamente, e a partir dos estudos dessa natureza na obra de Virgílio, à sua recepção na poética indianista de Gonçalves Dias. A Muhuraida é uma antiepo-peia tanto quanto o Indianismo gonçalvino – porque se trata de uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar. A evangelização sofria graves crises em 1785 e o Estado Português perderia o seu domínio na década seguinte

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à publicação do poema de Wilkens. Não queremos com isto desaprovar a poética de Wilkens, Raimundo Lopes recorda, por exemplo, que Camões preferiu cantar a Índia que se tornou numa grande miragem Portuguesa e deixou de cantar o Brasil, que em termos efetivos foi o que Portugal possuiu, além de ter sido sem-pre a suprema esperança do povo lusitano [Lopes in Silva, M., I-06-12,002. Fl. 38]. Não é de supor que Camões e Wilkens falharam, mas é inegável que em seus poemas o primeiro paradoxo está naquilo que se propuseram a cantar. O próprio David H. Treece que desconhece a análise antiépica, verificou em sua Introdução crítica à Muhuraida que existe uma contradição entre o título, Muhuraida, e o subtí-tulo da obra ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhura. O indígena estava no seio da crise entre as diretorias leigas e o domínio religioso dos Jesuítas [Treece, 1993, 16].

Embora a Muhuraida seja da mesma década dos outros árcades, e em-bora tenha sido publicada antes de Ferdinand Denis lançar aos poetas brasileiros a sua proposta nativista que foi largamente usada pelos indianistas, não consta dele nenhuma alusão, conhecida, ao poema de Wilkens, apesar de citar o Ca-ramuru e O Uraguai como fontes obrigatórias aos românticos brasileiros. Mas, gostaria de salientar que aquilo que eu intitulo de Trilogia Árcade foi publicada pela Imprensa Oficial do Reino, em Lisboa. Para Treece [1993, 16] não se sustenta o argumento de inferioridade artística em Wilkens; porque embora não fosse uma obra prima, em concisão e legibilidade supera ao prolixo Caramuru. Assevera ainda Treece que, o abandono estóico ao poema se destaca pela ausência do elemento erótico, o que por si só, seria suficiente para a falta de interesse dos românticos. Além disso, há uma evidente falta de personagem individualizada e nomeada que se conjectura em virtude da preocupação básica do poeta com o contexto local e histórico e com a conjuntura imperante de forças políticas e econômicas.

A Muhuraida jamais transcende o contexto político daquela época e exatamente por isso dá-nos uma dimensão mais purista a realidade, as contradi-ções e as políticas indígenas adotadas. Ela elogia João Pereira Caldas, governador do Grão-Pará e atuante importante no tratado de limites para a região Amazô-nica. Uma figura importante na epopeia é do diretor Matias Fernandes, autarca da aldeia dos Muras. Seja talvez a primeira epopeia a representar um Diretor de aldeia. Essa atualidade histórica do poema remete-o ao La Araucana – porque aqui o poeta-soldado também contextualiza a posse do Chile pelo conquistador Valdívia no momento em que ela acontecia.

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A Muhuraida não é apenas parte de uma Trilogia Árcade, é a continui-dade histórica de uma mesma conquista – a portuguesa na América. O poema registra-se nos mesmos moldes do desenlace da guerra de Tróia, declaro, está no mesmo limiar em que poema de Virgílio está para os poemas de Homero. Em primeiro plano está a conquista do Brasil representada pelo Caramuru. No poema de Santa Rita Durão a índia Paraguaçu casa-se com um lusitano, Diogo, e adota o nome português de Catarina, não antes sem o homem lusitano ter-se dado ao sacrifício de abrir mão de sua identidade da metrópole para adotar um nome lo-cal – Caramuru. O poema de Durão confirma o que dissera Buarque de Holanda [Holanda, 1971, 96], com quem estou inteiramente de acordo6, na afirmativa de que os lusitanos eram o “grão de trigo do Evangelho que aceita anular-se até a morte para dar muitos frutos”. O que acabamos de falar sobre Diogo, o Cara-muru, também vai ao encontro da discrepância teórica que temos com Flávio Kothe7, que não viu alteração no elemento lusitano. Ora, a adoção de um nome indígena não é a assunção de uma nova identidade? E não se limita apenas a ficção como já abordamos anteriormente8. Em segundo plano aparece O Uraguai exaltando a conquista dos portugueses e fazendo um ataque a intermediação dos Jesuítas nas lutas contra os índios das missões, anunciando o fim da era Jesuítica no Brasil. Em terceiro plano a Muhuraida retrata um novo tipo de missão e colo-nização: a conversão do índio Mura, e a aprovação da legislação pombalina para os Diretórios [Treece, 1993, 17].

Para compreendermos essa ligação entre O Uraguai e a Muhuraida é necessário recordarmos que Basílio da Gama foi um jesuíta que, tendo sido ex-pulso foi condenado ao degredo em Angola, mas conseguiu escapar ao escrever um epitalâmio a D. Maria Amália, filha do Marquês de Pombal, o mesmo que depois fez publicar a sua epopeia [Treece, 1993, 15]. Sílvio Romero alegou, con-tudo, que a admiração de Basílio por Pombal tinha sido sincera, que não terá sido apenas um adulador, mas que suas poesias eram reais manifestações de amor à pátria [Romero, 1888, 229]. Se Basílio descreve os insucessos dos Jesuítas frente as batalhas entre portugueses e indígenas; Wilkens, por sua vez, mostra-nos o sucesso da nova política de Pombal. Dir-se-ia, são poemas complementares.

Tânia Pêgo [2010, 73] lembra que Wilkens na sua Muhuraida, à seme-lhança do Caramuru de Durão e d’O Uraguai de Basílio da Gama, defendem a ino-

6 Abordamos essa afirmação na tese de doutorado. Grizoste, 2013, 175-176, (b).7 Kothe, 1997, 223. Também abordamos essa questão na página citada na primeira nota acima.8 Conforme observou Schwarcz, muitas famílias patrióticas brasileiras trocaram os sobrenomes tradicionais portugueses por nomes indígenas. Schwarcz, 2003, 188. Obj. Cit. Grizoste, 2013, 73, (b).

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cência e o direito natural dos índios. Toda a ferocidade do índio nesses autores é fruto da adversidade do colonizador, que se apropria da sua terra e abusa da sua confiança. O europeu é que os transforma em fera, corrompendo-os, e que longe desse contato impuro eles eram apenas silvícolas. Movendo-se no seu habitat natural o “bom selvagem” humaniza-se, sendo capaz de ouvir a voz divina e, por essa pureza de espírito torna-se superior ao homem branco.

Curiosamente o povo representado no poema do “triunfo da fé” eram conhecidos por sua hostilidade para com a missão jesuítica de Abacaxis (nas margens do rio homônimo, situado entre os rios Tapajós e Madeira), situada pouco acima da foz do rio Jamari (este em território do atual estado de Rondônia, antes Mato Grosso) [Treece, 1993, 18].

Se cantar o triundo fa fé quando os Jesuítas tinham sido expulsos parecia ser um paradoxo, como já dissemos; cantar o sucesso dos Diretores e do plano do Marquês de Pombal ainda no seu nascedouro também era temerá-rio. Em termos gerais Wilkens se adiantou a falar do Sistema Pombalino tanto quanto Camões terá se adiantado a falar dos sucessos dos portugueses na Índia – porque no caso de Camões essas conquistas não tinham sido efetivas de fato, a conquista portuguesa não ultrapassava muito aos portos da Índia. Estas leis pombalinas de colonização, nas palavras de Rodrigues Ferreira como recorda David H. Treece, foram um fracasso definitivo [Apud Treece, 1993, 21].

Examinemos, pois, as linhas antiépicas da obra de Wilkens, esse poe-ma de celebração da fé revela também a outra face que todos nós conhecemos, a fé e a morte andam juntas. A fé que traz a vida eterna encarregou-se ao longo de muitos séculos em exterminar dessa vida muitos hereges e mártires. Os Muras e Portugueses juntaram-se a eles. Já nos dois primeiros versos surgem a dor e o esmorecimento do poeta que propõe cantar o ditoso sucesso inesperado pelos portugueses:

Depois de ver n’hum Seculo passado,Correr só pranto, em abattido rosto, (1.2.3-4)

Que século passado é este que faz o poeta falar em pranto e em ros-to abatido? Ao falar da Eneida o Doutor Carlos André [1992, 27] pergunta-nos “Eneida – poema de morte? Ou de esperança e de vida?” E estas perguntas ha-viam sido feitas por J. Perret que analisou os pontos de otimismo e tragédia do poema de Virgílio [Perret, 1967, 342-43]. Naquela ocasião André dissertava que ao caminhar, o protagonista da Eneida, a morte parecia assumir-se como con-

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dição fundamental que acabavam por conduzir-nos ao caminho da felicidade como necessidade, e o da desgraça como libertação. Eneias, depois de muitas peripécias, chegou ao Lácio, lutou e venceu e lançou as sementes para a funda-ção de Roma. Também na Eneida, logo no princípio o poeta se lembra das vidas destroçadas. Eneias e os seus homens eram Troas, reliquias Danaum atque immitis Achilli (Aen. 1.30), isto é, Troianos, restos dos Dánaos e do terrível Aquiles9. Agora, cantando o sucesso fausto dos portugueses Wilkens se recorda de um tempo do passado que é triste. Há dois contextos, como já explicitamos. Wilkens canta o sucesso da política pombalina que expulsou aos Jesuítas. Este pranto e este rosto abatido seriam, obviamente, frutos da política Jesuítica, e se assim for, por que então o poeta diz-nos do “triunfo da fé na bem fundada esperança da inteira conversão”? É um paradoxo. E esse paradoxo esconde uma realidade, porque por trás destas leis reformistas estava o motivo comercial da colonização e da exploração agrícola e não o da fé propriamente dito. No entanto, permane-cia a retórica da salvação de almas da carta de Caminha a El-Rei. Se os sucessos do Diretório são venturosos e os sucessos dos Jesuítas um infortúnio, por que o poeta se propõe a cantar o triunfo da fé? O pessimismo de Wilkens que tenta elogiar a nova política adotada pelos portugueses lembrando que os mesmos haviam falhado ao apostarem nos Jesuítas é igual ao pessimismo de Virgílio que lembrou-se que os Troianos vencedores do Lácio eram os restos dos mesmos que foram derrotados em Tróia.

Na quarta oitava, depois de invocar a Luz que serve de roteiro para o mísero mortal que habita no Pélago das trevas, Wilkens reforça a ideia do passa-do sombrio da colonização portuguesa. Diz-nos ele “Mais de dez Lustros erão já passados” (1.4.1). Este Lustrum era um sacrifício expiatório, uma cerimônia de purificação promovida pelos censores latinos de cinco em cinco anos quando do encerramento do censo, a fim de purificar o povo romano. Por extensão, o Lustro é um período de quinquenal, que Wilkens contabiliza mais de dez deles, isto é, mais de cinquenta anos. Poderia ter o poeta ter dito “mais de meio século”, no entanto ele busca o nome Latino Lustrum, para dizer que nesse período de mais de cinquenta anos a morte e o terror acompanhava os navegantes tristes, e o termo é acertadamente escolhido. As vítimas dos Lustros amazônicos eram portugueses, porque os Jesuítas certamente tinham sido incapazes da tarefa a que estavam incumbidos, pelo que agora depois de algumas décadas, com o domínio dos Diretores, os navegantes podiam navegar com segurança.

9 Tradução de André, indicação em nota. André, 1992, 28.

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Uma nova referência clássica surge na oitava seguinte, o poeta relacio-na as Amazonas que supostamente habitaram as margens do rio Sul-americano com a prole de Pentesileia. Na mitologia grega, Pentesileia foi uma rainha amazô-nica, filha de Ares e Otrera, e irmã de Hipólita, Antíopa e Melanipe. O mito das Amazonas sobreviveu por muito tempo no Brasil, o padre João Ferreira narrou na sua América Abreviada, segundo o qual as Amazonas, quando os homens iam maridar com elas, elas faziam de bucarro, que cai em um lago por onde elas vi-viam sem varões, elas não tinham os seios esquerdo para não prejudicarem ao seu arco, e esta era senão uma fábula dos índios [Ferreira, América Abreviada, fl. 45]. Curiosa é esta afirmação do padre João Ferreira, porque o mito das Amazonas no Brasil era invenção dos europeus e não da população local. Gonçalves Dias [1868, 241-330] fez um cálculo estatístico para provar a impossibilidade de uma nação só de mulheres, do argumento biológico, de uma crítica histórica segura e csociológica para admitir que as tais Amazonas nunca existiram, nem há provas de alguém que tenha as visto. Se eram visitadas pelos varões Guacaris e deles engravidavam, o poeta questiona já que no oitavo mês a tribo toda viraria uma maternidade e quem defenderia a nação dos vizinhos – sempre ferozes? Roque-te-Pinto diz, “concordemos com o poeta-sábio: isso de amazonas, daquele tipo ortodoxo, é fábula” [Roquete-Pinto, 1948, 88]. Mas essa dúvida da existência das Amazonas era atestada desde a antiguidade contra as próprias Amazonas gregas, Diodoro Sículo, historiador grego do Século I a.C., em sua obra atestou que os homens consideravam essas antigas histórias como contos fictícios.

Sabe-se que quando o conquistador espanhol Francisco de Orellana desceu o rio Amazonas desde o Andes à procura de ouro, o rio ainda era cha-mado de Rio Grande, Mar Dulce e Rio da Canela. Foi Orellana quem confundiu uma tribo local, na região do Baixo-Amazonas, e descreveu-a como icamiabas, isto é, mulheres guerreiras. Em A Amazônia misteriosa, Gastão Cruls descreve que existia nas cabeceiras do rio a serra Itacamiaba, que por muito tempo foi a ha-bitação de uma famosa tribo, e tendo deturpado o nome para icamiaba o termo acabou por ser empregado como sinônimo de Amazonas. Isto acontece porque em tupi i+kama+îaba significa literalmente “peito rachado”. Esse fato pode ter influenciado nas descrições de Orellana que consequentemente levaram o rei Carlos V a denominar o rio por Amazonas, recordando a mitologia grega.

Estas amazonas citadas por Wilkens eram tão belicosas que ele com-para com os Citas. Este antigo povo iraniano eram pastores nômades e equestres

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que por toda a Antiguidade Clássica dominaram a estepe pôntica-cáspia, conhe-cida na época por Cítia. Na antiguidade tardia os Sármatas, povo com o qual os Citas tinham forte parentesco, acabaram por dominar toda a região. Marcial10 recorda que os Sármatas também eram cavaleiros famosos e cuja fama dizia-se que à falta de suprimentos alimentares picavam as veias de seus próprios cavalos e sorviam-lhes o sangue misturado com leite [Obj. Cit., Grizoste, 2013, 117, (a)]. Portanto, Wilkens relaciona as Amazonas sul-americanas com as gregas e em se-quência compara-as com um povo do Velho Mundo conhecido por sua tradição equestre.

Na sétima oitava ele faz a descrição estrondosa do rio Amazonas, como um rio soberbo que corre destruindo a terra, arrancando os arvoredos e levando tudo para o mar. Essa imagem personifica a ambição humana, porque vencendo a fereza deste rio, na oitava seguinte o homem navegando sobre as suas corredeiras, às custas da liberdade de outros povos, extrai da Amazônia colheitas, valores e variedades para o mundo do outro lado do oceano. Contradiz-se no entanto, porque logo adiante diz que o índio Mura habitava em densas trevas, vivendo sem culto, sem templo e sem rito permanente, alheios à noção de divin-dade. A Muhuraida é o poema cujo caráter é a exaltação da política colonialista no Amazonas, mas o poema também lembra que essa política ambiciosa arranca à liberdade ao índio que vive na escuridão e o conduz à escravidão. São imagens incompatíveis. Ninguém que goze de liberdade pode usá-la com destreza na es-curidão; poderíamos e devemos conjecturar que essa escuridão de que nos fala Wilkens é a espiritual sob o ponto de vista cristão, e isso maximizaria o problema, porque o mesmo homem que vem trazer a Luz é o mesmo que traz a Escravidão. É incoerente, é doloroso este destino dos homens, porque aquele que escapa da liberdade nas Trevas é submetido à servidão na luz.

Incoerências, otimismo/pessimismo, esperança/desesperança, vida/morte. O poema de Wilkens possui muitos paradoxos, e deve-se isso ao momen-to conturbado da política luso-brasileira. Por um lado o Brasil caminhava para a independência; o domínio dos religiosos tinha alcançado, no sentido da evangeli-zação, o seu apogeu e agora declinava. Por isso, desesperançoso o poeta encerra o Primeiro Canto dizendo:

10 Em louvor a Domiciano, Marcial diz que a couraça do deus era impenetrável à seta dos Sármatas, e mais segura que até a protecção de Marte. [VII,2]

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Mas minha Casta Musa se horroriza;Vai me faltando a Voz; DistemperádaA Lira vejo; A magoa se eterniza.Suspenda-se a Pintura, que inlutádaDas lagrimas, que pede, legaliza,Vendo a mesma Natureza ultrajádaA dor; o susto; O pasmo; O sentimentoProcure-se outro tom, Novo Intrumento.

Esta natureza ultrajada seria maximizada no indianismo de Gonçalves Dias. O poeta Maranhense se denominaria o Cantor dos povos extintos, lamentaria o assalto aos rios e aos campos do Império. Wilkens diz que a sua Musa está horro-rizada. Por quê? Gonçalves Dias em Meditação depois de observar toda a extensão do grande Império revela: “Foi então que as forças me faltaram, e eu caí exânime, abatendo a terra com o peso do meu corpo.” Exânime o poeta, exânime o seu personagem: no final d’Os Timbiras, Jurucei é abatido por uma flecha traiçoeira que surgiu como um raio em noite escura. Wilkens fala em Pintura, Gonçalves Dias também: a luta entre Icrá e Itajuba é um “quadro aparatoso” (Tim.1.93); “quadro ri-sonho e grande” (Tim.2.39) as três tabas de Itajuba; a aurora desenha “melindrosos quadros” (Tim.3.12) e esse “quadro antigo” todos já vimos (Tim.3.24), e o “quadro pasmoso” (Tim.4.205) é a contenda entre Gurupema e Itapeba. Essa semelhança entre o pintor e o poeta foi enxergada por Horácio em sua Ars Poetica, na epístola aos Pisões, donde disse que Pictoribus atque poetis | quidlibet audenti semper fuit aequa potestas11. Já dissemos noutra ocasião [Grizoste, 2013, 37, (b)] que a Pintura e a Escultura são artes imitativas, enquanto a poesia é assim apenas metaforicamente. Simonide define que a Poesia é uma Pintura falante e a Pintura é uma Poesia muda [Apud Varga, 1981, 167]. Lembramos também na ocasião que o professor Car-los André afirmou que essa definição da “poesia como pintura que fala e a pintura como poesia muda” é de Plutarco e foi citada por Camões em Lus. 7.76.7-8; 8.41.7-8 [André, 1984, 62]. Foi a pintura do tempo de Juno em Cartago que causou dores em Eneias; enquanto na Odisseia é o canto de Demôdoco que causa emoção em Ulisses. Dessa forma, tanto a Pintura, quanto a Poesia, exercem sobre a mente hu-mana a mesma força. Logo, ciente disso, Wilkens fala-nos em Pintura enlutada de lágrimas, é o mesmo pincel do poeta dos povos extintos (Tim.3.47), é inteiramente um quadro antiépico que revela morte e destruição. Wilkens segue falando-nos em dor, susto, pasmo e sentimento, e fala da Natureza ultrajada.

11 “A pintores e a poetas igualmente se concedeu, desde sempre, a faculdade de tudo ousar”. Hor. Ars. 9-10.Obj. Cit. André, 1984, 61.

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Essa Natureza ultrajada personifica todo o seu pessimismo e penum-bra no Segundo Canto, logo na primeira oitava.

Do Inverno a Longa Noute, e tenebróza,Em Nuvem desa involta, que ameaça,Além da Obscuridade, ser chuvóza,E o Caminhante em dividas enlaça,Temendo, sem saber, se já engannózaVereda, que então segue, nova traçaDo Destino será, que á sepulturaAproximando-o vai, certa, e segura.

Eis um novo paradoxo – o Inverno. Um Mura não poderia ter a mes-ma dimensão de inverno que um europeu tem. Um Mura jamais usaria o termo inverno como referência, referir-se-ia aos alagamentos que acontecem durante o verão e outono e acabam justamente no início do inverno. Essa noite citada por Wilkens, é tenebrosa e envolta de densa fumaça, além de escura, é chuvosa, e traz perigos ao caminhante. Definitivamente, esta não é a terra dos Muras. No hemisfério sul as chuvas acontecem entre outubro e março, a primavera inicia-se em 23 de setembro e termina em 21 de dezembro, segue-se o verão até 20 de março, logo em seguida o outono que termina em 20 ou 21 de junho. Na oitava seguinte há uma nova esperança, porque já rendido pelo cansaço e pelo temor, com mil pensamentos na cabeça inspirando-lhe o pavor, o Sol surge no horizon-te desfazendo o negro luto. É uma analogia à evangelização, sendo o cristianismo personificado na figura do Sol, e o paganismo dos índios personificado na noite escura – o Sol, o mesmo astro reverenciado por tantos povos pagãos ao redor do mundo, Wilkens não poderia ter usado um símbolo mais paradoxal para a pro-pagação do cristianismo. Vivendo nessas trevas, o índio Mura representava um perigo para as Cidades e Vilas do Sertão; por conseguinte, essas Cidades, Vilas e esse Sertão, estava envolto por essas densas trevas. A conversão dessa gentilidade foi um intento frustrado dos Jesuítas que mantiveram-se nas margens do rio Ma-deira até o ano de 1756, como acusa o próprio Wilkens numa nota de rodapé da oitava IV do Segundo Canto.

Expulso os Jesuítas, os Monarcas portugueses tinham o desejo de ver a fé propagada, e Wilkens chama esse desejo de “innata piedáde” (2.8.1). Cesare [1974, 239] lembra que Virgílio equilibrou em seu poema o poder e a justiça, a história e a humanidade, a arma e a pietas. Segundo P. Barceló [Apud Gottlieb, 1998, 22, 23] existia um concenso na antiga Roma de que os deuses eram guar-

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diões da vitória e responsáveis pelos sucessos públicos dos governantes. Essa mesma ideia pode ser extraída do Judaísmo e consequentemente o Cristianismo herdou-na. Ross [2007, 1] recorda que Eneias era o herói pious, e em Roma a Pietas, ātis se dizia dos deveres cívicos, familiares e para com os deuses [Monti, 1981, 70]. Odorico Mendes traduziu Pietas, ātis (Aen.1.10) como “piedade” (Aen. 1.14 l; EnB. 1.17). Aristóteles [Rh. 1385b ] definiu a piedade como uma certa pena causada pela aparição de um mal destruidor e aflitivo, afetando quem não merece ser afetado. Machiavel [2011, 191] aconselhava aos príncipes serem tido por piedosos e nunca por cruéis. Ele usa como exemplo a Eneida onde Dido, no verso 1.563-564 explica o motivo dos processos que utilizava para assegurar a defesa do seu reino ainda no seu nascedouro. A Piedade dos Monarcas portu-gueses ainda se dizia respeito aos seus deveres cívicos, familiares e religiosos. A Poranduba Maranhense lembrou que os gritos dos índios, que haviam perdido suas terras, fizeram ecos tão repetidos das margens do Parnaíba até ao Amazonas, que chegaram a ressoar nas margens do Tibre, obrigando o papa Bento XIV a expe-dir aos bispos do Brasil o breve de 20 de Dezembro de 1741, donde ele escreveu contra a escravidão dos índios e as violência que se lhes faziam, proibindo-as sob pena de excomunhão e estimulando com isso a piedade de El-Rei D. João V [Prazeres, 1891, 101]. Wilkens diz-nos então que esta piedade é inata aos Mo-narcas, aos portugueses, em questão. A isto deve-se as suas origens, tanto cristãs, quanto romanas. Lembremos ainda que os portugueses, nomeadamente a cidade de Lisboa, também são descendentes de Ulisses, segundo a qual diz a lenda ser o fundador da cidade. E Ulisses é o exemplo de um rei que cumpre com os seus deveres cívicos, religiosos e familiares.

Curiosamente, Wilkens une o pagão e o cristão em um mesmo poe-ma, assim como fizera Camões. Por outro lado, esse maravilhoso artificial foi condenado por Wolfgang Kayser [1976, 398], segundo a qual, o classicismo pro-curou ganhar um caráter elevado e total da epopeia através do aproveitamento da mitologia grega, cometendo um grave erro, visto o mundo tornar-se na sua parte mitológica, fictícia e artificial, sem ganhar no entanto o maravilhoso dos contos de fada.

Essa evocação da mitologia grega segue-se, e no Terceiro Canto, Wil-kens evoca Zéfiro, que brando move a flor mimosa, crescendo a gala, para dizer que comparado a chegada do anjo tão sereno não é. Contudo, o Zéfiro, era um vento do Oeste. Era impetuoso e funesto, provocava tempestades e borrascas.

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Diz a mitologia que se apaixonou por Flora, mas a ninfa recusou-lhe por seu comportamento demasiado impetuoso. Para agradá-la, Zéfiro transformou-se em uma brisa doce, cujo sopro faz as flores na primavera se abrirem. Por isso, Flora aceitou esposá-lo. Wilkens evoca-o duas vezes por sua suposta brandura, a segunda vez no Sexto Canto, na oitava XIV; mas os cavalos invulgarmente ve-lozes da Lusitânia eram, segundo a mitologia, fecundado nas éguas pelo Zéfiro. O paradoxo da evocação de Wilkens não se limita apenas ao fato de o Zéfiro pertencer a mitologia greco-lusitana, mas de esse vento ser típico daquela região do Velho Mundo e não a América do Sul.

São tantas as contradições do poema. Recordamos pois quando no início falávamos do que estava de fato por trás da intenção do “triunfo da fé”. A oitava VIII do Terceiro Canto, o mensageiro muhurificado diz:

Tereis nos Pôvos vossos numerózosAbundantes Colheitas sazonádas,Vereis nos Portos vossos ventajózosComercio florecer, e procurádasSerão as Armas vossas: PoderózosEmfim sereis, Amáda, invejádasSerão vossas venturas; finalmente,Podereis felices ser eternamente.

Não há dúvida que este vaticínio era falso. Em primeiro lugar pode-mos falar do poder bélico dos índios. Apesar de alguns cronistas evidenciarem o poder letífico desses instrumentos, eles reconhecem a dificuldade em manu-seá-los e claro, a desvantagem delas diante das armas de fogo. Por outro lado, houve um certo exagero nas “numerosas” colheitas, e no “comércio” floresci-do, e no movimento dos portos dos Muras. Mas para isso deveríamos lembrar que Homero também exagera na Odisseia. A importância do porqueiro Eumeu, da ama Euricleia contrasta-se, por exemplo, com a dimensão de uma cavalaria arturiana. O certo é que este jovem mensageiro acreditava numa convivência pacífica entre os Muras, os brancos aliados, e os tapuias e os povos inimigos. No seu discurso, o comercio seria a ponte de união entre estes povos. Todos ouviam-se-lhe atentamente, até que surge um ancião para esfriar os ânimos de todos os índios. Wilkens descreve-o com a mão ressequida, a face adusta e negra e enrugada. Esse é, no meu entendimento, o discurso retórico mais sublime de todo o poema; lembra-me o discurso de um Tapuia ancião em Os Timbiras de Gonçalves Dias, lembra-me ainda Momboré-uaçu, que segundo o Padre D’Ab-

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beville, ao chegarem em Euassaup, na França Equinocial, depois de erigirem um cruz, como haviam feito em Junirã, um ancião esfriou o ânimo dos morubixabas e dos outros anciãos da tribo. D’Abbeville comparou o episódio com a mulher de Pilatos que, inspirada por Satanás, quis impedir a crucificação de Jesus prevendo que este acontecimento tirar-lhe-ia o reinado; agora o espírito maligno, prevendo que a cruz chantada ia expulsá-lo do Novo Mundo e estabelecer o reinado do “Soberano Monarca do Céu e da Terra”, levou este velho índio a esfriar o ânimo dos principais anciãos12. Pode-se ainda dizer que haja uma intertextualidade entre o poema Tabira de Gonçalves Dias com a fala desse ancião, e fico inclinado a afir-mar que D’Abbeville influenciou Wilkens. Eu me recusaria a falar em recepção em Gonçalves Dias porque não sabemos e não há indícios de que o poeta tenha sido influenciado por Wilkens; por outro lado também não podemos asseverar que Wilkens tinha lido D’Abbeville. Mas é inegável que há intertextualidade entre os três autores – e isso deve-se as correlações históricas entre os fatos de Tabira, em Pernambuco; de Momboré-uaçú, no Maranhão13, e do Ancião, no Amazonas. O discurso do Ancião equivalem a 4 oitavas e 1 septilha. 3.16-20:

12 A comunidade indígena de Eussauap tornou-se Uçaguaba, mais tarde denominada pelos Jesuítas de Aldeia da Doutrina, e nos meados do século XVII passou a denominar-se São José dos Poções. Logo depois convertida em Vila de Vinhais, e mais tarde Vila Nova de Vinhais, hoje é um bairro da cidade de São Luís. D’Abbeville, 1975, 115. Eis a narração de Momboré-uaçu diante do sr. Des Vaux, governador da França Equinocial:

“Vi a chegada dos peró em Pernambuco e Potiú; e começaram êles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão traficar sem pretender fixar residência. Nessa época, dormiam livremente com as raparigas, o que os nossos companheiros de Pernambuco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a êles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificar cidades para morarem conosco. E assim parecia que desejaram que constituíssemos uma só nação. Depois, começaram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais aquela, que Deus sòmente lhes permitia possuí-las por meio do casamento e que êles não podiam casar sem que elas fôssem baptizadas. E para isso eram necessários Paí. Mandaram vir os Paí; e êstes ergueram cruzes e principiaram a instruir os nossos e a batizá-los. Mais tarde afirmaram que nem êles nem os paí podiam viver sem escravos para os servirem e por êles trabalharem. E, assim, se viram constrangidos os nossos a fornecer-lhos. Mas não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando tôda a nação; e com tal tirania e crueldade a trataram, que os que ficaram livres foram, como nós, forçados a deixar a região”. (Obj. Cit. Grizoste, 2013, 309, (b).

13 Abordamos essa co-relação entre o poema de Gonçalves Dias e a narração de D’Abbeville na tese de doutorado. Grizoste, 2013, 310, (b). Na ocasião lembramos que em O Papalagui, Tuiavii identificou a mesma falsidade dos Europeus para com os Samoanos:

“Ele mentiu-nos, ele enganou-nos, o missionário; o Papalagui corrompeu-o, de modo que ele nos engana usando as palavras do Grande Espírito. A verdadeira divindade do homem branco é o metal redondo e o papel forte a que ele chama dinheiro. Quando se fala a um Europeu do Deus do amor, ele faz uma careta e sorri. Sorri de tão maneira ingénua de pensar. Quando lhe estendem uma peça de metal redondo e brilhante ou um papel grande e forte, logo os seus olhos brilham e a saliva lhe assoma aos lábios. O dinheiro é o objecto do seu amor, o dinheiro é a sua divindade.”

Complementa dizendo que a única coisa na Europa pela qual não se pedia dinheiro era para respirar, e julgou que se tivessem esquecido, não se admirando nada que, ouvindo as suas palavras, passassem a cobrar também por isso. Tuiavii, 2009, 22-23.

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Oh, dos teus poucos amos14, louco effeito!

Da confiança vil, temeridáde!Que attenção nos merece, ou que conceito,Concelho, que envilece a tua idáde?Quéres, que ao ferro, genérozo peitoEntregue a Páz? Ou perca a liberdáde,A doce liberdáde, o valerózoMuhura, em grilhão pezádo, e vergonhózo?

Já não lembra o agrávo, a falsidade,Que contra nos os Brancos maquinárão?Os Authóres não forão da crueldáde?Elles, que aos infelices a ensinárão?Debaicho de pretextos de Amizáde,Levando-os para hum triste Captiveiro,Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro.

Grilhões, Ferros, Algémas, Gargalheira,Açoutes, Fomes, Dezampáro, e Morte,Da ingratidão foi sempre a derradeiraRetribuição, que teve a nossa sorte.Desse Madeira a exploração primeira,Impedio, por ventura, o Muhura forte?Suas Canoas vimos navegando,Diz, fomos, por ventura, os maltractando?

Para os alimentar, matalotâgemBuscáva nosso Amor, nosso cuidádo;A Tartaruga, o Peiche na viágemLhes dávamos, e tudo accompanhádoDe fructas, e tributos de homenâgem,Em voluntaria offerta, que frustrádoO receyo deichasse; A ConfiançaAugmentando, firmasse a Alliança.Que mais fazer podia o Irmão? O Amigo?Que provas quéres mais de falcidáde?São estes entre os quaes buscas Abrigo?He nesta em que te fias amizáde?Ah Muhura incauto! Teme o inimigoQue tem de falço toda a qualidade.O que a força não pode; faz destréza,Valor equivocando co’a Viléza.

Dito isto, o ancião se levanta e a passos lentos se dirige para o Bosque. O jovem orador não se espanta com a represália do ancião porque já estava a espera. Inspirado pela Luz, o mancebo acaba por convencer e alcançar o respeito 14 Conforme o original.

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dos Muras. A narrativa de um velho Mura exterioriza a verdade vista pelo lado indígena, falta da traição sofrida por seu povo e justifica a rejeição à pacificação e a violência generalizada que eles praticavam contra os europeus [Obj. Cit. Pêgo, 2010, 67].

O anjo que desceu para tutelar aos Muras é comparado a nuvem no deserto, e Mathias é comparado a Moisés que guiara o povo a caminho de Canaã; observemos que o poeta assevera que os Muras “gostózo obedecia” este Moisés. Essa analogia é digna de impugnação, mas deixa de ser se pensarmos que Canaã só aparece aqui no sentido espiritual; por outro lado demonstra a resignação dos Muras que, sem saírem dessa Terra Prometida, aceitavam que os Portugueses transformassem-na nisso, para eles e para os Muras. Esse episódio não pode ser analisado só do ponto de vista literário, mas também do ponto de vista religioso. Mas ambos os sentidos estão intrinsecamente ligados. Não devemos, contudo, confundir quando Wilkens agrega um quadro religioso e quando ele agrega um quadro mitológico. A mitologia surge pelo interesse de parecer literatura, e daí a necessidade do maravilhoso. Apesar disso é preciso convir que a imagem das oitavas XVI e XVII do Quarto Canto são do Maravilhoso dentro da epopeia, mas o seu sentido é apenas religioso. Na oitava seguinte, XVIII, o poeta voltaria a dar um caráter um pouco mais literário e mitológico ao seu poema. Enquanto as embarcações dos Muras desciam o rio Amazonas, Wilkens faz uma analogia com a mitologia greco-latina evocando Febo. Febo é o epíteto de Apolo e significa “brilhante”. Entre os Romanos o epíteto aparece frequentemente como o nome do próprio deus, dispensando a adjunção de Apolo. Apolo, era filho de Júpiter e de Latona, nasceu na ilha de Delos – isto é, Ortígia, com a ajuda de Netuno, sua mãe se refugiara ai fugindo de Juno. Diariamente, Apolo transportava o carro do sol para o alto do céu; depois guardava atrás da montanha. Por isso, era respon-sável pelos dias e pelas noites. Todos os anos viajava para o país dos Hiperbóreos e nessa ocasião dava lugar ao Inverno. Wilkens se referiu as Matronas de Ortígia. Matronas é uma palavra latina que, na Roma Antiga indicava uma senhora de elevado status ou de grande moralidade. Ainda segundo a mitologia, Astéria era a filha do titã Ceo e de Febe. Metamorfoseou-se de codorna para escapar a uma perseguição amorosa de Júpiter. Depois se jogou no mar e transformou-se na ilha Ortígia – mais tarde essa ilha passou a se chamar Delos – onde nasceu Apo-lo. Wilkens, definitivamente, transforma o Amazonas numa extensão do Velho Mundo, na oitava XVII é Canaã, na XVIII é a Grécia Antiga.

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No Quinto Canto, Wilkens volta a evocar a mitologia Latina, dessa vez no entanto para desmistifica-la. Nas oitavas IV e V lembra que os Romanos reputavam inutilmente culto a Jano, chegando mesmo a dedicar a deidade o pri-meiro mês do ano. Uma peculiaridade desse deus era o fato de ter duas faces, uma olhando para frente e outra para trás – para o passado e para o futuro. Quando não consagravam a Jano as suas primícias, consagravam-na então a Jove. Comumente Jove, ou Júpiter, é identificado com o deus grego Zeus. Mas não é uma analogia simples como muitos críticos dizem, Cícero em De Natura Deorum, por exemplo, identificou três deuses com o nome de Júpiter. Na mitologia Ro-mana, Jove era pai de Marte e avô de Rômulo e Remo – os fundadores de Roma. Wilkens conclui que se os Romanos davam primícias aos deuses pagãos; os cris-tãos, os Muras, deviam agora consagrar os primeiros dias do mês de Janeiro ao “Author da vida” (4.5.8).

Caminhando para o final deste artigo, a evocação do Velho Mundo, como já dissemos, é notória na epopeia de Wilkens, dessa vez a Roma Antiga é lembrada. Na oitava VII do Sexto Canto ele evoca o Etna e o Vesúvio e o seu quadro poético é peremptoriamente uma recepção de Horácio. Essa propensão para o pessimismo de Wilkens também é extraída de Virgílio, veríamos também Eneias desolado, invejando aqueles que morreram em Tróia (Aen. 1.94-96) por-que ele sabe que é vão todo o esforço humano à medida que a morte é o caminho certo. Mas vejamos os versos de Wilkens:

No transito impetuózo quanto appanhaA cinzas reduzindo; indifferente,A dura penha, a flor, Jardim vistózo,Casal humilde, ou Póvo numerózo.

Concernente ao que dissemos de Horácio, os versos supracitados per-tencem a oitava VII do Sexto Canto da Muhuraida, nomeadamente os versos 5-8, são claramente copiados da Ode 1.4: Pallida mors aequo pulsat pede pauperum tabernas | regumque torres15. A morte é imparcial e revoa em gritos diante das cabana dos pobres da mesma forma que faz no palácio dos reis16. Wilkens é, definitivamente, um poeta do Velho Mundo. Escrevia para os portugueses, os Muras jamais sabe-

15 “A pálida morte com imparcial pé bate à porta das cabanas dos pobres e dos palácios dos reis”. 16 Conforme já indicamos, esse mesmo quadro de Horácio influenciou os versos 2.48-50 d’Os Timbiras de Gonçalves Dias. Grizoste, 2013, 317, (b).

Tão bem a dor ha de sentar-se E a morte revoar tão sôlta em gritosAlli, como nos atrios dos senhores.

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riam o poder destruidor de um vulcão já que o Brasil em toda a sua extensão des-conhece esse fenômeno natural que destruiu Pompeia e Herculano. Foi, como observamos, influenciado pelos poetas Romanos e Gregos, pela religião a qual professava. Mas não podemos condená-lo porque Wilkens cantava o Triumfo da Fé e os seus versos foram Dedicádo e Offerecido ao Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Joam Pereira Caldas, do Concelho de sua Magestade Fidelissima, Alcaide-Mór, Commenda-dor de S. Mamede de Troviscózo na Ordem de Christo; Governador, e Cappitão General, que era do Estádo do Grãopará, e agora nomeádo das Cappittanias de Matto Groço, e Cuyabá; e nos districtos dellas, e deste Estádo do Pará, encarregádo da execução do Tractádo Preliminar de Paz e Limites, por Parte da mesma Augustissima Rainha Fidelissima, e publicados pela Imprensa Oficial do Reino, em Lisboa. Assim, o gênero épico da conquista por-tuguesa na América que tinha surgido com um português, Anchieta, e acabava com a publicação da Muhuraida, logo, outro lusitano.

Por fim, a Trilogia Árcarde, que tanto exalta a concepção do Brasil pelas mãos de Portugal, tornou-se a base para uma literatura da nacionalidade brasileira. Os Românticos brasileiros, assim como fizeram os portugueses17, ele-geram os índios como representantes da nacionalidade; porque eles sabiam o que o Brasil era no fundo de sua concepção, um filho de Portugal. Dom Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os poetas daquele século entrariam a fundo na nossa origem, mas todos os românticos não deixariam de exaltar o triunfo da fé. O próprio cantor dos Timbiras, tido como o mais puro de todos os indianistas, começa a sua epopeia exaltando a abertura da cruz de Cristo no novo Mundo (Tim.i.1-4). Sejam quais sejam as razões do abandono estóico pela crítica ao poema de Wilkens, recordemo-nos que Sousândrade passou completamente esquecido pelos seus contemporâneos, ou que determinadas obras greco-latinas foram estrupiadas durante a Idade Média, para depois serem resgatadas e valo-rizadas.

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17 Faço essa referência na introdução e conclusão da minha tese de doutoramento. A escultura de Francisco Manuel Chaves Pinheiro de um índio segurando o cetro e um escudo contendo o brasão do Império [Grizoste, 2013, 19 (b)], iguala-se ao Planisfério de 1545 sob posse da Biblioteca Nacional da Áustria, onde um índio aparece com um cetro e um escudo contendo o brasão português. Ibidem 417.

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ESTUDOS SOBRE A MUHURAIDA E SUAS RAÍZES CLÁSSICAS1

Maria de Nazaré Carvalho da Silva2

EPOPEIA E ANTIEPOPEIAAs epopeias clássicas não estão perdidas no tempo, ao contrário o

presente possui muitos resquícios do passado. Mesmo vivendo em uma épo-ca diferente sempre revisitaremos o passado para compreendermos o que e como as coisas realmente se sucederam e quais os legados deixados pelos nossos antepassados. Para que novas poesias épicas fossem confeccionadas os poetas tinham como fonte de inspiração os mais renomados poetas clássicos, em espe-cial, Homero e Virgílio – ponderando que o poeta latino já é propriamente fruto da recepção homérica. As epopeias se tornaram a representação mais sublime da nacionalidade/humanidade e só possuem valor se transmitir, ao mesmo tem-po, exaltação da história e semente do futuro [André apud Carvalho, 2008, 14].

A partir dos pressupostos da poesia épica e antiépica abordaremos os pontos de convergência de recepção, partindo da Eneida à Muhuraida. Mos-trando como as duas obras apresentam similaridades em diversos aspectos, visto que, a obra romana enaltece a conquista do Lácio pelos troianos, tal como a Muhuraida canta a conquista da ínvia Amazônia pelos portugueses.

Para Carvalho [2008, 13], a epopeia e antiepopeia é lugar de canto de celebração e sublimação de heróis, onde é possível encontrar escuridão, dor, ressentimentos. Por isso, o poema épico é, na sua relação com o tempo e a sociedade, uma construção importante na literatura para a compreensão dos acontecimentos pretéritos, tornando-se possível ler os movimentos, as zonas de luz e de sombra naquele espaço de tempo, naquela sociedade; ambos do qual somos frutos.

Virgílio celebrou na sua epopeia a Pax Romana [Medeiros; Carvalho; André apud Grizoste, 2011, pg. 17], e colocou o seu herói Eneias como o pre-cursor de todas as suas ideias, “o poeta sentiu as sombras que cingem os seus

1 Artigo construído em um Programa de Apoio à Iniciação Científica [PAIC] durante o ano acadêmico de 2014-2015 sob orientação do Professor Doutor Weberson Fernandes Grizoste.2 Possui Licenciatura em Letras da Universidade do Estado do Amazonas

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heróis que são, a antevisão dos homens de carne e osso que fizeram a historia de Roma” [Carvalho,2008,13] depois de muitas peripécias e contratempos en-frentados ao longo do percurso cujo destino seria a fundação de Roma. Contra a própria vontade Eneias foi escolhido pelos deuses para ir à busca de uma, nova, pátria prometida, donde introduziria os penates vencidos [Grizoste, 2013, 161] e reconstruiria a identidade dos teucros vencidos. O herói, porém mantinha-se resignado entre o passado vivido em Tróia e o futuro prometido pelos deuses no Lácio. Custa-lhe admitir que Tróia estava perdida para sempre, consumida nas cinzas, nos acontecimentos do passado.

No entanto, a Eneida apresenta muitos elementos que só podem ser encontrados na epopeia. Contudo, o poema de Virgílio configura-se decisiva-mente como uma poesia antiépica, uma vez que ao longo do percurso, de vida, luzes e promessas, o seu principal herói passa por lugares perpetrados de morte, penumbra e esmorecimento, conforme assinalou Carlos André:

No caminhar do protagonista a morte parece assumir-se como condição fundamental, como obsessão; a ela acaba por conduzir todos os caminhos o da felicidade, como necessidade, o da desgraça, como libertação. (André, 1992,27)

O herói troiano durante a sua caminhada passa por muitos infortú-nios em busca da nova pátria perdendo as pessoas que mais amava sua esposa Creúsa, seu pai Anquises, o amor da rainha cartaginesa e seus companheiros de viagem.

Essa relação que temos nas obras clássicas, da ligação do passado com o futuro, semelhante à obra de Virgílio, gerou um estranho convívio entre a grandeza épica e a sua quase rejeição pelo próprio poeta3. Contudo, a obra sobreviveu e chegou até nós, e nesse percurso serviu de modelo para outros poemas, principalmente àqueles cujos fatos históricos e lendários referem-se às conquistas de um povo sobre o outro. A Muhuraida é um poema desta natureza, nela o poeta português Wilkens também nos mostra um olhar sobre o “outro” em decorrência da sua própria pátria, no caso Portugal. Esta é a obra cujo pano de fundo era a pacificação e cristianização da etnia dos Muhuras, o que na “ver-dade” para Krüger [2012,8] “trata[-se] da aculturação e escravização desse povo”.

3 Segundo Medeiros (1992, 7) Virgílio também percorreu um caminho de morte doloroso. Tão doloroso que, no leito de morte, o poeta quis destruir o seu poema. O poema que era seu testemunho.

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Apesar da distância que separa as duas obras, há como ver nas en-trelinhas a exaltação patriótica, explanação da história de Portugal e das missões realizadas, enfatizando a ideia de grandeza e admiração por sua pátria, em que todos foram submetidos a sua pena. Que pena? A pena imposta pelo estrangeiro sobre os que não possuem nem um tipo de conhecimento tal qual os portugueses ao chegarem na Amazônia estavam com a ideia de catequisar os indígenas pois acreditavam que eram pagãos e de certa forma conseguiram.

Virgílio soube fazer-se ouvir de várias maneiras as vozes de todas as vidas [Carvalho, 2008,14], exclamadas no primeiro capítulo. A pena de Virgílio, ao evidenciar em seu poema a glorificação romana deixou escapar clamores, pes-simismos, e acabou por resvalar para uma antiepopeia, levando consigo poeta, poema e pátria. O legado deixado por Virgílio, vamos encontrar nas poesias dos escritores portugueses, que o seguiram no mesmo raciocínio, e entre eles esta Wilkens que cantou a glorificação portuguesa na sua Muhuraida.

Daqui resulta uma essencial contradição que, invertidamente lida re-flete as linhas as quais Virgílio transmitiu na sua poesia épica, a de um poeta assu-midamente antiépico, por ignorar tudo que vem da epopeia, toda a grandiosidade patriótica que dela surgiu [Carvalho, 2008,26]. Segundo Medeiros [1992,12], a grandeza da Eneida esta na sua própria contradição: na afirmação profundamen-te vivida e profundamente trágica da infelicidade dos heróis, da infelicidade da própria condição humana.

De um lado, a imponência e o esplendor épico que o poeta insistente-mente recusa em nome de apegos mais altos como liberdade, justiça e dignidade de outro uma decaimento em diferentes níveis e gradações, que parece ter uma ausência afetiva de matéria épica, “que não permite fazer tabua rasa da historia do passado dando luz ao futuro, própria da epopeia” [Carvalho, 2008, 24].

A antiepopeia concentra aquilo que é o elemento essencialmente prin-cipal da sua correspondente contrária, a distância épica ao eliminar o espaço temporal entre o universo imaginado e a época do seu autor e de seus contempo-râneos [Grizoste, 2011, 29]. O universo épico é por natureza um mundo ideal. A antiepopeia transforma este mundo completo do passado e apresenta lacunas no tempo presente e real, com o seu cortejo de desventuras, misérias e submissões [Carvalho, 2008,39].

A coloração sombria do canto de Virgílio serviu como pano de fun-do para a poesia do português Wilkens, que recobre e se espalha até o limite da

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epopeia em negativo de que a poesia virgiliana é exemplo concludente, a aproxi-mação da estrutura do poema pela exaltação e desencanto, que o poeta exprime em ação e sonho poético, tornando-se de alguma forma a voz publica ou privada, refletindo afinal “não na essência do gênero épico, mas a do gênero humano, contraditória como somente o poeta sabe ser, nenhum código pode explicar ca-balmente os rodeios da alma humana nem sarar as feridas que a pátria um dia produziu” [Carvalho, 2008,36].

Compreende-se, pois, por óbvio e também oculto contraste, que tudo que é negro, baixo, detestável e carente de grandeza é extinto da largueza do mundo épico e, de igual modo, toda a luz, aumenta a importância e nobreza, diminuem-se das coordenadas do mundo antiépico. Uma história do passado de dois sublimes cantores, como Virgílio e Wilkens, que escolheram exaltar a sua pátria, pobre e mutilada, para se reerguer sobre a pátria de outro, por exemplo Virgílio exaltou a conquista dos troianos sobre os romanos e o poeta português exaltou a conquista portuguesa sobre os amazonidas.

Segundo Carvalho [2008,47], é verdade que a poesia portuguesa bus-ca ainda, que, por vias opostas, um ser coletivo português, a procura de uma identidade, tarefa assumida como “missão” por cada um destes poetas, nunca se afigurou simples para um povo, poetas incluídos que continua debater-se entre o desalento e a esperança, no grande mapa dos humanos.

E assim as epopeias clássicas surgiram para que se houvesse o enten-dimento e o conhecimento das historias dos guerreiros seja romano ou indíge-na, mas que contribuíram direta ou indiretamente para que possuíssemos uma identidade.

O POETA HENRIQUE JOÃO WILKENSNão há muita informação sobre o autor de Muhuraida, sabe-se que

o poeta estivera no Amazonas, trabalhava como tenente nos meados do século XVIII, também atuou como comandante militar do quartel de Ega atual Tefé, passou também por Mariuá atualmente a cidade de Barcelos participou da Co-missão de limite entre os domínios de Portugal e Espanha. Era formado em en-genharia e possuía especialização em cartografia e exerceu sua função na cidade de Tabatinga.

O militar português Henrique João Wilkens confeccionou o poema épico “Muhuraida o triunfo da fé na bem fundada esperança da inteira conver-são, e reconciliação da grande, e feroz nação do gentio muhura”, era comum a

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época de o colonialismo militares escreverem poesia dentro dos quartéis, sendo que Muhraida foi o

O primeiro texto poético, formulado em estrutura épica e escrito em língua portuguesa sobre a Amazônia, Muhuraida (1785) constitui-se como elemento fundacional que demarca suas fronteiras, tanto geográficas quanto políticas, tanto militares quanto econômicas, constituindo-se em um texto escrito por um engenheiro militar que, no momento mesmo de sua produção, atuava como tenente-coronel a serviço da Coroa Portuguesa, na Comissão de De-marcação dos limites dos “sertões” amazônicos (Caldas, 2007, p.6).

Muhuraida foi confeccionado por um português para nomear o imen-so e riquíssimo território que hoje é reconhecida como Amazônia, mencionada na obra como Grão-Pará e Maranhão, mas foi Grão-Pará e Rio Negro que se originou o Estado do Amazonas.

MUHURAIDA, O PRIMEIRO POEMA ÉPICO DO AMAZONASO poema épico do amazonas Muhuraida é de suma importância para

se descobrir sobre a história desses indígenas que habitam a região amazônica, pois se trata de uma obra épica com evidencias de documentação histórica, além de tratar-se de uma grande descoberta para a Literatura por ser uma obra que apresenta muitos elementos clássicos na sua essência, reforçando assim o que realmente essa pesquisa busca sobre o assunto.

Muhuraida foi confeccionada no ano de 1785 pelo militar português Henrique João Wilkens, tornando-se a primeira obra épica escrita na região ama-zônica, mas só veio a ser publicada pela primeira vez no ano de 1819.

O gênero épico surgiu no Brasil em meados do século XVIII, onde os poetas viriam a cantar o índio brasileiro, os principais cantores da época que se destacaram foram os árcades Basílio da Gama (1768) e Santa Rita Durão (1781) exaltaram o índio como o verdadeiro dono da identidade nacional brasileira, for-mando assim com Muhuraida uma trilogia de poemas épicos que exaltariam o índio de norte a sul do Brasil, de acordo com que expõe Grizoste (2014) p. 1:

Levando em consideração as condições históricas especificas, a Muhuraida se configura como o terceiro poema épico em ordem cronológica do arcadismo brasileiro; um fator curioso é o fato de o poema de Basílio da Gama ter sido escrito com bases dos acontecimentos do Sul, o poema de Durão com base nos acontecimentos no Nordeste e o poema de Wilkens ter sido escrito com base nos acontecimentos no Noroeste, configurando as mesmas formas geo-métricas e delimitações geográficas do Brasil.

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Pêgo também ressalta que “poder-se-ia dizer talvez, por isso, deno-minarmos estes poemas como uma trilogia árcade de poemas épicos” [Pêgo apud Grizoste, 2014,p.1] por adotarem uma preocupação semelhantes com as possibilidades dramáticas dos protagonistas, neste caso, “os indígenas”, o tema indianista é bem conhecido como a mais importante expressão do romantismo novecentista, pois articulou as diversas concepções da nação-estado e da identi-dade nacional muitas vezes debatido na época, fazendo com que o indígena se tornasse o “símbolo” dos poemas épicos nacionais.

Mas quem realmente deu início ao tema “índio” segundo Grizoste foi o padre José de Anchieta, devido a sua epopeia ser a mais antiga da América Latina.

A Muhuraida apresenta junto ao Uraguai e Caramuru uma afinidade muito forte ao tema indígena, e todos trazem na sua essência a grande admi-ração aos feitos portugueses principalmente a submissão dos indígenas para com os mesmos, traziam como argumento a “fé cristã” e assim conseguirem a aproximação com aqueles considerados “bárbaros”, uma vez que não aceitavam a aproximação do homem branco no seu habitat, e isso acontecera de acordo como expõe Pêgo:

Desde que os portugueses aportaram no Brasil e entraram em contato com seus habitantes naturais, os índios, que estes se tornaram um elemento de interesse para a fértil literatura que se produziu naquelas terras recém-con-quistadas. Das descrições curiosas e entusiasmadas dos viajantes e explorado-res à visão econômica dos colonizadores ou a analítica e evangelizadora dos religiosos, o índio nunca deixou de ser objeto de escrita. (Pêgo, 2010, p.59)

Esse interesse que a autora se refere podem ser observadas na carta de Caminha, que serviu de base para os aventureiros que passaram pelo Brasil, descrevendo os costumes dos indígenas, costumes estes que podem ser visto claramente no poema de Wilkens.

A Muhuraida nasceu justamente “em um momento de crise entre o estado e a igreja e no Limiar do Capitalismo moderno” [Grizoste, 2014,p.02] pois o poema que canta “o triunfo da fé” surgiu em uma época que Marques de Pombal havia banido a Companhia de Jesus do Brasil, uma vez que controlava a bastante tempo as aldeias missionárias e coordenavam o trabalho indígena, for-mando assim um reservatório de mão-de-obra cabocla.

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Não é nada surpreendente, portanto, que, mesmo antes de se transformar em símbolo nacionalista, o índio se colocasse na imaginação literária como referencia dessa conjuntura de luta pela implantação do projeto iluminista, neocolonialista e capitalista no Brasil, bem no centro da disputa entre os po-deres eclesiásticos e seculares pelo territorial, econômico e ideológico. (Tree-ce, 1993, p.15)

No entanto a crise da igreja e no limiar do capitalismo português, trata-se de um poema “paradoxal porque canta aquilo que não devia mais cantar e portanto antiépico” [Grizoste,2014,p.02]. Pois a igreja sofria na época graves crises, e o ano que foi publicado o poema consequentemente o estado português viria a perder suas forças de “domínio”, fazendo com que a Muhuraida assim como os outros dois poemas Uraguai e Caramuru se tornassem uma continuação de um mesmo propósito de cantar as conquistas portuguesas na América.

O GENTIO E O BOM SELVAGEMO gentio e o bom selvagem uma das ideias mais famosas e até hoje

muito debatido por muitos estudiosos, e teve como mentor o filósofo Jean-Jac-ques Rousseau, defendia a teoria do “homem bom” no seu estado natural, depois corrompido pela sociedade, mas seria uma contradição? pois a sociedade é pre-cisamente formada por esses mesmos “homens bons”?. No entanto o homem não foi idealizado como de fato teria que ser, e sim ignorando como ele de fato é Leopoldi afirma que:

Para estes pensadores e filósofos políticos o estado de natureza era um perío-do de selvageria fundamentalmente insatisfatória, onde os aspectos negativos dificultavam demasiadamente quando não inviabilizavam a vida em coletivi-dade. (Leopoldi, 2002, p.159)

O bom selvagem difundiu-se do culto da natureza, identificando e assi-nalando a artificialidade da civilização, passou-se a considerar a rivalidade uma perversidade que destrói a discrição comunitária inata ao homem, estimulando suas características mais perversas, incluindo o desejo de exploração, exatamente essa exploração, podemos observar realmente o que acontecera com os indígenas no seu contato com os europeus, mas precisamente os portugueses e espanhóis.

O filósofo do bom selvagem, em alusão as qualidades superiores que, a seu ver, exibiam os indivíduos que viviam no estado de natureza. Uma de suas características básicas é, o ambiente natural extremamente abundante e aco-

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lhedor, a ponto de parecer ter sido criado na medida exata para servir ao homem em termos de recursos alimentares, sendo aliás, a preservação uma das poucas preocupações, senão a única no seu estado de natureza. (Leopol-di,2002,p.160)

Essa vida extremamente selvagem foi observada pelos portugueses ao passarem pelas terras brasileiras, pessoas sem nenhum tipo de civilização, sendo que podemos ver ainda hoje em muitas aldeias indígenas que vivem de maneira natural.

Assim como os índios os caboclos também vivem de maneira natural, da pesca, da caça de plantações, mais esse modelo de viver a vida é visto como comodismo, “houve, como Martius quem visse os selvagens brasileiros como restos degradados de uma raça com estagio cultural outrora avançado” [Grizoste, 2013, p.63].Pessoas que não tem disposição de trabalhar igual a muitos que se dizem civilizados, sabe-se que não é dessa maneira, e sim o estado natural, uma vez que essa atitude de se viver é a sua essência, passada de gerações.

A maneira de viver no estado natural, também foi observou-se por Thévet ao descrever a “França Antarctica” como:

Uma terra habitada por estranhíssimos selvagens sem fé, sem lei, religião e nem civilização alguma, que viviam como animais irracionais, tal como fo-ram concebido pela natureza isto é, nus, alimentando-se de raízes (mandioca), como se estivessem assim à espera do dia em que o contato com os cristãos lhes extirpasse essa brutalidade para que pudessem vestir-se adotando um procedimento mais civilizado e humano. (Thévet apud Grizoste, 2013, p.63)

O mito do bom selvagem era mencionado bem antes, nos cadernos de viagens, nas cartas, havendo assim uma controvérsia em atribuir todas as iniciativas a Rousseau [Silva apud Grizoste, 2011, p.532], “o mito do bom sel-vagem é muito anterior a Rousseau e seus contemporâneos” [Dias apud Gri-zoste,1982,p.214],também muito antes ao bom selvagem mas precisamente o americano já se falava no “homem silvestre,” e eram encontradas nas epopeias, romances, e em alegorias medievais ligados ao folclore europeu.

E esses seres acreditava-se que eram pessoas extremamente violentas, e não tinham a capacidade de raciocinar, e muito menos o conhecimento da exis-tência de Deus, é essa falta de “crendice” que os europeus usaram como pano de fundo para a aproximação com os indígenas amazônidas.

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O ambiente natural é para o homem selvagem abundante e aco-lhedor criado de maneira que não intervisse na sua estética natural, preservando suas necessidades, “encontram-se tão facilmente ao alcance da mão e ele está tão longe do grau de conhecimentos necessários para desejar adquirir outros maiores, que não podem ter nem previdência nem curiosidade” [Rousseau apud Leopoldi, 2002,p.160],realmente o autor tem razão, pois pessoas que se compa-rados aos indígenas eram civilizados e ao se aportarem nas terras alheias, traziam consigo a ambição pelo “ouro” sendo que os que já conheciam o minério, não tinham ambição devido a falta de conhecimento, ou seja, a única coisa com que os “selvagens” se preocupavam era com a alimentação.

Há que conferir que o índio, sobretudo o brasileiro, também não dava valor ao ouro, mas neste caso porque não conhecia o apuramento e as utilidades do minério, e também contribuiu para isto o seu desapego aos bens materiais e acúmulos de objetos e seu caráter despreocupado com o futuro, vivendo dia a pós dia (Grizoste, 2013,p.64.).

Outra ênfase sobre o estado de natureza do homem na perspectiva de Rousseau é a falta de agrupamentos entre esses indivíduos, não existia o conví-vio em comunidade e preferiam viver isolado uns dos outros, “quebrado apenas para efeito de reprodução” [Leopoldi,2002,p.160].Viviam de acordo com o que a natureza os oferecia sem necessidades de viver em bandos como os chamados “civilizados sociais”, acreditam que para se conviver na civilização é necessário que haja um agrupamento humano.

Sabe-se que desde o principio o homem vivia das suas atividades cam-pestres, do cultivo da terra, “o homem foi primeiramente caçador e pescador, depois pastor e depois de haver percorrido os dois é que veio a ser agricultor” [Magalhaes apud Grizoste,2013,p.64], e os indígenas não há registros de terem sidos pastores ate mesmo porque muitos dos animais da fauna brasileira, não são domáveis devido a sua ferocidade.

Mas os indígenas brasileiros tem domínio no que desrespeito à me-dicina natural, são conhecedores de ervas que ajudam a curar algumas doenças, mecanismos muita bem aceita pela medicina atual.

Em suma o mito do Bom Selvagem nada, mas “foi a concretização filo-sófica do objetivo do colonizador” [Grizoste,2013,p.65], queriam que os índios se tornassem um modelo de domesticação para que se tornassem seres com uma identidade diferente, a beleza da civilização que aos olhos dos europeus era a me-

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lhor maneira de se viver, e de certa forma foram convencidos de que a maneira que o homem branco vive é bem melhor do que estes já estavam acostumados, e se fizessem uma troca? O civilizado convivendo de modo natural, no habitat do índio, e o índio no ambiente civilizado, obviamente que tanto como o branco como o índio se tornariam “bestiais” não saberiam conviver com as diferenças um do outro, segundo Leopoldi [2002, p.168],Rousseau não estava preocupado com as sociedades indígenas.

A ênfase que ele deu ao selvagem do período inicial do estado de na-tureza que expunha qualidades elevadas e vivia em um ambiente paradisíaco in-dependentemente de demonstrar na prática a sua existência, teve como desígnio fundamental colocá-lo numa posição de contraste em relação ao homem civili-zado.

Portanto, não foi o índio com toda sua bestialidade que se levou a sua própria destruição, e sim o homem branco a imagina-lo e idealiza-lo fazendo com que sua imagem denegrida por estes fosse a principal arma para sua própria ruína.

AS SIMILARIDADES CLÁSSICAS DA ENEIDA EM MUHU-

RAIDA

Exaltar o triunfo da fé depois dos Jesuítas já tivessem sidos expulsos parecia ser uma ideologia contrária, “cantar o sucesso dos diretores e do plano do Marques de Pombal ainda no seu nascedouro também era temerário” [Grizos-te,2014,p.04] pois Wilkens se adiantou em falar dos planos do sistema Pombali-no assim como Camões teria se adiantado a falar do sucesso dos Portugueses na Índia, sendo que essa conquistas que Camões exaltou não foram concretizadas.

No entanto abordaremos as similaridades da Eneida em Muhuraida e analisaremos, pois, alguns pontos antiépico no poema do português Wilkens, podendo assim mostrar a outra face, cheia de fé, morte, e desventura da obra.

A primeira semelhança que foi encontrada foi entre os dois canto-res Virgílio e Wilkens ao oferecer as suas obras a pessoas próximas e também admiravam. O poeta latino escreveu sua epopeia Eneida a pedido do rei Cesar Augusto, e isso aconteceu porque os gregos tinham obras que exaltavam os feitos da sua pátria e heróis.

Então Augusto pediu para que Virgílio também elaborasse um poema que mostrasse a heroicidade de seu povo, contudo não foi uma tarefa fácil, pois o

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poeta tinha escrito somente obras que cantavam os pastores, a floresta, realidades campestres que são encontradas nas Bucólicas e nas Geórgicas. E por ser um pedido do rei Augusto, aceita então a elaborar o poema e deixa claro em um dos versos da Geórgica, o quanto o admirava:

Mas tenho que tentar outro caminho que me erga da poeira, que em vitória me faça voejar de boca em boca. Serei eu a trazer a minha pátria dos cimos do Aónio, e o primeiro as musas do Triunfo, assim levando a grande Mântua as palmas iduméias. E junto à aguas hei de edificar um templo meu de mármore em porque o Nilo decorra largo e lento as margens decorando com o junco. Ali dentro colocarei eu Cesar e dentro ficara para morar. (Georg III. 15-27)

Já poeta de Muhuraida oferece no seu poema uma dedicatória ao seu superior João Pereira Caldas, segundo Treece aparece no texto como um dos agen-tes do milagre divino [Treece,1993,p.19], essa dedicatória é datada de 1789, e assim como Virgilio, Wilkens também escrevera a sua admiração a quem o português considerava ser depois de Deus a quem ele venerava.

A Sua Ex.ª o senhor João Pereira Caldas (o Author)Quis a Providencia, não sei se para coarctar a minha Ousadia; se para desva-necer a minha Confiança, retardar huma Offerta, que tendo toda a apparencia de Tributo, O affecto, veneração, e respeito, que a ilustre Pessoa de Vossa Excellencia conságro devidamente, confiar quis huma Mão alheya, aindaque bem interessada neste mesmo Objecto, para assim mais respeitóza se presen-tar à ilustre Vossa Excellencia. (Wilkens,1993,P.87)4

A dedicatória do poema apesar de não aparecer no corpo do texto, é citada no subtítulo e se confirma no para texto e tem como título A Sua Exª o senhor João Pereira Caldas, a partir desse momento o poeta português dedicava toda sua obra ao ex-governador do Grão-Pará, e também aproveitara para pedir ao governador toda a sua proteção quando diz: “Procura pois a Muhuraida a alta Proteção de Vossa Excellencia” [Wilkens,1993, p.89].

Outro termo de semelhança entre as duas obras é encontrada logo no primeiro canto, pois no inicio da Eneida Virgílio lembra das vidas destroçadas devido o herói de sua epopeia Eneias ser “descendentes de Troiano, restos dos Dánaos e do terrível Aquiles” [Medeiros, 1992, p.28], mas que para chegar ao Lácio muitas foram as peripécias do herói, lutou e venceu deixando as sementes da fundação de Roma.

4 Embora o manuscrito esteja datado no ano de 1785, a dedicação e assinada no dia 20 de maio de 1789.

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Sou eu aquele que em passado tempo meu canto confiei a frágil frauta e levei a que campo meus vizinhos ao desejo do dono obedecessem, que bom traço agradasse ao camponês. Sou eu agora quem celebra em canto, nos horrores das armas de Mavorte, o varão que primeiro veio de Troia à nossa Itália, às praias de Lavínia, em fuga obedecendo seu destino, bem batidos por mares e por terras, pela divina força dos de cima, por ira tenaz da crua Juno, tanto so-frendo em guerra ate fundar a cidade que é sua, até trazer ao Lácio os deuses, e, daí provinda a raça dos latinos, avos de Alba depois muralhas da famosa Roma.(Aen.I,v.1-18)

O português Wilkens ao cantar o sucesso dos portugueses também se recordou dos acontecimentos do passado, dos esmorecimentos que outro-ra aconteceram, assim como Virgílio presenciou muitos acontecimentos reais. O poeta romano viveu em um período conturbado, pois chegou a presenciar a guerra da Perúsia. “O vendaval das guerras civis despedaçava todas as portas: roubou as terras do poeta e esteve a ponto de lhe roubar a vida” [Medeiros, 1992, p.08], e Wilkens na sua obra Muhuraida relata que presenciou nas missões, as atrocidades que aconteceram nas lutas de portugueses e indígenas, os dois poe-tas descreveram acontecimentos da sua vida pessoal para dentro das suas obras.

No canto I e possível ver a dor e a tristeza do poeta ao escolher a cantar o sucesso dos portugueses, podendo assim perceber as linhas antiépicas da obra do português.

Canto o successo fausto, inopinado,Que as faces banha em lagrimas de gosto,Depois de ver n´hum Seculo passado,Correr só pranto em abatido rosto5,Canto o successo, que faz celebradoTudo o que a providencia tem disposto,Nos impensados meyos admiráveis,Que os altos fins confirmão inscrutáveis. (Muh, I, v.1-8)

Quando o poeta de Muhuraida se submeteu a cantar os feitos portu-gueses, precisamente os feitos da politica pombalina sobretudo a expulsão dos Jesuítas é que deixa escapar todo o esmorecimento dos fatos, quando diz: Correr só pranto em abatido rosto seria o pessimismo que os Jesuítas sofreram com a expul-são. Mas o que dizer quando o poeta fala do “Triunfo da Fé”? Seria uma contra-dição? Seria. Para Grizoste é um paradoxo e esse paradoxo esconde uma realidade, o que

5 Ao dizer que os dois poetas levaram acontecimentos reais para sua obra,vejamos o que Wilkens expõe no rodapé da sua obra, Do horrózo estrágo, e mortandade, que os Muhuras fizeram no anno de 55 deste Seculo, nas missões dos índios Moradores da Aldeya do abacachi, Missão dos Jesuítas do Rio Madeira, fui eu ocular testemunha; do que fizeram nas povoaçoens do Solimoens em 56 e 57, também vi; e da Desolação em que tudo ficou, enchendo todos de horror.Wilkens.1993,p.99.

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realmente os colonizadores estavam interessados era nos lucros comerciais e a exploração agrícola, mas mantiveram como pano de fundo “a fé cristã”.

Outro elemento clássico encontrado no poema de Wilkens, podendo assim afirmar de que o poeta conhecera as obras épicas antigas e usou-a como modelo para confecciona a sua Muhuraida, na quarta oitava mais uma vez assim como Virgílio retoma suas ideias do passado ligadas aos portugueses causadores de todos os infortúnios, o poeta expõe:

Mais de dez Lustros erão já passados,Que a Morte, e o terror accompanhávaAos Navegantes tristes, que occupádos,Estávão co´o o perigo, que esperavaA cada passo ter nos descuidadosSegura preza em que se alimentava,Despojo certo, e victima inocente,Na terra, ou mar, do Rio na corrente.(Muh,I,v.1-8)

Vejamos o quanto à linguagem clássica, está presente na obra de Wil-kens, quando o poeta diz: “Mais de dez Lustros erão já passados”, Lustro na tradição romana, “era um sacrifício expiatório, uma cerimônia de purificação promovida pelos censores latinos de cinco em cinco anos quando do encerra-mento do censo, a fim de purificar o povo romano” [Grizoste, 2014, p.05].

O poeta poderia ter usado o termo “mais de meio século” mais pre-fere usar a linguagem latina, no entanto os períodos de horror duraram mais de cinquenta anos, “período que compreende as três partes em que a narrativa se divide: antes, durante e após o processo de pacificação” [Pêgo, 2010,p.62].

Outro elemento clássico encontrado ainda no primeiro canto está na oitava seguinte ao se referir a Pantasiléia, “Rio, que de Pantasilea a Prole Habitan-do” (Muh. 1.4.1-2), na mitologia grega foi uma rainha amazônica, filha de Ares e Otrera. O mito das amazonas resistiu no Brasil por muito tempo, e certamente Wilkens conhecera ao citar o mito grego.

Mas o Padre João Ferreira na sua obra América Abreviada afirma que o mito das Amazonas no Brasil era invenção dos europeus e não da população local [Ferreira apud Grizoste, 2014,p.06.], o escritor paraense na sua obra Ensaio sobre a poesia épica, expõe a presença definitiva das Amazonas como “a mais fas-cinante das lendas da nossa terra, surgida antes mesmo do início da colonização portuguesa, e de tal força configurada, que deu nome ao rio de cinge ao norte do território brasileiro” [Nunes, 1962, p.18].

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As Amazonas a quem Wilkens ressalta tão aguerridas e a quem o poeta compara com os Citas, “um povo Iraniano, nômades que por toda An-tiguidade Clássica dominaram a estepe pôntica-cáspia, conhecida na época por Cítia” [Grizoste, 2014, p.06]. No entanto o poeta português brinca com as lendas, primeiro faz uma comparação das Amazonas da América do Sul com as gregas e em seguida com o povo do Velho Mundo.

A narrativa de Muhuraida gira em torno da pacificação e da conversão dos índios Mura pois eram ausentes do Diretorio Político, sociais e econômicos dos portugueses, “haviam se tornado um entrave ao desenvolvimento da região onde habitavam dificultando a extração e o comercio das drogas do sertão” [Pego, 2010, p.62].

O poema épico do Amazonas como já foi dito é o poema da exal-tação politica colonialista, mostra também uma politica que trouxe consigo a ambição, e acabou com a liberdade do índio que viviam na escuridão e o levou a escravidão, então, o mesmo homem que trouxe a luz, trouxe a escravidão? Sim, é o mesmo homem.

“É incoerente, é doloroso este destino dos homens, porque aquele que escapa da liberdade das Trevas é submetido à servidão da luz” [Grizoste, 2014,p.07].

No entanto faço valer as palavras de Walter de Medeiros quando expõe:

A vitória é uma derrota, a breve ou a longo prazo, se não for mortificada com a fraternização(...)Virgílio não via essa fraternização: via encarniçamento, prepotência autocracia, a lei do mais forte, a criar revoltados, resignados ou extintos (MEDEIROS,1992,p.08).

Assim como Virgílio também podemos ver em Wilkens que ele não via essa “fraternização” entre Muras e os portugueses e sim a lei do mais forte. Com tanta desventura e pessimismo que o autor termina o primeiro canto sem nenhuma esperança dizendo:

Mas minha Casta Musa se horroriza;Vai me faltando a voz; DistemperádaA lira vejo; A magoa se eterniza.Suspenda-se a Pintura, que inlutádaDas lagrimas, que pede, legaliza,Vendo a mesma Natureza ultrajadaA dor; o susto; O pasmo; O sentimentoProcure-se outro tom, Novo Instrumento. (Muh.1º,v.XVI)

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Nesse quadro de Muhuraida pode observar que Wilkens fala em pintu-ra “Suspenda-se a Pintura, que inlutáda” assim como na Eneida, quando o herói troiano chega no templo da deusa Juno em Cartago ao ver nas paredes do templo as pinturas que o remetem as lembranças de sua pátria o fazem chorar:

Foi quando examinava em pormenor aquela maravilha, ao aguardar que a rainha chegasse, que ele viu em obra harmoniosa dos artistas, resultados de todos os trabalhos, o sequente apresentar das lutas que em Ílio houvera e já levara a fama ao mundo inteiro, os Atridas e Príamo, com Aquiles a todos tão funesto.(Aen,I,v.672-680 p.153).

Assim como na Eneida o herói da Odisseia chorou, ao ouvir o canto de Demódoco nas teras do rei Alcinoo mas com diferenças entre si:

Em Cartago, Eneias chora diante da pintura de um templo cuja evocação rememorava a guerra de Tróia. Chora como Odisseu chorou diante do canto de Demódoco na terra do rei Alcinoo. Odisseu, porém era um vencedor e Eneias um derrotado. Odisseu retornava a pátria e Eneias não tinha, mas pátria (Medeiros, 1992, p.21).

Para Simonide define que “a poesia é uma pintura falante e a pintura é uma poesia muda” [Apud Grizoste,2014,07].O poeta português também fala em “pintura enlutada de lágrimas”, podendo assim dizer que é um quadro antiépico devido ter por trás a desventura a destruição, e principalmente a morte.

O cantor de Muhuraida também trouxe das epopeias clássicas alguns episódios para a sua narrativa. Assim, no canto segundo, um anjo quando desce a terra para pregar o cristianismo entre os indígenas, se expõe em feitio de um Muhura, e para conseguir convencer o índio a quem aparece, ele se transformar-se em um rapaz que morrera a muito tempo e fora vítima de um jacaré:

Perplexo então o Muhura, olhando atento,Ver parecia no mancebo adusto,Hum seu Parente, que hum golpe violento,De rámo, separado, mas robusto,Nas ondas fez cahir; sanguinolento.Despojo reputádo, que do injustoFado, alimento estáva destinado,D´hum Crocodillo enorme, e devorado. (Muh, II,v.XIV)

Na Eneida ocorre um episódio semelhante: quando Eneias estava dor-

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mindo na popa do navio decidido a partir para o mar para prosseguia a mais uma viagem apareceu um deus igual ao que já fora, era Mercúrio com a mesma voz, o aparato do rosto, os cabelos loiros, com a mesma juventude e veio avisar o herói troiano e preveni-lo do perigo, dizendo:

Como podes, tu que es filho de deusa, assim dormir quando tanto perigo te rodeia? Não ouves como sopram favoráveis, os Zéfiros do céu, ao passo que ela só em manhas medita, até um crime disposta a cometer, o de matar-se, com a cólera vagas incitando? Depressa tu verás que o mar se agita por baixo dos navios, que tocha ardente bem perto já flameja e que estas praias de cha-mas se encherão se Aurora vem e se te encontra aqui neste parado. Mulher é vária e muda a cada passo. (Aen, IV,897-913,p.243)

Falávamos no início de que há muitas outras intenções quando se tra-ta de triunfo da fé, quando o emissário muhurificado no terceiro canto VIII verso, todos ouviam o jovem Muhura fizer seu discurso então expõe:

Tereis nos Pôvos vossos numerózosAbundantes colheitas sazonadas,Vereis nos Portos vossos vantajózosComercios florecer, e procuradasSerão as Armas vossas: PoderózosEmfim sereis, Amáda, invejadasSerão vossas venturas; finalmente,Podereis felices ser eternamente.(Muh.3º,v.VIII)

Podemos observar o otimismo do jovem muhura, mais sem deixar negar que estes feitos vitoriosos é a partir dos olhos do colonizador, o discurso seria uma contrapartida da união entre os portugueses e os indígenas, e o comer-cio era quem ia fazer o “elo” dessa união.

Todos os indígenas estavam a ouvir atentamente, e eis que aparece um velho índio, e exatamente neste quadro o poeta português impõe um efeito que só pode ser visto a partir do olhar antiépico; pois ao invés de luminosidade, que é a sublimidade da poesia épica, mostra-nos o desespero, o sofrimento e a penumbra, configurando-se numa antiepopeia.

Este caráter antiépico é encontrado na voz do índio mais velho dos Muhuras, memória viva da história do seu povo tentando evitar a rendição da sua gente ao relatar as infelizes lembranças que já havia enfrentado. Esse Ancião, de certa forma, representava a voz contrária aos portugueses, contra aquilo que queriam impor ao povo Mura – o sofrimento e a servidão.

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Grilhões, ferro, algemas, gargalheira, Açoutes, fomes, desamparo, e morte,Da ingratidão foi sempre a derradeiraRetribuição, que teve a nossa sorte. (Muh. 3.18.1-4)

É retratos de desespero, de tudo o que é padecimento, dito claramente pelo velho indígena à forma que os portugueses os castigavam, com grilhões que o prendiam como animais a serem vendidos, gargalheira que os sufocava e também os açoutes que servia para açoitá-los, e foram esses sacrifícios que os estrangeiros o retribuíram.

Esses acontecimentos históricos sobre os índios brasileiros foram lembrados também no Hino da Independência cujas palavras do poeta composi-tor Evaristo da Veiga mencionou na sua canção e diz: Os grilhões que nos forjavam, o poeta cantor deixa claro o quanto os índios sofreram nas mãos do “inimigo” ao citar na canção “os grilhões” o mesmo que Wilkens na sua Muhuraida de escapar na voz índio.

No outro paragrafo o poeta mais uma vez falara em Da perfídia astuto ardil, mostra a deslealde que daqueles que usavam o nome de Deus para se apro-ximar de suas vitimas, com o poder de manipular cada um dos inocentes com suas palavras de convencimento e acabaram conseguindo leva-los para a armadi-lha fatal que na canção o autor descreve como “ardil”.

Podemos assim confirmar o quanto o índio ancião estava com a razão de não acreditar em que o seu irmão estava tentando impor aos demais. Essa pas-sagem do texto constitui-se em exceção, pois “a ideologia que permeia a Muhu-raida é a de proclamar a excelência do colonialismo, estorvada pelos ataques dos bárbaros destituídos da verdade divina” [Krüger, 2012, p.07].

No Quarto Canto o poeta português adiciona as figuras mitológicas e a religião, mas ambos os sentidos estão intrinsicamente ligados [Grizoste,2014,p.12]. Não devemos confundir quando Wilkens acrescenta um quadro religioso e quando ele agrega um quadro mitológico.

A mitologia passa a existir pelo interesse de parecer literatura, e daí a necessidade do maravilhoso [Grizoste,2014,p.12]. É preciso convir que a imagem das oitavas XVI e XVII são do maravilhoso, vejamos:

La o Anjo Tutelar da Muhura Gente,Desce da Etherea Habitação Celeste,Deputádo de um Deos Omnipotente.De luzes dezuzádas se reveste.

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Qual nuvem do Deserto, ou Facho ardente,Que o Israelita guia, e la da Peste,Das Prágas; de Pharaó, do CaptiveiroDo Egypcio o livra, e serve de Roteiro. (Muh.4.16.1-8)

De Mathias assim; do Muhura o peito,Incita o Anjo, e uniforme guia;Sendo aquelle o Moysés ao Povo aceito,Do Muhura, que gostóza obedecia;Dezempenhando em tudo tal conceito,De mil perigos, e da IdolatriaDa escravidão o livra, felizmenteDo Príncipe das Trévas tão potente. (Muh.4.17.1-8)

As duas oitavas são do maravilhoso dentro da epopeia, mas o seu sentido é apenas religioso. Se por um lado o seu embaixador, o “Anjo” desem-penha o papel de convencimento dos Muhuras da verdade e da boa fé, o agente da desconfiança e do petulância há de ser, o “diabo” que Wilkens o chama de “Príncipe das Trevas”.

Na estrofe XVIII o poeta português deu um caráter mais literário e mitológico quando expõe:

Soberbo recebia o AmazónasAs Ubás do Gentio, que atheagóraDisconhecido sendo n´outras Zonas, Passáva já a ilustrar Terras, que AurôraVizita, quando Phebo entre as MatrónasDe ortígia, nas mantilhas se demora;E aquellas em que o luminózo giroAbsolvendo, lhe servem de retiro. (Muh.4.18.1-8)

Quando os índios Muhuras desceram o rio Amazonas, o cantor por-tuguês fizera uma relação à mitologia greco-latina evocando Febo.

Febo segundo o dicionário de “Mitologia Latina” “é epiteto de Apolo. Entre os latinos frequentemente, Febo aparece como o próprio nome do deus, dispensando a adjunção de Apolo” [Flórido, 2000, p.132]. Apolo era filho de Júpiter e Latona, nasceu na ilha de Delos –isto é seja Ortígia, com a ajuda de Netuno, sua mãe se refugiara ai fugindo de Juno [Grizoste, 2014, p.12].

Os quadros da Muhuraida que o poeta Wilkens viaja ao Velho mundo citando os deuses gregos e latinos, aparecem também na Eneida de Virgilio, e faz nos apresentar-vos mais uma semelhança entre as duas obras.

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O herói da Eneida nas suas muitas viagens chegara a sua primeira tentativa de erguer um novo território é a cidade de “Pergâmea”, os seus com-panheiros de viagem estavam contentes pela conquista, muitos jovens logo casa-ram, plantaram, e quando se pensara que tudo havia de dar certo, caíra sobre o povo à peste e destruiu tudo.

E a mais uma viagem a procura de uma nova terra que pedem ajuda aos deuses: “Aconselha-me o pai que naveguemos, que ao oráculo Ortígio regres-semos para implorar todo o favor de Febo”.(Aen.2.229-231).

No Quinto canto da Muhuraida mais uma vez o poeta volta seus poe-mas mais uma vez a mitologia latina, “dessa vez para desmistifica-la” [Grizoste, 2014, p.12]. Nas estrofes IV e V fala no templo de dos deuses latino, e faz uma comparação no que estava acontecendo no momento.

Se o templo lá de Jáno, entre os Romanos,Na páz se fecha; inutil reputandoO culto da deidade, que os HumanosAo seu capricho vai sacrificando.Os templos entre os nossos Luzitános,Mais que nunca, se hir devem frequentando;Agradecendo aos Deos Omnipotente,A Páz, que ele promove felizmente.

Se eles também a Jáno dedicarão,Entre os Mêzes das Eras, o primeiro;Ou a Jove na primicia o consagrarão,Como a Principio, entre eles,verdadeiro,Não menos memoráveis nos ficarãoOs dias venturósos de Janeiro;Pois nelles nos deo Páz, felicidadeO Author da Vida; A Fonte da Verdade. (Muh.5.4-5)

Wilkens lembrara que os Romanos consideravam inutilmente culto a Jano, chegando mesmo a consagrar a deidade ao primeiro mês do ano. Jano na Mitologia Grega é o deus de todas as portas, das viagens principalmente nas partidas e regresso, era conhecedor do passado e do futuro, “sob o epiteto de Matutinus Pater, preside o começo do dia. O primeiro mês do calendário roma-no, Januarius, deriva de Jano” [Flórido, 2000,p.171].

E na quinta estrofe o poeta termina dizendo, se os romanos conside-ravam o mês de janeiro aos deuses obscuros os Muhuras consagravam o primeiro mês como a vinda da “luz” que se estabelecia entre eles, ao Author da Vida.(5.5.8)

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No entanto temos a petulância de dizer que Wilkens conhecera sim os mais importantes poetas clássicos como Virgílio, e trouxe algumas similaridades para sua obra principalmente as ideias de desventuras, tristezas, mortes, a exalt-ção de povo que se reergueu sobre as cinzas de outro povo.

CONSIDERAÇÕES FINAISEm suma, a Muhuraida, o terceiro poema épico brasileiro, veio retratar

junto aos mais conhecidos como Uraguai e Caramurú, o índio como símbolo da identidade nacional, apresenta no seu conteúdo uma diferença dos demais, pois, não apresenta um episodio heroico e muito menos romântico, e talvez fosse esse o motivo entre os poemas e também da não apreciação dos românticos da época.

A Muhuraida traz na sua essência a história de um povo que se reer-gueu das “cinzas” de um outro povo, ao receber elementos fictícios acabou se tornando uma obra assim como a Eneida de Virgílio uma antiepopeia.

A obra romana apresenta um herói, Eneias, e Muhuraida não sabemos dizer, seriam os portugueses que se diziam civilizados e cristãos? Ou seria os Muhuras os bárbaros e pagãos?

Muitas são as contradições em Muhuraida assim como há também na Eneida, mais o importante é que mesmo Wilkens colocando na sua obra seme-lhanças clássicas, mais precisamente da Eneida, sabemos da sua importância para a Literatura, e para a história e mais ainda para a etnia dos Muhuras.

Mesmo que a poesia, seja dolorida, cheia de penumbra, esmorecimen-to e muitas mortes, foi assim que obtivemos uma obra épica, mesmo esquecida no tempo, não apreciada mas que veio a contribuir e muito para a construção da identidade brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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T. Carvalho (2008). Epopeia e Antiepopeia: De Virgílio a Alegre. Coimbra: Imp. Da Univ. de Coimbra.

Janice Flórido (2000) Dicionário de Mitologia. São Paulo: Nova Cultural.

W. F. Grizoste (2011). A dimensão anti-épica de Virgílio e o Indianismo de Gon-çalves Dias. Coimbra: CECH.

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__ (2013). Os Timbiras: Os paradoxos antiépicos da Ilíada Brasileira. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. (Tese Policop.).

M. F. Krüger (2012). “A Antiepopeia dos Muras”, in Wilkens (2012) Infra Cit.7-8.

W. Medeiros, C. A. André, V. S. Pereira (1992). A Eneida em contraluz. Coimbra: Instituto de Estudos Clássicos.

T. Pêgo (2010). «Muhuraida: Entre a fé e a lei, pela pacificação dos índios», Cader-nos de Literatura de Viagens 2 60-76.

A. Silva (2008). Virgílio. Bucólicas. Geórgicas. Eneida. Lisboa: Temas e Debates.

D. H. Treece (1993). «Introdução crítica à Muhuraida», in H. J. Wilkens. Infra Cit.11-31.

H. J. Wilkens (1993) Muhuraida ou o triumfo da fé. Manaus: Biblioteca Nacio-nal/UFAM/Gov. AM (2012). Muraida. Manaus: Valer.

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UM OLHAR RECEPTIVO NA DRAMATURGIA SOBRE A ALIENAÇÃO

E A PERDA DA RAZÃO: PLAUTO, SHAKESPEARE E GONÇALVES DIAS1

Nívia Maria Messias Ribeiro2

Com base nos estudos clássicos podemos observar através da Recep-ção, pontos de contato sobre a alienação e a razão nas obras dos poetas renascen-tistas e românticos. Nietzsche (apud Braga 2011, p. 37), diz que um espírito para o qual os bens supremos que com razão servem de critério de valores para o povo, já significariam algo como o perigo, o declínio, o rebaixamento, ou pelo menos, o repouso, a cegueira, o esqueci-mento momentâneo de si. Para ele, todos os elementos de cunho psicológico levam o homem à loucura, principalmente quando o mesmo está ligado a ascensões políticas ou religiosas. Estas fazem o indivíduo se autoflagelar por motivo da culpa ou do que podem pensar a seu respeito. Caso o mesmo faça algo que se arrependa ou que possa ferir seu orgulho próprio. Jauss (1967, p. 27), se refere aos tipos de linguagem que são construídas tais obras, discute ainda sobre as concepções de Wellek , o qual diz não ser possível, por meios empíricos, determinar um estado da consciência, quer seja individual – uma vez que este encerra em si algo de momentâneo e exclusivamente pessoal. O filósofo quer mostrar a verdade em relação à recepção, o que sabemos não ter verdade, mas podemos analisa-las e construir nosso próprio pensamento, assim como fizeram os grandes poetas dos três momentos desta-cados nesse texto.

As autoridades supracitadas têm seu modo, seu estilo e apimentam com sua realidade o conteúdo das obras as quais os mesmos foram influencia-dos, mas seguem sempre a ordem do discurso estipulado pelos mais experientes. Como base os mais antigos, apesar de que ainda nos dias de hoje exista limites para a Estética da recepção.

1 Artigo construído em um Programa de Apoio à Iniciação Científica [PAIC] durante os anos acadêmicos de 2014-2016 sob orientação do Professor Weberson Fernandes Grizoste e co-orientação da professora Patricia Christina dos Reis.2 Possui Licenciatura em Letras pelo Centro de Estudos Superiores de Parintins da Universidade do Amazonas.

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Quando nos referimos à poesia, definimos que é um gênero mui-to importante para a crítica literária. Segundo Caponneto (2002) a importância deste gênero para Aristóteles era de muita valia, pois, este considerava as poe-sias muito belas, principalmente quando evocava “Homero” seu inspirador, o estagirita influenciava-se com as belas palavras de Ilíada e Odisseia. Aristóteles recebe influencia de Homero, assim como Plauto passa a ter a expectativa de horizontes que dialogam com os primeiros autores Greco-romanos, inclusive Aristóteles, que conceituou a mimeses, e colocou como arte imitativa a Epopeia e a Tragédia, bem como a Poesia Ditirâmbica e a maior parte da aulética e da cita-rística (p.1447a). Afinal outros poetas puderam se expressar usando como base estas duas grandes obras, como podemos observar na contemporaneidade. Plau-to acrescenta em suas obras a estrutura ideológica, ele se serve de suas próprias ideias para apresentá-las ao público (Oliveira, 2013, p. 3).

Shakespeare absorve da mesma forma, mas trata a psicologia humana o seu material de inspiração. O mais incrível, é ele ter conseguido expressar tudo o que observou, em termos de uma dramaturgia apaixonada e apaixonante, em impensável forma poética (Heliodora, 2008, p. 8). Torna relevante aos nossos estudos, imaginar as situações do cotidiano do ilustre poeta renascentista, não foi difícil o poeta surgir para o mundo ocidental, pelos registros ele era apaixonado pelos clássicos. Como afirma Heliodora (2008), o teatro, mal ou bem, já tinha a essa altura pouco mais de trezentos anos de vida na Inglaterra. Primeiro dentro da igreja, depois leigo, mas ainda religioso, e nos últimos cem anos, nas mãos dos autores “saltim-bancos” que iam de cidade em cidade.

Quando se trata de nosso romancista “Gonçalves Dias”, o qual Maria Adelaide, afirma que víamos nele um dos maiores versificadores de língua por-tuguesa, um conhecedor profundo de nossa língua e simultaneamente um inova-dor, um “pioneiro”. Este obreiro de uma literatura, que dava os primeiros passos, atraía-nos pelas várias facetas da sua obra, tão rica de contrastes. Entusiasmava-nos, sobretudo a capacidade maravilhosa de sentir esse lirismo tão vincadamente amoroso da sua poesia (Pizarro, 1970, 2). O poeta trata de dramas interessantes que dialogam diretamente com as obras de Shakespeare, assim como as de Sha-kespeare dialogam com as obras de Plauto. Para um dramaturgo que se ofusca dramaticamente por conta de seu indianismo, é visível sua magnitude em escre-ver dramas e está mais que provado a influência renascentista que Gonçalves Dias tem, no momento em que se declina para o lado dramático.

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Entretanto, a tragicomédia revela tudo o que rodeia a cultura de uma sociedade, trabalha como se abrisse uma cortina e mostra tudo o que acontece por trás do contexto histórico, entrega ao palco e aguarda que as pessoas tirem suas próprias conclusões a respeito do que foi apresentado. Para o autor dramá-tico não se improvisa, pode em muitos casos prescindir do estudo; mas o que lhe é absolutamente primordial é a penetração psicológica, ou seja, a vocação (Murta, s/d, 228). A arte de criar o novo era o que importava aos dramaturgos. Jauss (1994) discute o conhecimento pessoal histórico, conta muito para o tipo de forma que o artista utiliza. Algumas transposições nos dramas dos autores nos levam a imaginar tais imitações.

DRAMATURGIA E RECEPÇÃODiante de nossos estudos sobre a literatura que Roma relegou ao

mundo ocidental durante muito tempo, observamos que são extremamente con-dicionadas historicamente. As informações sobre antiguidade da helenização en-contram cada vez mais apoio nas descobertas arqueológicas (Pereira, 1989, p. 39).

Quando se trata de ciência e história, geram-se muitas discussões dos estudiosos em torno da Literatura, pois todos alegam de formas diversificadas de que forma elas podem ter se formado, mas juntos concordam no ponto prin-cipal, os autores da literatura renascentista e brasileira tiveram contato com os clássicos.

É certo que a literatura foi descoberta somente depois da arte como afirma Pereira (1989, p. 44). A alusão do período clássico justifica a história de Lívio Andrônico que era mestre na escola em Roma e que a versão da Odisséia de Horácio era aprendida pelas crianças. Certamente os autores procedentes forma-ram sua estética ao produzirem suas literaturas. A partir do conhecimento que obtiveram durante seus estudos básicos.

Mas a literatura revela-se mais, por exemplo, O Gorgulho de Plauto é um texto de referência indispensável para a Arqueologia do Fórum Romanum, na segunda metade do século. III a. C. (Pereira, 1989, p. 79). Essa obra é um marco na História da Literatura, porque é relevante aos estudos científicos. È certo que as autorias antigas estão bem presentes em nosso contexto histórico social, por isso são citadas com frequência. De acordo com Melo... [et al](2013),

Estamos em pleno século XXI e, mesmo assim, o clássico persiste, encon-tramos nas prateleiras das livrarias, nas estantes das livrarias, nas estantes das

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bibliotecas, sempre há algum leitor, um filme lançado com as guerras, amores, histórias e lendas gregas e romanas.

O drama é um tipo de literatura pouco explorada no âmbito escolar como leitura, mas de grande valor literário, anexo a ele, podemos conhecer as his-tórias dos nossos precedentes, sem contar que podemos aprender como funcio-na a estrutura de um espetáculo de teatro. Antigamente as Cerimônias oferecidas aos deuses da colheita, na Grécia Antiga, que deram origem ao Teatro. (Verten-tes, 1993, p. 65). E há quem diga que a dramaturgia em forma de texto ao leitor é visto como literatura, mas apresentado no palco é considerado como belas artes.

As representações elaboradas para o teatro antigo são diferentes dos dias atuais, porque foram elaborados com outras técnicas, Pereira (1989, p. 72-75) nos mostra a estrutura de um teatro clássico, vejamos algumas:

O cenário era geralmente formado por um altar e três portas, que seguiam uma rígida convenção herdada do teatro grego: a esquerda conduzia ao porto ou ao campo, a da direita à cidade e a do centro ao interior da casa. Uma série de funcionários velava pelo espetáculo. Assim, o empresário (domi-nus gregis) tinha actores (histriones, cantores), que constituíam a caterva ou a grex, o choragus, responsável pelo guarda-roupa e pelos ornamenta. Um pregoeiro tinha a missão de impor silêncio para começar o espetáculo, um dissignator fazia as vezes do moderno arrumador e os conquistores mantinham a ordem. Nem a claque faltava, a avaliar pelas jocosas alusões de Plauto no prólogo do Anfitrião (Pereira, 1989, pg. 67-68).

O dominus gregis era o dono do teatro, é como o diretor de hoje. Era ele quem decidia tudo. A claque eram pessoas contratadas para aplaudir mesmo que não tivesse graça, assim como em algumas referências de Anfitrião, principal-mente quando se tratava de comédia, a especialidade de Plauto.

Heliodora (2008, p. 11) faz uma visão do Renascimento especifica-mente sobre o Teatro, nesse período contava com uma estrutura mais moderna e meritocracia amparada por Elisabeth, e propiciou à imitação, dentro dos limites de cada um, dos hábitos da corte. A mesma descreve uma estrutura totalmente moderna do teatro clássico.

Há muito tempo os estudiosos procuram por informações sobre as obras dos escritores antigos. Na pesquisa sobre a História da Literatura como Provocação a teoria Literária (1967), Jauss discute sobre o abismo que se formou entre a Literatura e a História. Durante o método marxista e o formalista, não se compreende o caráter estético. Os leitores e críticos ficaram numa situação extremamente limitada.

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OTELO, O MOURO DE VENEZA DE WILLIAM SHAKES-PEARE

Esta é uma obra do período Renascentista inglês, período em que a rainha Elizabeth I, reinava na Inglaterra. De acordo com Heliodora (2008, p. 9),

Shakespeare nasceu em um período privilegiado para o teatro. A Renascença, que chega tarde a Inglaterra, as recentes descobertas do Oriente e das Améri-cas e tudo o que estava acontecendo na ciência e na tecnologia se transforma-ram em inquietações e curiosidades, e ao teatro coube o papel de satisfazê-las.

O teatro apresentava o que o autor queria mostrar ao público, de certa forma, uma oportunidade de criticar os acontecimentos naquele período. Otelo é uma obra marcada por traição e ciúme, temas centrais do drama. A narrativa mostra cenária das guerras, movimentação política e comportamentos dos no-bres com as características daquele período. O texto retoma aos objetivos prin-cipais, que é o amor conturbado entre Otelo e Desdêmona, uma relação que desde o início do casamento é manipulado por Iago, um homem maquiavélico, que tenta a todo custo subir de cargo a qualquer preço. Um alferes que almeja ser tenente do general.

Contudo, usa de meios sórdidos para conseguir o que tanto deseja. Faz com que Rodrigo, um fidalgo veneziano, apaixonado pela rainha shakes-peariana, gaste toda sua fortuna em suas facetas, com a garantia de ficar com Desdêmona, o que não dá certo e acaba assassinado por Iago. O vilão tece uma série de armadilhas contra o casal protagonista, usando na trama, sua própria esposa Emília, para roubar o lenço que Otelo dera a esposa, de presente, somente para promover a suposta traição. Na rede, vários personagens secundários são atingidos pela cobiça, como Cássio, oficial de confiança de Otelo, que se torna um dos alvos do traidor.

Esta obra é considerada relevante aos críticos literários por ser do gê-nero dramático e por ter muitos elementos ideológicos, psicológicos e filosóficos do período renascentista.

No final do drama, ocorre a tragédia, onde vários personagens mor-rem. Emília esposa de Iago é assassinada por ele próprio e no fim Desdêmona é estrangulada por Otelo, vítima do ciúme implantado por Iago. Em seguida se apunhala, quando descobre que matou sua amada Desdêmona injustamente.

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É, portanto pertinente aos nossos estudos os pontos de contatos dos períodos propostos neste projeto, por sabermos que Shakespeare conheceu estas obras no seu tempo de estudante, na Inglaterra.

LEONOR DE MENDONÇA DE GONÇALVES DIASÉ uma obra do período Romântico brasileiro, considerada pela crítica

brasileira, valorizada pelos críticos literários, justamente por conta de sua autoria, segundo Pizarro (1970, p. 2), afirma que víamos em Gonçalves Dias um dos maiores versificadores de língua portuguesa, um conhecedor profundo de nossa língua e simultaneamente um inovador, um “pioneiro”. Este obreiro de uma lite-ratura, que dava os primeiros passos, atraía-nos pelas várias facetas da sua obra, tão rica de contrastes. Entusiasmava-nos, sobretudo a capacidade maravilhosa de sentir esse lirismo tão vincadamente amoroso da sua poesia.

Leonor de Mendonça é um drama com identidade altamente indianista e fruto recebido de influências Shakespereana, porque o mesmo confirma ao que nos referimos na “advertência ao autor” de sua obra;

Aqui extractarei de uma das chronicas portuguesas o trecho que a este acon-tecimento diz respeito, para os que o quiserem saber nú e simples tal qual o refere à história: ver-se-há que a segui fielmente. Quanto a mim, creio que adoptei o melhor dos factos, quer considerados como verdade histórica, quer como circustâncias dramáticas; apenas a suppri emquanto me foi preciso para encadear as partes do drama entre si, e inverti-a nas minuciosidades alheias ao meu trabalho, e por isso mesmo de pouca importância para o meu fim (...).

Além das influências renascentistas inglesas, Gonçalves Dias recebe muitas características alemãs em suas obras, principalmente no drama Leonor de Mendonça. Uma vez que Jacobbi (1958, p. 28) afirma que Schiller era um poeta de intenso lirismo, de arrebatada eloquência; e pensador, desde sempre, por sua inconformada meditação sobre o intercâmbio entre valores éticos e valores estéticos. Gonçalves Dias tra-duziu a obra schilleriana A noiva de Messina ou Os Irmãos Inimigos. Assim torna-se evidente a influência do diálogo entre os autores. É possível também verificar a estrutura dos dramas de William Shakespeare em seus escritos.

O drama gonçalvino tem como tema central a vida de um casal nobre; o duque de Bragança e sua esposa, onde questões sociais são levantadas naquele período, como; a eterna sujeição das mulheres e o eterno domínio dos homens (Dias, 1846, p. 13.). D. Jayme o duque é um homem orgulhoso, insensível e se-

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vero e tem sua esposa como submissa, quase uma empregada. As narrativas se comparam e contrastam em várias circunstâncias. Gonçalves Dias afirma no pró-logo da obra que, Othelo mata a Desdêmona, mas chora antes de matá-la e depois de tê-la morta; o duque mata a Leonor de Mendonça, mas sem lágrimas, porque o orgulho não as tem.

ANÁLISE SOB OS OLHOS DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO DA ALIENAÇÃO E RAZÃO PRESENTE NAS OBRAS

O Gorgulho de Plauto é marcado por confusão de identidades, dupli-cidade e o engano. A maior preocupação do poeta era fazer o povo de Roma rir. (OLIVEIRA, 2013, p.1). O feitio com que ele insere a classe social de cada ator no palco cria momentos humorísticos, confusos e críticos de uma sociedade. Se-gundo os estudiosos muitas de suas obras, sofreram perda de sentido por conta de suas traduções, em virtude das obras originais ser todas de origem Greco-lati-nas. Podemos notar também traços de insanidade e razão no personagem Fédro-mo da obra O Gorgulho. O mesmo parece agir sem pensar nas consequências, fica louco por Planésio e se arrisca em encontrá-la às escuras. Palinuro seu escravo é ciente das ascensões do período e sempre o adverte: Desde que não abras caminho por uma quinta vedada, desde que te abstenhas de mulher casada, viúva, donzela, moços e meninos de condição livre... ama o que tu quiseres (Plauto, 1986, p. 41). Nesse momento, a obra passa a ter a expectativa de horizontes que dialogam com a tragédia, característi-cas das primeiras obras Greco-romanas, no entanto o poeta opta para construir suas obras com o gênero cômico.

Em relação aos elementos, razão e alienação ao qual nos propomos. Consideramos que a narrativa do poeta, faz críticas através do texto cômico dra-mático. Fédromo por exemplo era de origem abastada e perde a razão, foi assim na obra O Truculento. O motivo sempre é a paixão avassaladora dos homens por mulheres de classe baixa. O poeta transpõe a cena escrita, de forma engraçada quando fala através do personagem Palinuro sobre a velha alcoviteira Leena, na ocasião em que esta, usa água para a dobradiça não fazer barulho, ao abrirem a porta. Vês como uma velha tremelicas exerce a medicina?...Para ela, vinhaça – é a receita que aprendeu a beber; mas à porta...dá água...e que a beba!. (Plauto, 1986, p. 61). Palinuro faz menção à senhora tremelica, por ter a idade que tinha e demonstrar toda sua loucura e ao mesmo tempo de um jeito lógico. Essa atitude incomoda de certa forma o servo de Fédromo, o homem se faz muito correto, mas ao mesmo tem-po é passível de chegar ao limite.

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Oliveira (2013), afirma que os enredos de Plauto são em geral baseados em casos de amor ou confusões decorrentes de troca de identidades, mas apresentam grande origina-lidade no tratamento dos temas. É certo que a velha faria qualquer loucura pelo vinho, a qual era viciada. Oliveira (2013, p. 6) se refere à velha diante da ocasião pela qual é atraída pelo cheiro do vinho e começa a tecer comentários quase dramáticos por não tê-lo ainda encontrado.

Observamos que o poeta estruturou bem seus dramas, por ser uma obra sã, discrepância ao que Foucault (1996, p. 12), menciona em relação às obras que tem separação histórica, afinal as obras de Plauto como nos referimos anteriormente, tem uma separação de mais de dois mil e cem anos de diferença para o renascimento inglês e ainda assim, é um poeta considerado genial pelos críticos literários. Shakespeare usa praticamente as mesmas estruturas em alguns de seus dramas.(...)

Para Nietzsche (apud Braga 2012, p. 36), é preciso que se compreenda esse tipo de comportamento de uma pessoa dentro de uma sociedade, ou seja, a condição sensível e saudável a que a pessoa está inserida. O servo Palinuro repre-senta essa espécie dentro do grupo a que pertence,

o ideal de um bem-estar e de uma boa vontade humana-sobre-humana que muitas vezes se afigurará desumana, por exemplo, quando se confronte com toda a serenidade humana tida até hoje, a solenidade da atitude, da palavra, do tom, do olhar, da moral e do dever como sua involuntária paródia viva - e com o qual, entretanto, somente principia talvez a grande seriedade, o verdadeiro ponto de interrogação é posto, o destino da alma uma volta, a agulha avança, a tragédia começa...

Oliveira (2013, p. 3), relata um pouco sobre esse servo que muito se expressa na narrativa; o servo é bastante ágil em tudo o que faz ou diz, inclusive nas expe-riências humanas, é ele quem define a maioria das cenas, até mais do que o personagem princi-pal, o qual empresta seu nome à obra, ou seja, o Gorgulho. Palinuro tem toda a liberdade para expressar o que sentia. O poeta lhe deixa a vontade. De certa forma, Plauto nos faz refletir diante de sua obra, até que ponto o ser humano pode aguentar as dificuldades e as facilidades compassivas, nos faz compreender os extremos, através de sua comédia.

Aristóteles (P. 1449a) menciona em sua poética que O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que sendo feia e disforme, não tem expressão de dor. Apresentavam-se de forma engraça-

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da, mas retratavam as situações diárias da sociedade, talvez os expectadores, nem imaginassem que as cenas direcionavam-se a eles próprios, por isso se divertiam tanto. O poeta relatava os fatos e acontecimentos que ocorriam dentro do coti-diano da sociedade romana.

Otelo, o Mouro de Veneza é uma obra marcada por traição e ciúme, temas centrais do drama. Motivos relevantes para a análise em torno da psi-cose e a causa. Notamos os traços no personagem Otelo, um oficial da realeza elisabetano e equilibrado, mas por influência de um homem maquiavélico, não consegue raciocinar quando descobre que sua amada supostamente o traiu com Cássio, seu oficial de confiança. Reconhece que perdeu a origem e prende-se em seus atos, conclui que não tem mais forças pra continuar e diz: Já valente não sou, qualquer menino me desarma. Deve a honra viver mais que a virtude? Que leve o demo tudo. (Shakespeare, s/d, p. 179).

Otelo, o homem que se achava seguro e correto, hoje não existe mais, se tornou uma pessoa sem sentidos, amargurado, cheio de ódio. Outro persona-gem destruído na obra é Rodrigo, fidalgo veneziano que é loucamente apaixona-da por Desdêmona também, gasta sua fortuna e ainda é morto, vítima da trama que não deu certo, assim o pobre coitado foi enganado por Iago, acreditando que o vilão o ajudaria a conquistar a rainha, representa também um olhar receptivo das loucuras do período clássico, posto de maneira intencional pelo poeta renas-centista, afinal o mesmo conhecia as obras arcaicas.

Verificamos que a reflexão se verifica quando Nietzsche apud Braga diz que: a agulha avança e a tragédia começa. Trata-se de uma metáfora ao se referir sobre a conduta do ser humano como passível de mudança psicológica imediata. Antes tudo estava bem, mas de uma hora pra outra, o que era correto tornou-se incerto, confundiu-se, duvidou-se e a confiança já não existe, somente pensa-mentos de fúria e vingança, o que ocasionará a tragédia.

Gonçalves Dias é considerado pela crítica literária um dos pioneiros da arte dramática do período romântico. Segundo Pizarro (1970, p. 2), víamos nele um dos maiores versificadores de língua portuguesa, um conhecedor profundo de nossa língua e simultaneamente um inovador, um “pioneiro”. Além das influências renascentistas inglesas.

Silva (2009, p. 2) faz referências à trajetória de Gonçalves Dias, afinal ele foi um dos pioneiros a inserir a arte de representar no período romântico do Brasil,

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Além disso, o autor ainda apresenta o Romantismo como o romance, como o grande gênero moderno que revolucionou a rígida poética classicista dos gêneros; o singular estatuto da crítica e da teoria literária, equiparadas à pró-pria criação pelo seu insubstituível trabalho reflexivo; ou a polêmica anti-clas-sicista, denegadora dos velhos princípios canônicos, particularmente os que regulavam o modo dramático. Sublinha o interesse que a estética romântica dedicava às artes da Pintura e da Música, bem como à poesia popular. Dentro dessa perspectiva cabe ressaltar também o teatro romântico, aqui representa-do pela análise de Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias.

O poeta constrói sua obra com a mesma estrutura shakespeariana. No entanto, Shakespeare apresenta cenas idênticas em Otelo, o mouro de Veneza.

O general experimenta um sentimento negativo que o corrói por dentro, ou seja, o ciúme. Elemento presente na obra. Já estava implantado no co-ração dele. Iago foi o grande responsável por isso. Para testar a esposa, o Mouro comenta com ela, a suposta morte de Cássio, o primeiro tenente. Somente para observá-la ou ver se ela dava algum sinal de sofrimento, e então ele teria certeza da suposta traição. E assim aconteceu, Desdêmona chorou e assinou nesse mo-mento sua sentença de morte. Momento do ápice na modalidade dramatúrgica em que Otelo, faz o contrário do que Thomson alertava e recomendava aos nobres, não devem abusar dos seus privilégios e aconselha aos camponeses que tomem o melhor partido de sua posição. Para uma contextualização contempo-rânea, o coronel já começou de forma errônea o relacionamento com a rainha shakespereana, pois o mesmo a roubou de seu pai, dando margem para que Iago pudesse arquitetar tudo o que pretendia. Depois que Este diálogo ocorre no quarto dos cônjuges minutos antes do sanguinário estrangulá-la:

Desdêmona – Ai de mim! Foi traído e estou perdida!Otelo – Sai prostituta infame! Vais chorá-lo na minha frente?(Ato V, cena II)

Uma situação parecida ocorre no drama gonçalvino, quando o Duque de Bragança já sabe do encontro que sua esposa terá com o jovem Alcoforado na calada da noite, o mesmo acusa Leonor de Mendonça de adultério dentro do quarto do casal e não a perdoa mesmo o sacerdote indo confessá-la minutos antes de sua morte e intercedendo por ela, o orgulhoso duque não deu ouvido. Apenas a ferramenta usada no assassinato contrasta. Desdêmona morre estran-gulada e Leonor com um golpe desferido pela espada.

Assim torna-se evidente o diálogo entre os três autores nas três obras. Observamos na obra plautina pontos de contato com o drama Leonor de Mendon-

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ça, assim como uma reflexão idêntica ao drama shakespeariano, Otelo, o mouro de Veneza. Verificamos que cada protagonista sofre uma espécie de demência e sai de seu domínio próprio, perdendo a ensejo e desfazendo-se de si mesmo.

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COMPARAÇÕES HERMENÊUTICAS SOBRE O PRINCÍPIO DA OBEDIÊNCIA

EM ENEIAS, ABRAÃO E JÓ

Isaías dos Santos1

Renan Albuquerque2

INTRODUÇÃOA Eneida, a nosso ver, é uma epopeia que foi escrita com intuito de

celebrar o surgimento e o desenvolvimento do Império Romano na Idade Anti-ga. Valores que nortearam outrora a vida desse povo são apontados por meio da obra. Podemos destacar, por exemplo, aspectos descritos segundo a abordagem de Virgílio (1999), em sua epopéia, que sublinhou crenças, práticas religiosas, triunfos heróicos, históricos e ideais de vida incentivados por Roma.

Segundo Camps (1969), Eneida é a história da migração dos remanes-centes troianos que, tomados pelo comando de Eneias, deixaram as muralhas destruídas de Tróia e avançaram rumo a Itália. A partir dessa perspectiva, Grizos-te (2011) aborda que Virgílio, por ser romano, se espelha em Homero – escritor grego que narra façanhas dos heróis gregos em suas obras Ilíada e Odisséia – para construir a Eneida, contando as façanhas de Eneias a partir da sua obediência aos deuses, na construção do império romano.

Diante dessa perspectiva, Quinn (1968) aborda que Eneida, de Vir-gilio, tem o objetivo de relatar e explorar temas de interesse do povo romano. Segundo Grizoste (2011), os romanos tinham apreço especial pela moral, pela rotina e disciplina, além de um interesse dominante pela história, e isso nota-se exatamente na obra de Virgílio, a partir da qual se observa que existe a destacada exaltação de princípios e normativas cotidianas para a população, bem como um anti-herói diferente dos heróis gregos, estes autores de grandes façanhas, porém com características que ressaltam o valor humano.

1 Graduado em Licenciatura Plena em Letras pela Universidade do Estado do Amaqzonas (UEA), especialista em Língua Portuguesa e Literatura pela Faculdade de Ciências de Wenceslau Braz (Facibra) e mestrando em Ciências da Educação pelo Saint Alcuin Of York Anglican College, do Chile.2 Pós-doutorado em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (FIC/Ufam).

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Como almejamos notar nessa consideração, os romanos preocupa-vam-se mais com os ideais de “ser humano” do que com a realização de grandes feitos em comparação a gregos. Grizoste (ID., op. cit.) nos remete à perspectiva de que, na obra de Virgílio, há algo fundamental explicitado: a estrutura da epo-péia. É compreensível a abordagem de que o autor organiza conscientemente o conflito e a tensão, pois a história de Virgilio direciona o olhar para Homero, porque de certa forma esta é a continuação daquela.

Segundo Pereira (1984), o romano ideal teria de possuir três caracte-rísticas. Virtus (virtude), que seria um conjunto de qualidades morais; fides (fideli-dade), que é amparada na intenção ao respeito; e pietas (piedade), que representa um conjunto de regras de comportamento, de obediência e respeito, sendo a pietas a mais relevante das três características por representar uma síntese das demais. Diante disso, entre as três características de romano ideal, então citadas, a pietas pode ser encontrada em Eneias e esta também é uma característica presente nos personagens bíblicos Abraão, Jó, Jesus e Paulo, integrantes do presente estu-do. Desta feita, o disposto permitiu a nós almejar a realização da análise a partir da i) obediência e do ii) respeito que estes personagens, tanto o troiano quanto os bíblicos, têm pelos seus deuses.

“OBEDECER” À LUZ DA ENEIDA E DA BÍBLIA Segundo GERK (S/D), a pietas é definida habitualmente como um

sentimento de devoção para com aqueles a quem uma pessoa está de certa forma ligada por natureza, sejam estes pais, filhos, parentes. “[...] Liga entre si os mem-bros da comunidade familiar, unidos sob a proteção da pátria potestas, projetada pelo culto dos antepassados. Encontra-se formada no sentimento religioso dos romanos” (ID., op. cit., p. 02). Seguindo o entendimento, os romanos acredita-vam que todos tinham seu genius tutelar, e que a matrona era protegida por Juno. Diante disso, o conceito de pietas se ampliava à divindade, de onde provinha o sentido cristão de piedade como prática de veneração do divino e compaixão à divindade, que pode ser exemplificada com este trecho da Eneida, onde Eneias faz uma prece a Júpiter:

Júpiter todo-poderoso, se tu não odeias ainda os troianos até o último, se tua piedade lança ainda um olhar sobre as misérias humanas, concede à nossa frota escapar agora às chamas, ò pai, e salva da destruição o pobre recurso dos Teucros! (Aen. V. p. 145).

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O sentimento religioso do poeta Virgílio, transcendendo ao seu per-sonagem Eneias, torna-se semelhante aos apelos que Abraão e Jó fazem no de-correr de suas vidas, de suas trajetórias de sofrimentos e derrotas sempre recor-rendo a um auxilio de seus deuses, da divindade por eles crida. Portanto, o estudo se deu pelo fato de entendermos que, no personagem Eneias, um troiano que segundo Virgílio (1999) é o fundador de Roma, estão postas as chaves de leitura de ao menos duas virtudes compreendidas como relevantes: a obediência e o respeito. A partir dessa perspectiva, acreditamos na possibilidade de se comparar o personagem virgiliano com algumas figuras da exegese bíblica. A obediência de Eneias, em respeito à vontade dos deuses, pode ser correlacionada, a nosso ver, com muitos personagens bíblicos. E em virtude disso foram escolhidos apenas alguns que, assim como Eneias, mostraram obediência e superaram desafios que lhe foram colocados ao longo de suas trajetórias.

Eneias, por possuir a característica da pietas e esta também se fazer presente em Abraão e Jó, remete-nos uma relevância no que tange à compara-ção entre ambos os personagens da Eneida e da exegese bíblica. Levantamos tal perspectiva porque Eneias respeita e aceita as ordens e o destino que os deuses prepararam para este, da mesma forma acontece em Abraão e Jó. Em Eneida, é celebrada a construção da pax romana. Eneias é um homem de paz e os versos 107-112 do canto 12 comprovam o seu espírito, ao rejubilar-se pelo seu tratado com os latinos e a conseqüente cessação do derramamento de sangue:

Entretanto, Eneias, não menos terrível revestido das armas maternas, aguça em si Marte e excita a sua cólera, rejubilando pelo fato de a guerra se decidir por meio de acordo que lhe foi oferecido. Então, consola os companheiros e acalma o medo do triste Julo, explicando-lhe os destinos. Depois, ordena a alguns homens que levem ao rei Latino respostas firmes e que lhes ditem as condições de paz (AEN., 12.107-112).

Eneias, apesar do seu comportamento calmo, é um herói que procura a morte, não por almejá-la, mas em razão das vicissitudes de batalha. Para o troia-no, seria melhor ter morrido nas ruínas de seu país do que continuar vivendo sem honra, e essa é a sensação que tem quando está diante da evocação da guerra de seu país, nas pinturas em Cartago. O herói chora, assim como Ulisses na Odisseia, de Homero, quando chorou na corte de Alcino. Mas as lágrimas de Eneias eram mais dolorosas. O herói grego era um vencedor, porém Eneias era um derrotado, pois já não possuía nada mais em razão da qual viver, nem terra e nem família.

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O herói grego voltaria para casa, mas Eneias não tem mais casa e nem regresso (MEDEIROS, 1992).

O herói virgiliano é filho da deusa Vênus e eleito pelos deuses para executar uma missão providencial. Segundo Medeiros (ID., op. cit.), Virgílio fez dele um homem melancólico, que viaja de Tróia para Roma, de um passado que havia perdido para um futuro que nunca há de possuir. Eneias é o único herói épico que, em sua primeira apresentação, aparenta desejar a morte. E após fugir de Tróia para salvar a sua vida e cumprir o destino designado pelos deuses, o he-rói enfrenta uma grande tempestade que a deusa Juno desencadeou para afastá-lo da Itália. Eneias, tomado de horror, ergue os braços ao céu e exclama:

Oh, três e quatro vezes ditosos aqueles que, diante dos olhos dos seus pais, sob as altas muralhas de Tróia, a sorte concedeu que baqueassem! Ó tu, que foste o mais bravo da estirpe dos Dánaos, filho de Tideu! Ah, porque é que eu não pude tombar nos campos de Ílio e exalar esta alma sob os golpes da tua mão, lá onde indomável já, abatido pelo dardo do Eácida, Heitor; lá onde jaz o gigantesco Sarpédom; lá onde o Símois arrasta e revolve, em suas águas, tantos escudos de heróis e os seus capacetes e os seus corpos poderosos (AEN., 1.94-101).

Eneias também busca a morte, na Sicília, quando as mulheres troia-nas, cansadas de peregrinações, incendeiam a frota e o herói rasga os vestidos e pede à deusa Júpiter que lhe acuda ou o fulmine por suas severa vontade, nos ver-sos 691 e 692. “O que me resta, aniquila-o tu mesmo com o teu raio destruidor, e, se assim o mereço, liquida-me aqui já por tuas próprias mãos”. Eneias não é um covarde, mas teve por muitas vezes a vontade de intentar sua morte.

Na última noite de Tróia, quando tudo estava perdido, enquanto os gregos penetravam na cidade, graças ao cavalo da traição, as casas ardiam. Era impossível ter resistência. Eneias recebe de Heitor, sanguinolento e desfigurado como a urbe, a ordem divina de partir do seu país e fundar uma nova pátria, além do mar (MEDEIROS, 1992). O herói não obedece, nem mesmo quando o sacer-dote Panto lhe diz: “[...] acabaram os troianos, acabou Ílio e a imensa glória dos Teucros. Impiedoso, tudo Júpiter transferiu para Argos” (AEN, 2., pp. 325-327).

Logo depois, Eneias reúne um grupo de desesperados como ele e grita-lhes: “Morramos, lançando-nos no meio das armas! Só há uma salvação para os vencidos: não esperarem nenhuma salvação” (AEN, 2., 557-558). Para Medeiros (ID., op. cit.), é o desvario daquele que há de ser considerado herói da sensatez e da pietas. Eneias bate-se como um leão, até chegar ao palácio real. A

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sua bravura só vacila quando assiste à morte de Príamo e vê o corpo do rei de-capitado na areia da pátria. “Ali já, um tronco enorme, na praia; e arrancada dos ombros, uma cabeça; e, já sem nome, um corpo” (AEN, 2., pp. 557-558).

É então que Eneias se lembra do pai, da esposa e do filho. Mas avista Helena, fonte de todas as desgraças, e precipita-se sobre ela para matar. É ne-cessário que Vênus intervenha e lhe faça entrever, com um olhar miraculoso, os grandes deuses empenhados na destruição de Tróia. Anquises, por sua vez recu-sa-se a partir. E logo Eneias decide regressar a batalha. Mas os deuses suscitam dois prodígios sucessivos: uma chama sacra na cabeça de Ascânio e uma estrela que aponta o caminho do Ida. Então fogem todos. E aquele herói que desafiava a morte estremece agora ao aprender um simples hábito, um simples rumor. Todos fogem, mas perdem Creusa, a esposa de Eneias, na fuga. Porque Creusa é o passado e o passado deve morrer. O passado deve morrer, no entanto não morre. Ressuscita logo à partida, na dor e na saudade: “[...] as praias da minha querida pátria assim as deixo, chorando, e os seus portos e os campos onde Tróia existiu” (AEN, 3., pp. 10-11).

Cabe suscitar que Abrão – antes de ser chamado Abraão – é des-cendente de Tera, e em Gênesis é explicitada a sua descendência: “Tera saiu da cidade de Ur, na Babilônia, para ir até a terra de Canaã, e levou seu filho Abrão, o seu neto Ló, que era filho de Harã, e sua nora Sarai, que era mulher de Abrão. Eles chegaram até Harã e ficaram morando ali” (GEN., 11., 31. p. 9).

Diante disso, podemos perceber que, assim como Enéias, o herói Vir-giliano, Abrão (Abraão) morava com seus pais, antes de receber as designações que seus deuses dariam a ambos. Assim, acreditamos que é preciso explicitar a perspectiva da mudança do nome de Abrão para Abraão. No capítulo 17 de Gê-nesis é explicitado o porquê da mudança.

Quando Abrão tinha noventa e nove anos, o Senhor Deus apareceu a ele e disse:– Eu sou o Deus Todo-Poderoso. Viva uma vida de comunhão comigo e seja obediente a mim em tudo. Eu farei a minha aliança com você e lhe darei muitos descendentes.Então Abrão ajoelhou-se, encostou o rosto no chão, e Deus lhe disse:– Eu faço com você esta aliança: prometo que você será o pai de muitas na-ções. Daqui em diante o seu nome será Abraão e não Abrão, pois eu vou fazer com que você seja o pai de muitas nações. (Gen. 17. 1-5. p. 11)

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É importante a abordagem a respeito da mudança do nome de Abrão para Abraão porque também há uma comparação entre o herói virgiliano no que tange às promessas a partir das quais os deuses os recompensarão, caso obede-çam e cumpram as ordens que lhes foram dadas para tais missões.

Aqui iniciamos nosso comparativo, dado que o herói virgiliano sai de Tróia, seu país, que agora havia sido conquistado e destruído pelos gregos. Eneias sai em busca de uma nova pátria, sendo esta a pátria prometida pelos deu-ses. O mesmo fato ocorre com Abraão. O chamado de Abraão está registrado no livro de Gênesis 12:1-3. Portanto, a intenção trabalhada por nós foi a de sustentar interpretações que nos levem a compreender em que medida Eneias e Abraão tendem a ter suas histórias observadas em função de um mesmo prisma.

Ora, disse o Senhor a Abraão, “saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma benção. Abençoarei os que o abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoa-rem e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados (GEN., 12., 1-3).

Abraão é um personagem que tem muitas características parecidas com Eneias. Segundo Camps (1969), Eneias é semelhante a Abraão porque, na estranha analogia, ambos recebem uma promessa de grande futuro para a sua posteridade, mas no decorrer da conquista têm de abandonar o passado. O cha-mado de Abraão veio junto com uma aparição de Jeová. E a ordem para Abraão foi que deixasse a sua terra, deixasse tudo para trás. Jeová faria uma nova nação, no tocante à exegese bíblica, e não simplesmente revisitaria alguma já existente. Abraão, assim como Eneias, foi obediente à ordem que recebera. No decorrer da Eneida, tomamos consciência de que a pietas é a qualidade essencial de Eneias, evidenciada pelo seu respeito e obediência aos deuses em todas as suas decisões.

Abraão e Eneias também podem ser comparados no que tange ao início de suas trajetórias. Eneias segue o seu destino, tomado pela pietas, na busca da terra que os deuses haviam lhe prometido na perspectiva de levantar uma nova nação, um novo povo: os seus descendentes. Abraão segue, da mesma forma, tomando a perspectiva de obediência e temor ao que não conseguia explicar, seguindo em busca, assim como Eneias, da sua terra prometida.

Outra perspectiva a ser comparada com Eneias e Abraão é a simila-ridade de suas trajetórias após receberem ordens e missões para saírem de suas

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terras e partirem em busca de um lugar prometido por seus deuses. Ou seja, eles seguiam sem rumo, sem saber pra onde ir, apenas observando as ordens que seus deuses dirigiam a eles, aguardando-as. Eneias, por sua vez, começa a trajetória com um reconhecimento do amargo em sua vida pelas perdas (AEN., 2., pp. 42-44) que são acometidas a sua nação: Tróia. Abraão também passa por dificul-dades no início de sua trajetória referente à falta de alimento em Canaã (GEN., 12) e teve que ir morar no Egito.

Diante das subjetividades já levantadas, acreditamos que se faz rele-vante ressaltar a diferença entre Eneias e Abraão no tocante às riquezas. Abraão era um homem de grandes posses; já Eneias havia perdido seu país, seu lar e estava à mercê de total desgraça. Em decorrência disso, é o que porventura acre-ditamos ser Eneias mais parecido com Jó, sobremaneira em razão de sofrimentos e desgraças que se abateram sobre ambos.

Em decorrência disso, encontramos outra similaridade entre Eneias e Abraão. Eneias é de fato o símbolo da monarquia augustana dentro da poesia (GRIZOSTE, 2013) porque este se configura como o fundador da própria gens romana. Já Abraão também guarda similaridade com Eneias com referência à configuração da promessa que Jeová fez ao mesmo de fazer deste uma grande nação (GEN, 12). Logo, a nosso ver, o personagem bíblico também se configura como fundador de uma nação.

Diante dessa perspectiva, tomamos a prumo que outrora Grizoste (2011) já abordara essa positividade de estudo, tomando a contento que em ne-nhum momento Abraão hesitou à missão que lhe fora conferida. O suposto o torna mais semelhante a Odisseu, porque não hesitar e não lamentar o seu desti-no premeditado por Jeová confere a si uma moralidade imperiosa. Diante disso, acreditamos que há uma similaridade em Abraão e Eneias pela perspectiva de aceitarem seu destino e obedecerem fielmente às ordens dos seus deuses, porém, Eneias lamenta-se o todo tempo. Além disso, o conceito de pietas na obra de Vir-gílio vai muito além da relação com a divindade. Ele abrange o respeito à família e ao Estado Romano, ou seja, o tripé formador da estrutura social romana.

Com base na assertiva, acreditamos que o espírito com que a elabora-ção da epopéia está relacionada é o de um pedido do imperador Otávio Augusto para que se divulgassem no poema de Virgílio seus ideais políticos. E, a nosso ver, nada melhor do que se utilizar de grandes feitos, ainda que fictícios, para se mostrar a ascendência divina de um imperador. O poeta poderia levar a leito-

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res(as) moderno(as) a compreender suas razões de queimar a obra3. Sua intenção seria esconder uma desobediência civil, uma desobediência a regras predeter-minadas. Por outro lado, não podemos esquecer que este é um poema feito por encomenda e acreditamos que a rejeição à realização de tal serviço poderia levar o autor ao degredo ou à própria morte.

Encontramos outra prova evidente da pietas de Enéias quando ob-servamos valores familiares, no Livro II, com a devoção filial em salvar o pai, levando-o nos ombros:

Havia dito, e já ao longo das muralhas ouvia-se mais nitidamente o crepitar do fogo e o incêndio rola turbilhões perto de nós. Adiante, pois! Vamos caro pai, sobe para as nossas costas: eu te levarei nas minhas espáduas, e esse fardo não será pesado. Ocorra o que ocorrer, haverá para nós dois um só e comum perigo, uma só salvação; que o pequeno Iulo me acompanhe e que minha esposa siga meus passos de longe (AEN, 2).

Verificamos que o qualitativo pius distingue o herói. O predomínio e a referência constante dessa qualidade explicam os traços dominantes do seu modo de atuar. Isto nos remete a algumas passagens e mais especificamente quando Diomedes declara um guerreiro tão valoroso como Heitor como sendo ainda mais superior pela pietas.

Durante todo o tempo que durou a guerra diante das muralhas de Tróia, foi o braço de Heitor e o de Enéias que detiveram a vitória dos gregos e que a protelaram até o décimo ano. Ambos eram ilustres pela coragem e pelas bri-lhantes façanhas, mas Enéias o sobrepujava em piedade. Conclui, pois uma aliança com ele, enquanto ainda vos é possível, mas guardai-vos de medir vossas armas com as dele! Ouviste ao mesmo tempo, ó melhor dos reis, a resposta do rei e a sua opinião sobre esta grande guerra (AEN, 10).

Para os romanos, a pietas é mais importante que a fortitudo. Daí, talvez seja difícil decifrar as atitudes e os feitos dos personagens da Eneida, uma vez que estes personagens pensam ao contrário de Heitor, por exemplo, ao representar um perso-nagem homérico que age por instinto. Ademais, com base numa leitura atenta, não só do poema, percebe-se do que realmente é feita a pietas que leva Eneias a descer ao mundo dos mortos, no livro VI, quando reconhece seu pai Anquises, com alegria. “Enfim, viste, e tua piedade, há tanto esperada pelo teu pai, triunfou da dura viagem! É-me dado contemplar teu rosto, ó filho, ouvir e fazer ouvir estas palavras familia-res!... Quanto temi que os reinos da Líbia te fossem nocivos!” (AEN, 6).

3 Segundo Grizoste (2011), Virgílio, antes de morrer, queria queimar a sua epopeia Eneida.

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Ao associarmos, no entanto, os pontos de vista históricos implicados, temos que Abraão, após receber a ordem de Jeová, partiu para a terra que lhe seria mostrada. Eneias, ao primeiro passo, hesitou em partir, pois queria morrer ali na ruína de Tróia. Não se sabe se Abraão tentou não obedecer à ordem que tinha recebido. O que se há de notar é apenas o registrado no livro de Gênesis, e este fato diz respeito a Abraão ter partido e junto com ele foi Ló, seu sobrinho, e sua mulher, Sara.

Partiu Abraão como lhe ordenara o Senhor, e Ló foi com ele. Abraão tinha setenta e cinco anos, quando saiu de Harã. Levou sua mulher Sarai e seu so-brinho Ló, todos os bens que haviam acumulado e os seus servos, comprados em Harã; partiram para a terra de Canaã e lá chegaram (GÊNESIS, 13, 4-5).

Percebemos outra similaridade entre Eneias e Abraão. Eneias levou consigo seu pai, sua mulher e seu filho, mas o herói perde a sua mulher na fuga. E diante dessa perspectiva Ló é semelhante à Anquises, porque ambos saem na companhia dos heróis, mas devem ficar pelo caminho. Ló tem mais sorte do que o pai de Eneias, porque o primeiro partiu para uma terra alheia, já Anquises acaba morrendo. Outros personagens que tem semelhanças são Agar e Ismael. Ambos são parecidos a Dido e Turno. Segundo Grizoste sugere (2011), Agar torna-se concubina de Abraão e Dido torna-se mulher de Eneias, mas ambas devem ser abandonadas. Agar parte para o deserto, enquanto Dido morre e vai para o mun-do dos espíritos sem vida, e ambos os lugares representam o caos.

Diante disso, o filho de Abraão, Ismael, vê-se desprovido da pater-nidade. O abandono de Ismael pode ser comparado à morte violenta de Turno, porque assim como um ato bárbaro de abandono paternal não possui explica-ções plausíveis, a morte violenta de Turno não possui justificativas. Contudo, acreditamos que o personagem bíblico que mais se aproxima de Eneias é Jó, porque esse personagem lamenta o seu destino o tempo todo. Os lamentos des-tes dois heróis possuem divergências. Jó não compreende o porquê de estar so-frendo, enquanto o herói virgiliano desejaria ter morrido do que enfrentar todas aquelas adversidades.

Grizoste (2011) compreende que nessas semelhanças com os perso-nagens bíblicos, Virgílio reuniu em Eneias os monólogos de Jó e a missão triunfal de Abraão. O que falta em Abraão completa-se em Jó, e vice-versa. Virgílio reúne ambas as características em seu herói Eneias. O herói virgiliano aparenta ser um dos únicos heróis cuja sua desgraça é total. Eneias é derrotado na guerra, perde

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os seus familiares, perde o seu país, presencia a morte do rei Príamo e de toda a família real, além de muitos de seus amigos. Eneias começa a peregrinar pelo mundo, parte para conquistar uma terra que seria mostrada pelos deuses, mas o herói está ciente da desgraça que lhe resta.

A sua esperança no futuro não lhe parece compensar com o seu pas-sado. Eneias tem essa similaridade com Jó. Jó não tem outra esperança a não ser o auxílio divino, pois a sua infelicidade é mortal. Eneias também não tem escolha, nem mesmo quando parte de Cartago. Porém, o herói virgiliano tem perdas su-cessivas e trágicas, da mesma maneira que Jó tem perdas repentinas.

O livro de Jó tem inicio abordando uma descrição sobre o mesmo e suas virtudes.

Na terra de Uz morava um homem chamado Jó. Ele era bom e honesto, temia a Deus e procurava não fazer nada que fosse errado.Jó tinha sete filhos e três filhas 3e era dono de sete mil ovelhas, três mil ca-melos, mil bois e quinhentas jumentas. Tinha também um grande número de escravos. Enfim, Jó era o homem mais rico de todo o Oriente.Os filhos de Jó iam às casas uns dos outros e davam banquetes, cada um por sua vez. E as três irmãs eram sempre convidadas para estes comes e bebes. 5Quando terminava uma rodada de banquetes, Jó se levantava de madrugada e oferecia sacrifícios em favor de cada um de seus filhos, para purifica-los. Jó sempre fazia isso porque pensava que um dos filhos poderia ter pecado, ofendendo a Deus. (Jó 1. 1-5. p. 343)

Podemos observar que Jó, a nosso ver, possuía a mesma caracterís-tica de Eneias quanto à pietas, o que certamente culmina no ato de obediência e temor ao que a divindade impõe ao ser humano. Da mesma forma que Eneias, Jó era homem bom e honesto, conforme é apontado no primeiro versículo da exegese bíblica descrita. Assim ponderamos sobre a idéia de que ambos possuem traços parecidos, não somente no sentido de obediência e temor, mas também no comportamento humano e nos ideais. Jó é temente e obediente a Deus, como descrito nos versículos da passagem do livro citada acima por nós, remetendo a uma perspectiva, e de tal maneira notamos, de obediência às divindades pelo medo de perdas ou de algo maléfico que poderia lhe acometer caso este, ou seus filhos, viessem a desonrar ou pecar contra Jeová.

O livro de Jó segue com uma cena no céu, onde Lúcifer aparece dian-te de Jeová para acusar seu servo. Ele insiste que Jó apenas serve a Jeová porque o Senhor o protege. Lúcifer pede então pela permissão de Jeová para testar a fé e lealdade de Jó:

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Será que Jó não tem razões para temer a Jeová? Respondeu Lúcifer. “Acaso não puseste uma cerca em volta dele, da família dele e de tudo o que ele possui? Tu mesmo tens abençoado tudo o que ele faz, de modo que os seus rebanhos estão espalhados por toda a terra. Mas estende a tua mão e fere tudo o que ele tem, e com certeza ele te amaldiçoará na tua face”. O Senhor disse a Lúcifer: “Pois bem, tudo o que ele possui está nas suas mãos; apenas não toque nele” (JÓ, 1, pp. 9-12).

Jeová concede a permissão, mas apenas dentro de certos limites. Jó perde sua família, sua riqueza e sua saúde em pouco tempo. Diante disso, os três amigos de Jó, Elifaz, Bildade e Zofar, aparecem para confortá-lo e discutir a sua enorme série de tragédias. Eles insistem que seu sofrimento é em castigo pelo pecado em sua vida. Jó, no entanto, continua a ser dedicado a Jeová por tudo e afirma que sua vida não tem sido uma “vida de pecado”. Um quarto homem, Eliú, diz a Jó que ele precisa se humilhar e submeter ao uso de dificuldades por parte de Jeová para purificar a sua vida. Finalmente, Jó questiona o próprio Jeová e aprende lições valiosas sobre a sua soberania e a sua necessidade de confiar totalmente no seu senhor. Jeová então é restabelecido em saúde, felicidade e prosperidade para muito além do seu estado anterior.

Diante disso, podemos enumerar outra característica do comparativo entre Jó e Eneias diante da intenção correlacional de que ambos começam suas trajetórias provando o amargo da vida (O’ HARA, 1990), tendo perdas inesti-máveis, o que promoveu para um sentimento de revolta e indignação em ambos. Jó perde tudo da noite pro dia e este cai em total desespero e aflição, da mesma forma que Eneias, ao perder a mulher, o pai e o filho. A história de Eneias é semelhante à de Jó em relação a obediência, sobretudo posto que Jó perde seus filhos, sua esposa e seus rebanhos de animais, igualmente a Eneias, que também tem muitas perdas: primeiro perde a mulher, depois seu pai.

Destarte, é patente que os dois heróis têm inúmeras semelhanças, mas o que os tornam semelhantes não são similitudes a esmo, mas sim as suas obe-diências às vontades dos deuses, em relação a Eneias, e a de Jeová, em relação à Jó. Outro personagem bíblico que mostra uma semelhança a Eneias, em relação à obediência, é Jesus. Se não, notemos o que segue.

À noite, no Getsêmani, Jesus se mostrava angustiado, pois estava prestes a passar pelo grande sofrimento da via dolorosa (crusis). Já em seu calvá-rio, Ele então expõe a Jeová o seu profundo incômodo e sua dor. “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim

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como tu queres” (MATHEUS, 26, 39). A súplica feita por Jesus é uma súplica de quem está confrontando com a vontade de Jeová. Talvez fosse a dor de quem preferisse que as coisas fossem de outra forma, talvez menos lancinantes, mas apesar disso tudo Ele não recuou e estava disposto a sofrer tudo pela humani-dade.

Diante disso, acreditamos que a pietas se faz presente também na ima-gem de Jesus. Este, mesmo sofrendo, aceitou o seu destino premeditado por Jeová e, igualmente a Enéias, Jesus lamentou-se, como descrito acima. Ambos, de semelhante monta, aceitaram seus destinos, consoante ao personagem virgiliano. O apóstolo Paulo, outro personagem da bíblia, também passou por um momen-to semelhante, e, en passent, nos recordemos de que Paulo se voltou contra Jeová e também demonstrou raiva contra a vontade de seu Senhor. Portanto, a vontade de Paulo não estava associada à vontade de Jeová (CORÍNTIOS, 12, pp. 8-9). So-bre a interpretação, temos que aquele homem da antiguidade pode ser submisso à vontade de Jeová, mesmo quando ela foi contrária a sua. E ainda percebemos que os personagens puderam, sim, buscar à Jeová, como Jesus fez, porém, a nosso ver, nutrir no coração o sentimento de renunciar à vida em razão da obediência é algo controverso e esta é exatamente uma das grandiosas características da pietas, a controvérsia da aceitação ao sofrimento.

Enéias renunciou o amor por Dido, não por sua vontade própria, mas por vontade dos deuses. Enéias deveria seguir viagem, deveria seguir rumo à Itália para cumprir seu destino, mas será que o foi de corpo e alma? Enéias cometeu uma culpa, involuntária, a qual, todavia, foi fatal. “A Itália não é por minha vontade que a demando: foi contra minha vontade, rainha, que abandonei as praias do teu reino”. (AEN, 4, p. 361). Enéias diz que foi contra vontade, mas obedece e condena uma inocente, condena o amor que ela sente pelo herói. Essa é a revolta da fraqueza contra a força. A revolta da vida contra a morte. A revolta da esperança contra a crueldade. A revolta de um lutador contra a cegueira do outro lutador. O dobre de finados sobre a fraternidade humana.

CONCLUSÃOCompreendemos que Eneida nos remete a reflexões relevantes acerca

do estudo da literatura latina, da mesma forma que a exegese bíblica, quando traça, no Antigo Testamento, perspectivas acerca da fundação do que hoje é a modernidade (ou pós-modernidade), e acreditamos que compreender como

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nações globais foram se formadas, como povos se uniram ou dividiram por inter-médio de guerras e/ou conquistas, o que torna relevante para pensar identidades, preceitos e valores.

Os heróis estudados renunciaram a tudo o que tinham. No entanto, entendemos que isso foi mais presente em Enéias pelo fato de Virgílio abordar profundamente a dor do herói troiano. Abraão também renunciou a sua terra, porém, era dono de muitas riquezas. Eneias, por outro lado, sofre desgraçada-mente em seu trajeto até a terra que os deuses lhe prometeram. Entendemos que esta perspectiva pode ser encontrada em Jó porque este perdera tudo, e assim como Enéias e Abraão – mesmo lamentando-se a todo momento – seguiu obe-diente no sentido da pietas.

A Eneida assim se mostra como uma epopeia de época, datada, mas com qualidades universais, que celebra o surgimento do Império Romano. Ali, são apontados grandes valores que norteiam a vida do povo romano, com suas crenças, práticas religiosas, triunfos heróicos, históricos e ideais. A Bíblia cristã também possui esse caráter, na visão da teologia contemporânea: que essa obra de porte literário conta histórias de povos e nações formadas a partir de ruptu-ras, porém acima de tudo a partir da obediência a deuses. Esta perspectiva se faz presente tanto na sociedade greco-romana, quanto nos povos antigos que se subordinavam a fim de conseguir grandes feitos.

O sentido da pietas abordado neste artigo nos remeteu a uma breve abordagem de como isso é tratado na atualidade nas exegeses bíblicas e na pers-pectiva greco-romana, as quais permeiam a visão do catolicismo, mas afim da prá-xis romana. Na visão do cristianismo, a nosso entender, o sentido da pietas ainda é equiparado, porém muito pouco vivenciado; no catolicismo cristão, a herança da perspectiva de pietas da visão greco-romana também é muito discutida, porém pouco vivenciado. Diante disso, acreditamos que a obediência a atos divinos per-de força, uma perda a qual a modernidade (ou pós-modernidade) trouxe consigo, uma perda de essência do sentido da obediência.

O ser humano moderno, em amplo sentido, esqueceu dos sentidos das batalhas do passado, dos grandes conflitos e carnificinas que eram realizados na perspectiva dos deuses – tanto na realidade greco-romana como nos descritos da bíblia – e a partir disso compreendemos a importância dos estudos clássicos e enu-meramos este engajamento da literatura de caráter latina e sua relevância em trazer reflexões acerca dos valores éticos e morais, tendo como pano de fundo a pietas.

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A revolta da fraqueza contra a força. A revolta da vida contra a mor-te. A revolta da esperança contra a crueldade. A revolta de um lutador contra a cegueira de um universo mutilado. O dobre de finados sobre a fraternidade humana. Segundo Medeiros (1992), essas são as últimas lições da Eneida e do próprio Virgílio, são palavras de tragédia, que tratam bem a história como ela se mostrou. Eneias venceu, mas ficou vencido. Eneias cometeu vários delitos, entre eles o ato de vingança, e traiu o ideal de seu pai. Mas Virgílio não cometeu os mesmo erros que Eneias. A tragédia da Eneida não é somente um símbolo da tragédia da história romana, mas também uma tragédia da vida dos homens em geral, da sociedade.

Objetivamos traçar um comparativo do herói troiano, descrito por Virgilio entre alguns personagens bíblicos, que mesmo lamentando aceita seus destinos premeditados pelos deuses. Compreendemos que a Eneida, uma epo-péia clássica, nos remete a reflexões relevantes acerca do estudo da literatura latina, até mesmo porque acreditamos que compreender como as nações foram formadas através de guerras e conquistas se torna algo relevante para se pensar em nossas identidades, preceitos e valores atuais.

A Eneida é uma epopéia mundial, que celebra o surgimento do Im-pério Romano. Ali, foram apontados grandes valores que norteiam a vida do povo romano, com suas crenças, práticas religiosas, triunfos heróicos, históricos e ideais.

REFERÊNCIASBíblia Sagrada: Nova versão internacional/ traduzida pela comissão de tradução da sociedade Bíblica Internacional. – São Paulo 2000.

GERK, Geisa Moreira Regazzi. A pietas de Eneias. Revista ao Pé da Letra. S/D. Disponível em: http://revistaaopedaletra.net/ volumesaopedaletra/ vol%204.2/A_pietas_de_Eneias.pdf

GRIZOSTE, Weberson Fernandes. Os Timbiras: os paradoxos antiépicos da Ilíada Brasileira- Faculdade de Letras-Universidade de Coimbra 2013.

GRIZOSTE, Weberson Fernandes. A dimensão anti-épica de Virgílio e o india-nismo de Gonçalves Dias, Coimbra, CECH, 2011.

MEDEIROS, Walter de, ANDRÉ, Carlos Ascenso, PEREIRA, Virgínia Soares, A Eneida em contraluz. Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, 1992.

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PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Estudos de História da Cultura Clássica. Vol. II, Cultura Romana. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian 1984.

VIRGÍLIO (1999). Eneida.Tradução Tarsilo Orpheu Spalding. 5ª Ed. São Paulo, Editora Cultrix.

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Amazonidades

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COSMOLOGIA E ESTRUTURA NARRATIVA EM TYKUÃ E A ORIGEM

DA ANUNCIAÇÃO, DO ESCRITOR INDÍGENA ELIAS YAGUAKÃG

Renan Albuquerque1

Iza Reis Gomes Ortiz2

Eliane Auxiliadora Pereira3

Elizabeth Siel Souza4

INTRODUÇÃOContexto do autor e da literatura indígenaO livro Tykuã e a origem da Anunciação, do escritor Elias Yaguakãg é

uma obra literária que tem como meta divulgar a sociocultura Maraguá por meio da literatura infanto juvenil. Elias Yaguakãg é indígena da etnia, do clã Çukuyê-guá. Ele nasceu em 10/10/1976, na aldeia Yãbetué’y, terra indígena situada no rio Abacaxis, ao Sul do Estado do Amazonas. Aos 12 anos começou seus estudos formais em Nova Olinda do Norte, município distante cerca de oito horas de barco de sua terra natal, a sudoeste da capital Manaus/AM.

Formado nos ensinos Fundamental e Médio, conheceu Manaus aos 22 anos, onde participou de cursos relacionados com cultura e artes, oferecidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem (Senac), pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e pela Feira de Artesanato e Produtos do Amazo-nas (Fapa). Transferiu-se para Belém/PA no início da vida adulta, onde frequen-tou o curso de “Arte e Grafismo Indígena”, com duração de um ano, em turma composta por representantes de etnias indígenas de demais regiões do Brasil.

1 Professor Adjunto III da Universidade Federal do Amazonas. É pós-doutor em Antropologia pela PUC-SP e coordena o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Ufam. 2 Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO) Doutoranda em Socieda-de e Cultura na Amazônia pela Ufam e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas do IFRO3 Professora do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Acre (Ifac) Doutoranda em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Ufam 4 Mestra em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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Realizou palestras e oficinas sobre o assunto “Arte e Grafismo” em campus universitários em Belém, Rio de Janeiro/RJ e São Paulo/SP, entre outros centros, com o apoio do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelec-tual (Inbrapi). Criou em sua aldeia, em 2007, um núcleo do Instituto, destinado a incentivar produções literárias de artistas indígenas e divulgar a cultura Maraguá.

Elias Yaguakãg, hoje, de volta às origens territoriais, reside na aldeia Yãbetué’y, às margens do rio Abacaxis, onde se dedica à educação de jovens do povo Maraguá, como professor da rede pública de ensino. Quando os afazeres permitem, o escritor e ilustrador se ausenta da comunidade, composta por cerca de 150 indígenas, para visitar Manaus e as maiores capitais culturais brasileiras, dividindo com crianças, jovens e adultos conhecimentos tradicionais sobre arte-sanato e grafismo indígenas.

O povo indígena Maraguá tem a origem no tronco Aruak, com influência Tupi. Eles habitavam no passado território margeado por exten-so rio, o Guarynamã, região onde havia muitas árvores de pau-rosa. No iní-cio do século XIX o povo foi perseguido por exploradores de pau-ro-sa e por esse motivo dispersaram. Os Maraguá eram conhecidos como índios do tacape, visto que a principal arma era uma espécie de clava5. ‘A literatura amazônica indígena efetivada por Elias Yaguakãg está em crescente produção. Com base no pioneiro escritor Daniel Munduruku, a litera-tura produzida por povos indígenas não é apenas uma construção restrita, dire-cionada a leitores da própria aldeia. Ela tende a ser universal, pois grande parte dos autores que a praticam são bilíngues, sabem o português e sua língua-mãe.

Escritores indígenas, nesse sentido, produzem para seu povo e também para os não indígenas. Com isso, além de divulgar a cultura tradicio-nal ameríndia, fomentam conhecimentos multidiversos, preconizados na Lei 11.645/2008, que rege o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em escolas de ensino Básico e Médio. A situação contribui para a maior produção e divulgação de saberes étnicos.

Escritor que defende a literatura indígena, por exemplo, é Olivio Jeku-pe. Ao citar o surgimento de escritores indígenas para a inclusão da cultura in-dígena nas escolas, destaca que “os professores [não indígenas] vão ter que falar sobre nós. O que eles vão falar? Se não têm assunto, eles vão falar besteira sobre a gente. Por isso é importante o surgimento dos escritores indígenas”6.

5 Disponível em < http://povoindigenamaragua.arteblog.com.br/> Acesso em 15.12.2014. 6 Escritor defende literatura indígena para embasar estudo de culturas tradicionais. Disponível em <http://www.ebc.com.br/educacao/2013/04/escritor-defende-literatura-indigena-para-embasar-estudo-de-culturas-tradicio-

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Guesse (2013), corroborando a questão, sublinha a seguinte medida:

Os objetivos primeiros das publicações de autoria indígena – mais frequen-temente subsidiadas por órgãos oficiais ou por organizações não governa-mentais, quando se trata de autoria coletiva, e/ ou publicadas por editoras privadas, geralmente quando se trata de autoria individual – seriam atender à demanda escolar indígena, auxiliando os professores no ensino da escrita e leitura nas escolas das aldeias, e informar os brasileiros sobre a existência desses povos, constituindo-se, dessa forma, como um movimento político-li-terário (2013, p. 2).

A autora ressalta que a supremacia da produção intelectual indígena está na região Norte do Brasil. Tem-se, então, propriedade essencial do povo indígena em relação a sua cultura e história. De maneira que, considerando o exposto, cabe inferir que a literatura amazônica indígena começa a ganhar espa-ço para que formação sociopolítica e mitologias constituintes da pessoa étnica sejam lidas e ouvidas dentro de uma perspectiva própria (PAES LOUREIRO, 2001). Sobre a inferência, note-se prólogo acerca da obra “Tykuã e a origem da anunciação”.

O livro conta a história do menino Tikuã, um adivinho de seu povo, os Maraguá. O menino vivia feliz com a família às margens do Rio Abacaxis, até que a inveja de Anhãga, o senhor da maldade, foi o bastante para tentar matar o pequeno sabedor do futuro. Transformou dois aprendizes de pajé do mal em animais para acabar com a vida de Tykuã. Mauáka foi transformado em serpente traiçoeira e Waikaá em gavião-real veloz e forte.

Num determinado momento, o pai de Tykuã ouviu as artimanhas dos três tramando contra o filho. O pai foi pedir ajuda a Malakwyawé, o mais sábio entre os pajés do bem. E este pediu ajuda a Monãg, deus Maraguá, criador do céu e da terra. O deus Maraguá forneceu armas contra a maldade de Anhãga: antídoto contra a picada da serpente e zarabatana para acertar o gavião.

Mas o menino Tykuã, solidário e com características heroínas, utilizou o antídoto para salvar um homem que havia sido picado por cobra; e a zaraba-tana para matar um animal e dar de comer a uma senhora que padecia. Sem as armas contra o mal, Tykuã foi atacado pela serpente e pelo gavião. Mas com ajuda do deus Maraguá, Tykuã vence o mal. Houve castigo aos aprendizes de pajé e a etnia comemorou a vitória do bem contra o mal ao redor de uma fogueira.

nais>. Acessos em 15.12.2014.

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Na narrativa mítica, observa-se a oposição entre o bem e o mal, a hierarquia entre sujeitos da comunidade juntamente com os personagens míticos e o uso de animais simbolizando valores humanos, dentro de um perspectivismo (VIVEIROS DE CASTRO, 1993), além de categorias de inclusão e exclusão sociocultural referenciadas na oposição bem e mal.

Com este quadro, e tomando como base a meta do artigo, analisou-se a narrativa pelo olhar do teórico Vladimir Propp, relacionando o processo narra-tivo às funções das ações (PROPP, 2000). Por meio da cosmologia do povo Ma-raguá, buscou-se tecer especificações sobre a constituição da pessoa indígena em função de parentesco hierárquico, ordenamento familiar por linha de sucessão, cosmovisões para fatos e/ou versões, mito, animismo e simbolismo.

O escritor e a obraElias Yaguakãg escreveu o livro infanto-juvenil Tykuã e a origem da

anunciação a partir de histórias contadas pelo avô. De modo particular, certa ma-nhã quando estava reformando uma canoa, preparando-a para a pescaria, uma sabedoria específica lhe chamou atenção. Elias perguntou sobre o valor que tinha a embarcação no trabalho do avô e lhe foi explicado que a atividade da pesca estava associada ao canto de presságio de um pássaro, o Tykuã, e não exatamente à canoa. O canto alegre significava fartura, mas quando houvesse o canto triste a pescaria seria muito fraca e era melhor não ir.

Ao relatar esse momento, em entrevista, Elias parou e pensou nas lembranças que tinha e ressaltou como era importante que outras pessoas conhe-cessem universos espirituais diferentes dos seus, como o que se almejou relatar no livro.

[O Livro de Tykuã] me comove, me faz chorar, é minha história [...] é de um valor sem limites, pois, a cada momento que leio e releio me emociono. Neste momento, o sentimento de perpetuação cultural tem um significado inexpli-cável, onde toda a cultura e valores simbólicos são colocados no papel em meio às palavras escritas, assim, o escrito expõe que sou apaixonado pelo que faço, sou amante das palavras, sentimentos, emoções e admiro o analisar de cada palavra colocada no texto. Tem valor único, grandioso, do tamanho do cuidado que tenho com os meus membros, não me firo por que dói, não jogo palavras simplesmente por jogar [...] mas lanço como único, emocionar, sentir o que sinto (ENTREVISTA DE CAMPO. Elias, 13 de dezembro de 2014).

Ao escrever existem sentimentos inexplicáveis, onde no decorrer da história o leitor descobre um universo mítico que o escritor procura relatar em cada palavra, emoções estas que leitores indígenas e não indígenas ao abrirem e

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lerem o livro do Tykuã iniciam, em uma descoberta ao universo mítico que envolve todos os elementos naturais e sobrenaturais dos Maraguás (IB., op. cit., sobre o papel do leitor).

Elias, na perpetuação da história de seu povo, pretende que o leitor se identifique com personagens do livro. A obra tem um lado mítico e para vivê-lo o leitor precisa ser o personagem em busca de Monãg (Deus Maraguá). O autor diz que “Tykuã é você, é eu e quem lê. Numa aproximação contínua, a história nos dá essa visão. [...]” (Elias, 13 de dezembro de 2014).

O leitor pode se identificar com personagens do bem ou mal, em uma vivência contínua do ser, a partir da qual Elias diz que um dos seus maiores desejos é que leitores se encontrem com suas criações, independentemente de quem sejam, de gostos e crenças, e consequentemente “que se deliciem com o desenrolar de toda a história” (Elias, 13 de dezembro de 2014), em citação sobre a importância do valor que o autor coloca ao ato de escrever.

Elias continua: “na história se objetiva incentivar o gosto pela leitura, e que isso traga benefícios na fala, na expressão e amplie o conhecimento. Que emocione e que me conheça, juntamente com o meu povo” (Elias, 13 de dezem-bro de 2014). O autor se predispõe a expor sentimentos culturais na sua litera-tura, por meio dos quais orientações e transmutações mentais estão presentes.

Sobre isto, o autor ressalta que no momento em que escreve o texto deixa de ser do seu povo para ser de todo o mundo. O documento “[...] era meu enquanto o tinha na mente. No momento que decido publicar, não penso mais sozinho, o leitor é o dono do livro (Elias, 13 de dezembro de 2014), em citação sobre o processo de criação do autor. No “Tykuã”, concepções são enfatizadas em imagens e palavras.

[…] quando você fala, você leva a imaginação a alguma coisa, e é nessa hora que entra a imagem na cabeça” (Elias 13 de dezembro de 2014). Neste mo-mento, as palavras se configuram em desenho como uma representação sim-bólica deste universo. Apesar de “não existir ilustração completa que expresse totalmente a história ou texto, mas, nossa mente nos leva a um pensamento só nosso, mesmo que estejamos trabalhando o coletivo. Assim, procuramos aproximar a ilustração do Tykuã ao máximo com sentimentos e cores, ao místico” (ENTREVISTA DE CAMPO. Elias, 13 de dezembro de 2014).).

Na relação de texto e imagem encontram-se sentimentos vividos, em que Tykuã é um aprendiz de pajé que se envolve completamente no universo mí-tico dos Maraguá, de forma apreciável e admirável durante o processo de apren-

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dizagem. O livro apresenta descrições simples com intuito de “levar o leitor a uma busca espiritual e mítico, sem explicação e somente para ser vivido” (Elias 13 de dezembro de 2014), em exposição sobre o universo mítico indígena.

Para a cultura indígena Maraguá, o momento de iniciação ao caminho espiritual do pajé envolve toda a comunidade. Elias diz que para entender o pro-cesso no livro é preciso que se seja o personagem, pois “não adianta querer ser, tem que ser escolhido, não é qualquer pessoa que será o pajé. O sangue de pajé passa de família a família” (Elias, 13 de dezembro de 2014).

É possível viver o mítico e o espiritual no livro Tykuã, em uma relação intrínseca entre o universo cosmológico da etnia e o pessoal, permitindo que a cada imagem e palavra lida seja uma conversa espiritual.

ENFOQUE TEÓRICOA abordagem de Propp sobre contos popularesPropp (2000) afirma que o estudo de contos populares inscreve-se,

por um lado, na corrente folclorista da antropologia e na abordagem literária da narrativa. O trabalho do autor sobre a estrutura de contos fantásticos com base em cotidianos vividos situa-se no plano de conteúdos.

A análise é uma busca autônoma da forma de expressão dessas histó-rias, ou seja, do ponto de vista da trama ou da intriga os contos são considerados idênticos. Partindo desse suposto, tomou-se a abordagem destacada para inferir proposições acerca do conto de “Tykuã”.

No tocante ao que situa Propp (ID., op. cit.), a tarefa do morfologista é descobrir e codificar relações que articulam formas observadas, já que o que classifica unidades narrativas mínimas é a ação das personagens, a ação que dá nome à função.

A ação da personagem integra-se diretamente na trama narrativa e independe da personagem que a realiza uma mesma função pode ser exerci-da por diferentes personagens. Funções representam elementos essenciais do conto e formam a ação da narrativa. Há, além disso, elementos que têm grande importância, ainda que não determinem o desenrolar da intriga. Nem sempre as funções se seguem umas às outras, pois a informação intercala-se entre as mais diversas atividades.

As qualidades principais que unidades narrativas devem possuir são: i) constância, ii) invariância, iii) limitação e iv) comparatividade. No entanto, nem

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todos os contos manifestam tais funções em sua completude. A ordem em que ocorrem não sofre alterações e podem ser previstos dois modelos dominantes de articulação das funções manifestadas no transcorrer da intriga: o combate contra o agressor e a vitória do herói e a tarefa difícil e seu cumprimento.

Para Propp (2000, p. 41) “contos fantásticos possuem estrutura per-feitamente particular, pois uma particularidade é que as partes constitutivas de um conto podem ser transportadas sem nenhuma mudança para outro conto”.

Dentre as várias leis morfológicas, a análise levará em conta a da re-petição dos elementos dinâmicos do conto, com vistas a moderar ou complicar o desenvolvimento geral e a lei do eixo composicional.

As funções das personagens são elementos constantes e repetidos do conto fantástico. Os papeis atribuídos às personagens concretas, com seus atributos, são também sempre os mesmos. Cada um dos personagens possui a esfera da ação, sendo, pois, que nem todas as funções são obrigatórias, mas, em princípio, uma função conduz a outra.

Funções de personagens representam partes fundamentais do conto e devem ser isoladas. Por função, entende-se a ação de uma personagem definida do ponto de vista do significado no desenrolar da intriga. Propp (2000, p. 59) afirma que

[…] os elementos constantes e permanentes do conto são as funções das personagens, quaisquer que sejam estas personagens e qualquer que seja o modo como são preenchidas estas funções. As funções são as partes consti-tutivas fundamentais do conto; o número das funções do conto é limitado; a sucessão das funções é sempre idêntica, essas leis citadas só dizem respeito ao folclore; todos os contos maravilhosos pertencem ao mesmo tipo no que diz respeito à estrutura.

Estudos estruturais de aspectos de contos são condições necessárias para pesquisas históricas sobre textos de igual envergadura. O estudo de legali-dades formais predetermina o estudo de legalidades históricas. Concernente ao descrito, Propp (2000) aponta que personagens de narrativas podem ser agrupa-das em sete esferas.

A primeira é a esfera do agressor, ela ocorre quando há malfeitoria, há o com-bate e as outras formas de luta contra o herói e sua perseguição; a segunda é a do doador ou provedor, que compreende a preparação da transmissão do objeto mágico; a terceira esfera consiste na ação do auxiliar que compreende o deslocamento do herói no espaço, a reparação da malfeitoria ou da falta, o

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socorro durante a perseguição, à transfiguração do herói; a quarta é a ação da princesa, a personagem procurada; a quinta esfera da ação é a do mandatário, que ocorre quando há o envio do herói; a sexta esfera é a ação do herói que acontece quando ele parte para a demanda, a reação às exigências do doador, o casamento; e a última esfera é a ação do falso herói (ID., op. cit., p. 127).

As esferas estão contidas entre caracterizações de personagens de contos e ocorrem seguindo três possibilidades: primeiro, a esfera da ação corres-ponde à personagem; segundo, uma personagem ocupa várias esferas de ação; e, por último, o caso inverso, uma esfera de ação divide-se entre várias personagens.

Há três características de personagens auxiliares: i) universais, ii) auxi-liares parciais e iii) auxiliares específicos. Cada tipo possui forma peculiar de en-trar em cena, que corresponde a processos particulares utilizados para participar das situações de intriga.

Isto quer dizer que as formas de entrada dos auxiliares e dos demais personagens em narrativas podem se dar na medida em que personagens agres-sores mostram-se no decorrer da ação.

RESULTADOS E DISCUSSÃOA estrutura narrativa do conto “Tykuã” O mandatário, o herói, o falso herói e a princesa fazem parte da situa-

ção inicial. A princesa aparece como a personagem que se procura. O que a de-manda pode vê-la em primeiro lugar e ver o agressor em seguida, ou vice-versa. Ressalte-se, acerca desse particular, que nem todos os contos possuem a figura da princesa. Assim, há outro personagem por quem se procura, o menino Tykuã.

Interpretando o problema da história, podem ser observadas duas formas fundamentais da situação inicial: a que compreende o que demanda a princesa e sua família e a que apresenta a vítima do agressor e sua família. No texto, foi apresentado primeiramente Tykuã, a vítima do agressor (o pajé do mal), e sua família.

Algumas situações dessa espécie recebem desenvolvimento épico. A saber, o nascimento maravilhoso do herói é um dos elementos importantes do conto. É uma das formas de entrada em cena, incluída na situação inicial. Antes mesmo da intriga acontecer, os atributos do herói são revelados. No caso do con-to em tela, ocorre no início, quando é apresentado Tykuã, sua família e a divisão de tarefas e sabedorias entre eles.

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Tykuã ajudava o pai e a mãe sempre que eles pediam. E mesmo assim tinha tempo de brincar com os primos, de atirar flechas, nadar e andar de canoa. Fazia as atividades típicas dos meninos do povo maraguá e se destacava em todas elas. Além disso, Tykuã tinha um dom: era adivinho.Com frequência dizia o que aconteceria cedo ou tarde. Waçarabiá dava muito crédito às adivinhações do filho e Naniguáy o apoiava (YAGUAKÃG, 2014, p. 6).

É apresentado o herói, Tykuã, como uma criança esperta, obediente, com um dom especial. O ponto de vista a ser considerado, a partir de Propp (2000), é sintagmático, dado ser a técnica da narrativa e não o significado pro-priamente mítico o que interessa. “Os atributos das personagens são valores va-riáveis” (p. 137), de ordem não fundamental, mas retórica.

Por essa análise, acredita-se que contos começam com a parte intro-dutória antes da função da malfeitoria ou da falta, que irá desencadear a intriga propriamente dita. Essa trama tende a assegurar características indispensáveis à construção da cosmogonia da sociedade indígena retratada – a qual significa a maneira como a etnia concebe a origem do universo e a própria localização no tempo e no espaço.

Os mitos mais conhecidos são as narrativas da criação (cosmogonias) encon-tradas em todas as civilizações. A função institucional está ligada ao modo de apropriação concreta do mundo, tendo em conta a diversidade social, econô-mica e cultural das sociedades humanas. Esta função diz respeito à estrutura problemática da instituição familiar, é a estrutura tecnológica do modo de apropriação da natureza (GREIMAS apud PROPP, 2000, p. 21).

Em “Tykuã”, a narrativa exerce função criativa, que incita membros da etnia a realizarem ações que lhe impeçam de estagnação e morte. A função é perceptível na especificidade do dom da adivinhação do menino e no indicativo de que existem ritos de iniciação ou passagem destinados a assegurar crescimen-to mental e posição social dentro dos costumes indígenas.

A narrativa é predominantemente metonímica, uma vez que seleciona e articula práticas culturais que compõem o quotidiano. As triplicações – provas a que o herói tem de se submeter para atingir seu objetivo – podem ter resultado positivo ou negativo. O que leva, portanto, personagens a cumprirem uma ou outra ação são as motivações, que dão ao conto dinamismo, e o desenrolar da intriga motiva ações realizadas pelas personagens.

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Ao se analisar, nesta parte, funções que as personagens exercem den-tro de “Tykuã”, segundo i) a análise estrutural, ii) as partes constitutivas, iii) as relações destas partes entre si e iv) o conjunto que forma o enredo da obra, nota-se que o conto começa pela exposição de uma situação inicial, o que angula todo o sentido da narrativa.

Numa aldeia às margens do distante rio Abacaxis, próxima ao lago sagrado Guaçupáwa, morava uma família muito feliz: o pai Waçarabiá, a mãe Nani-guáy e o filho Tykuã. O pai caçava, pescava, colhia frutos e plantava maniva, cará, macaxeira e outros itens típicos da roça. A mãe se ocupava da casa, fazia a comida e cuidava do roçado quase todos os dias. (YAGUAKÃG, 2014, p. 4).

A abertura do conto é seguida da função IX, analisada por Propp, que ocorre quando a notícia da malfeitoria ou da falta é divulgada e é dirigido um pedido ou uma ordem ao herói – que é enviado em expedição ou parte para uma expedição por sua livre e espontânea vontade, ou simplesmente é proibido de sair de casa, como ocorre na obra em análise. “Preocupado e na tentativa de proteger o filho, o pai não deixou mais o garoto sair de casa sozinho” (YAGUA-KÃG, 2014, p. 15).

Mas a personagem principal é esperta, decidida, astuta, corajosa e não teme a empreitada que a espera. Assim, sai de casa escondido para pedir ajuda a Monãg, deus da etnia Maraguá.

Certo dia, Tykuã saiu sem que seus pais percebessem. Caminhou pela floresta e chegou a um lugar ermo e descampado. Ali fez uma prece ao deus maraguá. – Monãg, afasta o mal que contra mim conspira. Mostra-me uma saída. Na mesma hora o tempo mudou. Ventos fortes sopraram, açoitando as árvores. Vozes ecoaram em seus ouvidos, como por encanto. E um grande temor quase fez o menino correr. Ele havia invocado o criador, mas permaneceu ali, imóvel (YAGUAKÃG, 2014, p.16).

Na função XII de Propp o herói deve transpor algumas provas, que o preparam para o recebimento de um objeto ou de um auxiliar mágico. Esta é a função I do doador. É nesta passagem que o herói é incumbido dos desafios que deve vencer para realizar seu intento: vencer a cobra e o gavião-real.

A passagem demonstra que a trajetória do herói é investida por obs-táculos, provas, cuja ultrapassagem constitui a “essência da ação” do conto. Em “Tykuã”, encontram-se desafios indicados quando a personagem recebe objetos que a ajudarão a vencer o mal: o antídoto e a zarabatana, de Monãg.

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Não temas, menino. Tenho uma missão para ti. Os males que te afligem não te alcançaram, e nenhuma força maléfica te atingirá. Trago aqui um antídoto, caso a serpente maligna venha a te picar. Toma tudo de uma vez, e a peçonha nada te causará. Trago também uma zarabatana, com a qual atingirás o grande gavião-real. Os maus se renderão. Agora vai e lute contra as forças malignas (YAGUAKÃG, 2014, p.16).

No conto, aparece uma sequência de características das narrativas mí-ticas: o herói, ameaçado por algum perigo, recebe auxílio de uma personagem coadjuvante que o ajuda. Esse novo personagem é conhecido como doador ou como provedor. Nesta passagem, aparece o pajé Malakuyawã, com quem Tykuã vai conversar quando o pai o avisa que estão tramando contra sua vida. Essa personagem pede ajuda ao deus do céu e da terra e o acompanha durante toda a sua trajetória.

Tykuã, muito triste e confuso, foi consultar Malakuyawã, o mais sábio entre os pajés, e lhe contou sobre a conspiração que o ameaçava. O velho pajé, que por muito tempo curou e ajudou tantas pessoas, ficou preocupado. Decidiu buscar imediatamente o auxílio de Monãg, o deus maraguá, criador do céu e da terra (YAGUAKÃG, 2014, p. 13).

Na função XIX de Propp, a malfeitoria inicial ou a falta são reparadas. A função acompanha a malfeitoria ou a falta no momento em que se estabelece a intriga. É neste instante que o conto atinge o ápice. E o objetivo da demanda é alcançado na força ou calmamente. A obtenção do objeto procurado é o re-sultado imediato das ações realizadas anteriormente, ou seja, todos os desafios foram cumpridos com êxito e o prêmio do herói é entregue a ele em forma de recompensa: a vida.

Tykuã estava a salvo da gavião, porém ainda sentia dor por causa da picada da serpente. Mas o próprio Monãg cuidou de sua ferida, e o menino regressou são e salvo. Ao chegar em casa, contou aos pais o que lhe havia acontecido (YAGUAKÃG, 2014, p. 23).

Na função XXX, o agressor é punido. É o que ocorre na página 23, quando o herói consegue derrotar os inimigos Mawáka e Waika’á, transformados em cobra e gavião, respectivamente.

E que fim tiveram os aprendizes do mal? Não se sabe exatamente o que acon-teceu, mas Malakuyawã revelou que a picada de Mawáka, transformado em

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cobra, em Waika’á, transformado em gavião, tinha sido mortal. Mawáka, por sua vez, ficou cego e teve as pernas arrancadas pela ave furiosa (YAGUA-KÃG, 2014, p. 21).

O estudo das personagens segundo suas funções, sua divisão em ca-tegorias e o estudo das formas de sua entrada em cena remete ao problema geral das personagens do conto: as funções permanecem constantes, o que permite a elementos que se agrupam em volta das funções entrarem no sistema.

A análise dos atributos permite interpretações acerca do conto, consi-derando-se que o estudo dos atributos das personagens é importante porque são refletidas nas formas fundamentais destes as leis de transformação e as noções abstratas. Para isso, entretanto, é preciso determinar em quantas sequências ele se compõe. Uma sequência pode seguir-se imediatamente a outra ou pode a ela entrelaçar-se. Sendo assim, o desenrolar da ação para e outra sequência é inter-calada.

As sequências podem estar ligadas da seguinte maneira: i) uma nova sequência sucede outra; ii) uma nova sequência começa antes que a precedente termine; e iii) duas sequências podem ter um fim comum. Assim, percebe-se que os processos de ligação entre as sequências existem, mas nem sempre exercem no domínio de contos qualquer ação.

Após distinção relacionada à divisão das sequências, cabe dividir a obra “Tykuã” segundo suas partes constitutivas, sendo que as partes constituti-vas fundamentais são as funções das personagens. Dentro das funções, existem elementos de ligação e motivações e ainda elementos ou acessórios atributivos. Essas categorias de elementos determinam não só a estrutura do conto, mas o conto no seu conjunto.

Partes constitutivas do contoI - Situação inicial. Uma criança mora com os pais, é muito feliz e tem o dom de ser

adivinho. 2 - Forma de nascimento do herói. Tykuã era um adivinho e tudo o que com frequência falava, não tar-

dava a se concretizar.

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3 – Prosperidade antes da malfeitoria. Tykuã fica famoso devido ao seu dom, por isso, em pouco tempo, a

notícia se espalha e várias pessoas da aldeia passam a procurar o menino para ouvir premonições.

[...] O pai chegava e trazia exatamente o que o menino havia anunciado. Os feitos de Tykuã logo ficaram conhecidos na aldeia. E em pouco tempo a notí-cia se espalhou por todo o território maraguá. Da foz do rio às paragens mais distantes dos igarapés, todos ficaram sabendo daquela habilidade incomum do menino. E foi assim que muita gente da aldeia passou a procurar Tykuã para saber de suas predições (YAGUAKÃG, 2014, p. 5).

4 - Malfeitoria. Aparecem Anhãga, Mawáka e Waika’á, que são maus e invejosos, e

por isso querem acabar com Tykuã, devido ao seu dom. Querem matá-lo.

Porém, como a inveja é a inimiga e a raiz de todos os males, Anhãga, o senhor da maldade, ficou descontente ao ver que o garoto havia se tornado famoso por suas previsões e, graças a esse poder, estava ajudando muita gente. A bon-dade de Tykuã era tanta que Anhãga desejava prejudicá-lo com seus feitiços. Os invejosos Mawáka e Waika’á eram aprendizes de pajé do outro lado do grande rio, onde viviam pajés do mal, que pretendiam tirar a vida de Tykuã. Mas o menino não conhecia a dimensão de toda essa maldade. Niniguáy tam-bém não fazia ideia, e muito menos Waçarabiá, que passava a maior parte do dia distante da família, caçando e pescando. (YAGUAKÃG, 2014, p.8).

5 - O mandatário.O mandatário na narrativa é o Anhãga, que é o senhor da maldade e

não gosta de ver Tykuã fazendo o bem.

Existe lá na aldeia um garoto que tem o dom da adivinhação, e ele usa o poder para fazer o bem. Farei de vocês os maiores feiticeiros que existem, mas em troca terão que destruir o menino, senão seus poderes de feiticeiros jamais serão plenos! (YAGUAKÃG, 2014, p. 10).

6 - A entrada em cena do doador.Malakuyawá, um sábio pajé é o primeiro doador, que escuta as aflições

de Tykuã. 7 – Entra em cena o segundo ajudante ou doador, Monãg.Tykuã pede ajuda a Monãg, o deus Maraguá, que aparece a ele e lhe dá

objetos que o ajudarão a escapar do plano de vingança dos pajé maus.

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Não temas, menino.Tenho uma missão para ti. Os males que te afligem não te alcançaram e nenhuma força maléfica te atingirá. Trago aqui um antídoto, caso a serpente maligna venha a te picar. Toma tudo de uma vez e a peçonha nada te causará. Trago também uma zarabatana, com a qual atingirás o grande gavião-real. Os maus se renderão. Agora vai e lute contra as forças malignas (YAGUAKÃG, 2014, p. 15).

8 – Aparecem os agressores transformados.Mawáka e Waika’á se disfarçam para enganar Tukuã e fazê-lo perder

os objetos doados por Monãg para protegê-lo do perigo. E após conseguirem retirar os dois objetos – o antídoto e a zarabatana – o atacam.

[...] No caminho avistou um homem que pedia socorro, pois havia sido picado por uma cobra. Movido pela piedade, o garoto verteu o antídoto na boca do homem e o salvou.Mais adiante, encontrou uma casinha onde jazia uma senhora febril e faminta. Tykuã -lhe perguntou onde estava a família dela, e a mulher respondeu que todos haviam morrido. Só restara ela, sozinha, à espera da morte. Mais que depressa, o menino soprou a zarabatana na direção de um veado, que caiu morto. Em seguida, ofereceu a caça à mulher. Tykuã nem esperou que ela pre-parasse a comida, pois precisava voltar para casa (YAGUAKÃG, 2014, p. 18).

9 – O herói vence os malfeitores.Tykuã é picado pela cobra, mas mesmo ferido consegue lutar com

ela e tem ajuda de Monãg, que confunde o gavião. Ao invés deste animal pegar Tykuã, agarra a cobra e voa para longe com ela em suas garras.

Monãg cuida da picada do menino, que fica bom da picada da cobra.

10 – Regresso para casa.Depois de ser curado por Monãg, Tykuã retorna para casa e conta a

seus pais tudo que havia acontecido e como ele havia conseguido escapar são e salvo da armadilha ardilosa, que lhe haviam preparado. “Finalmente o bem ven-ceu o mal! – Festejou o pai”.

Naquele dia, fizeram uma grande fogueira para celebrar a derrota de Anhãga e de seus discípulos. Numa cerimônia especial , o pajé Malakuyawã apresentou Tykuã como benfeitor e adivinho do povo maraguá. (YAGUAKÃG, 2014, p. 23).

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Componente cosmológico na construção da narrativaA cosmologia, na sociocultura indígena, constitui identidades e histó-

rias de vida. Eliade (2010) pensa-a enquanto vida interpretada em perspectivas múltiplas e complementares, a partir da qual o cosmos explica organização, con-dições sociais, poderes existentes e fazeres compartilhados das pessoas. Pode-se inferir sobre a constituição cosmológica de sociedades indígenas amazônicas na medida em que se concebe sua estrutura enquanto sistema complexo de cosmo-saberes.

No livro de Elias Yaguakãg, tem-se a representação de uma criança in-dígena que recebeu o dom da adivinhação e isso causa inveja a outros indígenas, ocasionando ação contraproposta. Mas, ao final, há a punição do mal tanto para os que habitam a Terra quanto para o ser sobrenatural maléfico.

Supondo o sistema e tomando a história de “Tykuã” como base inter-pretativa, nota-se a organização humana assim definida em sociedades indígenas: a hierarquia de saberes e poderes molda o lugar de cada ser étnico e determina suas funções dentro da comunalidade estabelecida.

Pode ser denominada essa organização de “pirâmide indígena”, sendo representada como constituição explicativa, classificadora, que pune os que não a seguem na hierarquia da sociedade Maraguá.

O ser sobrenatural mais poderoso. Ajuda o herói Tykuã a vencer o mal.

O ser sobrenatural que simboliza o mal. Tenta destruir o herói utilizando de outros índios

com característica igual a dele: a inveja.

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O índio mais sábio entre os pajés. Simboliza um ente que media o contato entre

os índios e o deus Maraguá.

Índios que fazem parte do povo Maraguá. Cada um com sua característica: Tykuã, um índio bom,

valente, bom filho, amigo e com a habilidade de adivinhação.Mawáka e Waiká, índios invejosos, querendo o poder a qualquer custo.

Junta-se a Anhãga, o senhor da maldade, para tentar derrotar o herói Tykuã.

Nessa pirâmide indígena, todos estão inseridos em uma ordem, uma hierarquia que foi estipulada e seguida pelos índios. No momento em que o pai de Tykuã ouviu Anhãga, Mawáka e Waiká tramando contra o filho foi até o pajé mais sábio, Malakwyawã, para pedir ajuda. E este se dirigiu a Monãg, o deus Ma-raguá, que atendeu prontamente ao pedido e ajudou Tykuã.

Além da hierarquia seguida, tem-se a oposição do bem contra o mal bem definida. Um índio que ajudava os outros e outros dois que sentiam inveja da habilidade de Tykuã. Além da oposição, há a dualidade refletida nos persona-gens sobrenaturais nas imagens de Monãg e Anhãga.

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Figura 1- Representação do bem e mal na narrativa.

No indicado, temos a representação da oposição lógica, o bem e o mal. E numa disposição de tamanho indica-se a soberania e a vitória do bem contra o mal, conforme o desenlace da narrativa. Na narrativa, houve uma ação primária dos personagens Anhãga, Mawáka e Waiká em relação à habilidade do personagem Tykuã, sendo que a inveja os levou a querer a destruição do herói.

Na narrativa indígena, a junção da vida real com o plano de seres me-tafísicos é natural. É como se fosse uma continuação da vida real. Seres sobrena-turais fazem parte da existência constituída. São elementos comuns e naturaliza-dos. O mito é uma forma de ver o mundo, de explicar os fatos e a origem de tudo.

A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a repre-sentação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabe-lecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 233).

Povos ameríndios possuem lógica própria de compreensão de mundo. Lévi-Strauss (1978) refletiu sobre a questão em “Mito e significado”.

É que esses povos que consideramos estarem totalmente dominados pela necessidade de não morrerem de fome, de se manterem num nível mínimo

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de subsistência, em condições materiais muito duras, são perfeitamente capa-zes de pensamento desinteressado; ou seja, são movidos por uma necessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade em que vivem. Por outro lado, para atingirem este objetivo, agem por meios intelectuais, exatamente como faz um filósofo ou até, em certa medida, como pode fazer e fará um cientista. Esta é a minha hipótese de base (ID., op. cit., p. 19).

Outro elemento interessante na narrativa é o perspectivismo (VIVEI-ROS DE CASTRO, 1993) crivado na utilização mesclada de animais e pessoas para a representação de comportamentos e pensamentos. Na possibilidade de aniquilar Tykuá, Anhãgá transforma os aprendizes de pajés em animais. Mawáka em uma serpente traiçoeira e Waiká num gavião real, veloz e forte.

A transformação de personagens humanos em animais é uma cons-tante da cosmologia indígena, já que temos a natureza como a casa, o elemento protetor, uma complementariedade do ser indígena, e os animais como perse-verantes espelhos da realidade do outro, como espiritualidades do bem e mal representadas.

A serpente traiçoeira simboliza a boiúna, cobra de enorme proporção, ícone utilizado em narrativas ameríndias. A cobra como elemento constituidor na sociocultura indígena amazônica carrega rica carga semântica e pensamento mítico emocional, que integra a explicação do cosmos. Paes Loureiro faz refe-rência a ela.

Ofídio epifanizado, a boiúna é um exemplo do caráter estético da teogonia amazônica, da convivência natural com o sobrenatural, do irracionalismo dentro do racional, da sensibilidade como forma de vivência e compreensão da vida (LOUREIRO, 2001, p. 232).

Ao transformar o aprendiz de pajé em serpente, Anhãgá desejava destruir o anunciador, o personagem Tykuã, dado que a serpente, na história, representa maldade e traição diante da bondade. Também o gavião-real, apesar de ser a ave que possui força e rapidez, um ser do céu, carrega no conto o mal, o negativo e a destruição.

Em “Tykuã”, mostra-se uma simbologia de espaços. Existem seres indígenas, da terra, e seres sobrenaturais, do céu, em uma dualidade terrena e celeste. Essa simbologia também é perceptível no âmbito da iconografia cristã, por exemplo, conforme hipótese por nós apresentada neste estudo. A seguir,

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infere-se analogia entre a cosmologia de criação universal dos Maraguá à história de Jesus, o Nazareno, cristo crucificado segundo o cristianismo.

Há personagens com características comuns. Tykuã, quando criança, descobre ter um dom, o de anunciador, o dom da adivinhação; Jesus Cristo tam-bém fica conhecido por ter nascido como um anunciador da verdade, que veio salvar as pessoas, assim como Tykuã salva as pessoas.

As famílias de Tykuã e Jesus Cristo possuem a mesma estrutura, em forma de trindade: pai, mãe e um filho com um dom de salvar pessoas. Nas duas famílias, há pais com profissões de artífices, um é coletor/pescador e o outro é carpinteiro, e mães amorosas, prendadas e domésticas.

Como em qualquer história do bem contra o mal, há os representan-

tes das partes. Na história de Tykuã, Anhãgá é o senhor da maldade que tenta destruir o menino adivinho. Na história bíblica, a representação da maldade é o diabo, anjo expulso do paraíso e que tenta a vingança contra Jesus.

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Para representar a bondade, note-se na história a divindade Maraguá, criadora do céu e da terra, Monãg; e na iconografia cristã, temos Deus-Pai, tam-bém criador do céu e da terra e da verdade da vida.

Como no céu existem representantes do bem, na terra há persona-

gens que retratam a bondade, amigos que defendem e protegem os personagens principais. No conto, está Malakwyawá, o mais sábio entre os pajés, um interme-diador entre os indígenas e o sobrenatural; e na cristã, há a simbologia do padre, intermediador entre os católicos e deus. Mas tanto no conto quanto na Igreja cristã, quando necessário, devotos podem se reportar a deus sem mediação de pajés ou padres.

Há também personagens terrenos que representam a maldade. Os aprendizes de pajé Mawáka e Waiká, com inveja de Tykuã, aceitam tramar junto com Anhãgá contra ele. E na história de Jesus, temos Judas, personagem que representou a traição.

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Por último, temos os animais presentes nas duas narrativas. Para aná-lise, citamos a serpente, que em ambas as histórias simboliza a traição, o mal, o veneno. Na narrativa de “Tykuã”, Mawáka transformado em serpente tenta ma-tar Tykuã; e na cristã a serpente faz parte da explicação do mundo, convencendo Eva a provar o fruto proibido. Relações míticas e simbólicas que se perpassam pela criação literária.

Através dessas relações, tende-se a visualizar uma construção híbrida na narrativa de Elias Yaguakãg, que consegue transpor a oralidade e traz ao leitor um arcabouço de interpretações capazes de sustentar a ideia de sociocultura in-dígena e fomentar o diálogo com outras.

Em sua narrativa, religião, mito e lendas pertencem ao campo da sim-bologia e trazem carga semântica forte e icônica, tendo em vista explicar a cos-mogonia indígena, bem como a vida, a morte, as relações sociais, os poderes, as punições e as bênçãos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que a literatura analisada concorre para valorizar a etnia

Maraguá, da Amazônia, por meio de suas histórias e formas de representação da sociedade local. Cabe também destacar que a produção literária indígena do bioma mostra-se, hoje, repleta de valores e historicidades, apontando para uma representação fidedigna do povo ameríndio. Estudar essas narrativas é necessário e urgente na atualidade, pois é uma maneira de se recolocar a história de popula-ções étnicas para o conhecimento de todos.

Outrossim, sendo a escrita uma forma de poder, a narrativa de in-dígenas vem como alternativa de valorização do mundo tradicional, simbólico, em face ao mundo urbano, ocidental. Essa escrita apresenta dueto característico, ancorado na hibridização entre real e sobrenatural, objetivo e mítico.

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Essa característica torna a narrativa um verdadeiro constructo literá-rio rico em oralidade e de suma importância no âmbito nacional, haja vista que pesquisas sobre narrativas indígenas amazônicas tendem a retratar uma sociocul-tura muitas vezes em estado de invisibilidade, pouco conhecida e debatida em espaços acadêmicos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: As edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: A Autêntica; FALE/UFMG, 2004. BRITO, Edison. A literatura indígena é um conhecimento ancestral, s.d. Disponível em: http://caravana mekukradja.blogspot.com/2011/01/literatura-indigena-e-um-conheci mentoancestral/. Acessos em: 01 dez 2014.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Alguns Aspectos da Afinidade no Dravi-dianato Amazônico”. In: E. Viveiros de Castro e M. Carneiro da Cunha (orgs.), Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII/USP-FAPESP, 1993. pp. 149-210.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2010.

GUESSE, Érika Bergamasco. Prática Escritural Indígena: Língua e Literatura fortalecendo a identidade e a cultura. Anais do SILEL. Volume 3, Número 1.Uberlândia, EDUFU, 2013.

JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia Indígena: uma introdução, história dos povos indígenas no Brasil. São Paulo: EDUC, 2011.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.

PROPP, Wladimir. A morfologia do conto maravilhoso. 4 ed. Lisboa: Vega Universi-dade, 2000.

STRAUSS, Lévi. Mito e significado. Tradução: Antonio Marques Bessa. Coletivo Sabotagem: 1978.

YAGUAKÃG, Elias. Tykuã e a origem da Anunciação. Ilustrações: Kammal João. Rio de Janeiro: Rovelle, 2014.

Entrevista com o autor Elias Yaguakãg realizada dia 13 de dezembro de 2014, concedida à mestranda Elizabeth Cristina Siel Souza.

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UMA LEITURA COMPARATIVA DOS ROMANCES A SELVA, DE FERREIRA

DE CASTRO E O HÓSPEDE DE JOB, DE JOSÉ CARDOSO PIRES

Francisca de Lourdes Souza Louro INTRODUÇÃOFerreira de Castro geralmente é apontado como um dos expoentes

na literatura portuguesa, de uma tendência surgida nos anos 40, denominada de “Neorrealismo”. Trata-se de uma escrita pós-modernista, que floresceu nas proximidades da Segunda Guerra Mundial e tem no romance a sua expressão mais proeminente. Agrupava autores que rejeitavam a arte presencista (de teor introspectivo), revelando uma nítida influência norte-americana e, principalmen-te, brasileira, pois os romancistas de 30, escrevendo sobre o Nordeste brasilei-ro e seus problemas, inspiraram os portugueses a propor, em contraposição ao psicologismo em voga de Portugal, uma literatura engajada, de coloração social, objetivando denunciar as injustiças sociais e a exploração do homem pelo ho-mem. Dessa forma, a luta de classes vai preencher as páginas dos romances, e as personagens passam a representar os embates entre patrões e empregados, trabalhadores e senhores de terra. Assim, a ação do romance A Selva enfoca o flagrante vivido pelo escritor nos “seringais amazônicos”, presentes nas imagens criadas depois de passados quinze anos de aqui vivido.

Ferreira de Castro veio para o Amazonas em 1914, quando ainda era criança, ficando no seringal até os dezesseis anos de idade. “E dos quatro que passara ali, não houve um só dia em que desejasse evadir-me para a cidade, liber-tar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir! ”1 O romance foi escrito em 1929, ao que podemos dizer um romance de memória, no que ele mesmo declara: “Enfim, quinze anos volvidos tormentosamente sobre a noite em que abandonei o seringal Paraíso, pude sentar-me à mesa de trabalho para começar este livro. Tudo parecia já clarificado no meu espírito, a síntese dir-

1 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. p.18

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se-ia feita e os pormenores inúteis retidos, como sedimentos, no grande filtro que a memória emprega para não se sobrecarregar”2.

Em sua vivência na Amazônia (Pará e Amazonas), o escritor testemu-nhou cenas e flagrantes, que mais tarde seriam recriados pela pena vigorosa do artista, transformando-se em romance, considerado por muitos a sua obra-pri-ma. O narrador serve-se das impressões de Alberto como se perceber e carrega nas fortes tintas do naturalismo para mostrar a selvageria que era a relação patrão e empregado no norte do Brasil.

José Augusto Neves Cardoso Pires é reconhecido como um dos mais importantes escritores portugueses da segunda metade de século XX. O seu trajeto pessoal e a sua carreira de escritor são marcados pela inquietação e pela deambulação. Porém, não se identifica com nenhum grupo, nem se fixa em ne-nhum gênero literário. É considerado, sobretudo como um romancista pelo fato de cada livro seu inaugurar e completar um ciclo de criação literária. Nenhuma das suas obras se tornou uma fórmula que viesse a repetir, apesar de ser possível reconhecer linhas de evolução da sua escrita literária. A relação mais consistente e duradoura, no campo literário, deu-se com o movimento Neorrealista portu-guês como aconteceu com Ferreira de Castro, e, também, pela adesão a uma política de resistência ao regime autoritário português. A inserção da sua obra no Neorrealismo literário português é, por estas razões, complexa e eivada de contradições. O traço distintivo, que mantém até as últimas obras, é o respeitante ao compromisso da literatura com a realidade contemporânea.

O romance deste autor a ser trabalhado, O Hóspede de Job - cujo título certeiro nos põe de sobreaviso – fala de um estrangeiro, Gallagher, representante de uma grande potência, instala-se como visita, na terra de Job. Especialista de armamento e de guerras, traz consigo a arrogância e a luta. E, ao abandonar a terra de Job, levará como presente a dor dos camponeses. Não lhes podendo rou-bar a comida, por não a haver, tenta comer-lhes os próprios corpos. João Portela será um símbolo dessa destruição estrangeira. O desajuste entre o poderio de Gallagher e a fraqueza do bando de garotos é menos notório se verificarmos que existe desproporção semelhante entre as mulheres de Cimadas e os representan-tes da ordem.

Opondo a força à razão, a petulância à miséria, a malvadez à ingenui-dade, o romancista não só cria uma ambiência como também, separa e distingue os seus comparsas. Assim os dois romances falam de existências naufragadas na 2 Idem,p.19

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sordidez humana. Nesta análise, o que abordaremos nos dois romances é o as-pecto transitório das viagens, os meios de transporte usados pelos personagens. Como os autores utilizam esta metáfora da viagem, elemento que carrega vidas, vidas que se mudam injustiçados, humilhados por estruturas sociais envelhecidas, a serviço dos homens que estão no poder. Nos dois romances está apresentado um movimento migratório de homens que sofrem as injustiças sociais, esmaga-dos pelas condições adversas, clemente por atenção, quer sejam da Amazônia, quer sejam de Cercal Novo e Cimadas. Todos foram transportados para este meio, foi a viagem do destino ingrato, um revés da fortuna de cada personagem.

Marcação nos dois romances.A ação do romance A Selva tem início em Belém do Pará, com a che-

gada de um navio carregado de nordestinos agenciados no interior do Ceará pelo mulato Balbino, funcionário do seringal Paraíso, localizado nas proximidades do município de Humaitá, para onde eles seriam levados. Balbino fora comissionado por Juca Tristão, o proprietário do Seringal Paraíso para agenciar sertanejos no Nordeste para o trabalho na extração do látex. Aproveitando-se da situação de extrema miséria, premidos pela fome e fustigados pela seca inclemente, Balbino recrutou-os mediante a propaganda enganosa de que trabalhando nos seringais da Amazônia, em pouco tempo ficariam ricos, adquirindo expressiva fortuna. Assim, os sertanejos iniciam a faina de retirantes rumo ao “Paraíso”, com escalas em Belém e Manaus, levando na escassa bagagem muitos sonhos e ilusões.

Ao adentrarem o “gaiola” (nome dado aos navios que faziam esse tipo de transporte) que os conduziria naquela viagem, logo percebem que haviam caído numa armadilha: o minguado dinheiro que o agenciador deixara para a ali-mentação da família do agenciado, o alto preço da passagem e a alimentação que este consumia ao longo da longa viagem de navio eram os primeiros elos de uma corrente que só tenderia a crescer, prendendo-o e escravizando-o. A descoberta do engodo faz com os retirantes arquitetar projetos de fuga ao chegarem a Be-lém. E fugir é tudo que desejam a fim de se libertarem da armadilha. Ciente disso, Balbino reforça a vigilância e pune severamente quem for apanhado em intenção de fuga. Em Belém, Balbino encurrala aquele “rebanho” humano numa hos-pedaria imunda, enquanto vai ultimando os preparativos para a continuação da viagem. Mesmo assim, três daqueles homens conseguiram fugir. E é assim, con-tabilizando a perda de três homens, que o narrador apresenta Balbino ao leitor: “Fato branco, engomado, luzidio, do melhor H. J. que teciam as fábricas inglesas,

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o senhor Balbino, com chapéu de palha a evolver-lhe em sombra metade do corpo alto e seco, entrou na “Flor da Amazônia” mais rabioso do que nunca”.3

Nesse ínterim entra em cena o protagonista da narrativa. Trata-se de Alberto, um jovem português de 26 anos, estudante do quarto ano de Direito, que se exilara em Belém para fugir da perseguição policial do seu país, por ter participado da Revolta de Monsanto e por defender ideias monarquistas na recém fundada República. Alberto morava com um tio, senhor Macedo, também portu-guês, dono de um sórdido hotel para seringueiros na capital paraense. Sendo um homem extremamente ganancioso, Macedo encarava o sobrinho desempregado como um estorvo, um peso a suportar, um fator gerador de despesas desne-cessárias. Com a iminência da partida do navio rumo ao rio Madeira, Macedo aproveitou o ensejo para se livrar do sobrinho incômodo: propôs ao Balbino que o levasse no lugar de um dos fugitivos. Como mandava a praxe daquele comércio singular, Alberto teve de assumir a dívida do cearense que fugira, ingressando, em seu lugar, no gaiola, que levaria os “brabos” com destino ao seringal.

“Brabo” é o nome dado aos novatos no ofício do extrativismo do látex. Eram os homens que seriam domesticados na ambientação e no trato da floresta, porém, sentiam-se aprisionados a céu aberto: “daquela bárbara grandio-sidade e da sua estranha beleza, uma só forte impressão ficava: a inicial, que nun-ca mais se esquecia e nunca mais também se voltava a sentir plenamente. Sobre o solo fica configurado com constantes partujeramentos, obstinado na ânsia de criar, a sua cabeleira, contemplada por fora, sugeria vida liberta num mundo vir-gem, ainda não tocado pelos conceitos humanos; vista por dentro, oprimia e fa-zia anelar a morte. Só a luz obrigava o monstro a mudar de fisionomia, revelando as suas pesadas atitudes, mas persistindo sempre no seu ar enigmático”4. Nada se assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura; assustava com seu segredo, com o seu mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga5.

Essas são as primeiras impressões do brabo português viajando no navio Justo Chermont.

A VIAGEM: ( “O CURRAL FLUTUANTE” DEIXA BELÉM)A expressão “prancha dentro”! É bem conhecida na navegação ama-

zônica a expressão prancha dentro! É a ordem dada após o encerramento dos

3 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. P.274 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. P.45 Idem.p. 84.

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portões e o apito na hora de despedida emitidos pela sereia do navio, nessa hora começa o recolhimento da prancha para que se inicie a viagem. “Dada essa or-dem pelo comandante Patativa, o navio “Justo Chermont” atestadinho, até não mais poder, expondo nos conveses tudo o que não lhe coubera nas entranhas, iniciava a sua longa viagem ao Madeira, [...] flechado por acenos e adeuses dos que ficavam, foi-se distanciando na indiferença da noite tropical. Os passageiros cuidavam de se instalar, numa rápida adaptação ao novo meio. O convés era úmi-do, sujo e escorregadio. Dir-se-ia que visco fluido e repulsivo se exalava de toda a parte, estendendo-se sobre a pele, furando até os poros. [...] Flutuava um cheiro de redil e as primeiras náuseas sacudiam Alberto, incipiente naquelas andanças”. Verdadeiro curral flutuante6, levava a bordo uma carga humana à qual o narra-dor se refere insistentemente través de coletivos desabonadores, como “récua, rebanho, tabaréus ignaros, leva, caterva, malta”. “E muitos levavam as famílias, mulheres e filhos, e mesmo antes de aninhar-se, davam sensação de promiscui-dade – farraparia, miséria errante, expressões mortiças de sofredores”7. Desejos, ideias, sensações eram apenas murmurados, porque ainda ninguém estava senhor de si e, na ânsia de conquistar espaço para dormir, haviam-se tresmalhado e avi-zinhado membros de rebanhos diferentes. “Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o Mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida coletiva a beleza e a elevação que ela podia ter? Se a possuíssem, se tivessem sensibilidade, não estariam adaptados como estavam àquele curral flutuante”. 8

No jogo do texto é sensato pressupor que o autor, o texto e o leitor estão intimamente interconectados em uma relação a ser concebida como um processo em andamento que produz algo que antes inexistia. Esta concepção do texto está em conflito direto com a noção tradicional de representação, à medida que a mimeses envolve a referência a uma “realidade” pré-datada, que se pretende estar representada. No sentido aristotélico, a função da representação é dupla: tornar perceptíveis as formas constitutivas da natureza; completar o que a natureza deixara incompleto. O mundo repetido no texto é obviamente diferente daquele a que se refere, porquanto, nenhuma descrição pode ser aquilo que des-creve. Há uma dualidade textual, um jogo de ideias e uma multiplicidade em seus aspectos para aumentar as expectativas do leitor.

6 Ibdem, p. 417 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. p388Idem. p.41

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O que em alguns textos serve para facilitar a compreensão do leitor, neste romance serve para facilitar a adaptação ao mundo físico que se constitui a Amazônia - a que está representada no texto e, o leitor, sente atração e fruição pela participação imaginativa, é apenas um meio para um fim e não um fim em si mesmo. O leitor interage neste jogo de ideias, de performances e se sente habili-tado a idealizar o cenário apresentado por perceber nele a realidade evocada. “É a identidade, como se sabe, uma construção simbólica, que estabelece uma co-munidade de sentido e um ponto de referência no mundo”9. Os olhos não veem coisas, mas imagens de coisas que significam outras coisas. É um movimento constante de construção, desconstrução e reconstrução em que podemos situar o trabalho de interpretar o texto literário.

Alfredo Bosi na obra, Céu e Inferno, diz-nos que “ler é colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar é eleger ex-legere, na messe das possibilidades semânticas, apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer? A análise literária é uma leitura de expressões, e não um recorte de segmentos materiais, ela não pode separar-se do trabalho da interpretação. ”10

Em A Selva temos os rios como estradas longas e sinuosas duplican-do a distância que separava o personagem de sua terra natal, Portugal. O navio, como o comboio também anuncia sua partida, ambos se utilizam do recurso do apito anunciador da partida para os acenos dos que ficam. O “Justo Chermont” navega pela baía de Marajó, encrespada que nem um mar e de margens tão dis-tantes que se perdiam a olho nu. [...] depois de saber que toda aquela água não era pertença do oceano, mas sim o corpo da imensurável aranha hidrográfica da Amazônia, vinha-lhe o assombro da vastidão, do que pesa e esmaga pormeno-res e, pela sua grandeza, recusa-se de começo à fria análise. O Justo Chermont cabeceava sobre as ondas de dorso atlântico e fundo regaço”;11 e “seguia entre duas margens – terra baixa, terra em formação, arrastada das cabeceiras e detida ali,[...] um mundo de pesadelo até a água barrenta que ele sulcava”12. “A subida lenta, quinze dias bem puxados de Belém ao Paraíso, ora o Justo Chermont se enfiava pelos estreitos “paranás”, tão oculto nas margens que o barco dir-se-ia penetrar na própria floresta, [...] tudo selva, selva por toda parte, fechando o horizonte na primeira curva do monstro líquido, as suas veias mais pequenas, que davam passagem a grandes transatlânticos e na geografia europeia figurariam

9 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. UFRGS.2002.p, 15710 BOSI, Alfredo. Céu, Inferno. Ensaio da crítica literária e ideologia. São Paulo. Ed.34 Ltda.2003.p. 462-47011 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. P. 4212 Idem,p.43

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como rios primordiais, [...] muitas vezes numa só hora, tornava-se necessário andar da margem direita para a esquerda, no centro do rio ou juntinho à terra, porque o canal tinha caprichos de serpente e era versátil como uma mulher, [...] A travessia demorou algumas horas. E sempre, sempre nas pupilas de Alberto aquela grandeza inabarcável”.13 Essas são algumas descrições da viagem que o narrador Alberto faz sob a “surpresa magnificente que se sobrepunha no espírito de viajante, perturbado por essa própria grandeza inédita, que tanto contrastava com a mesquinhez e imundície do convés, a ânsia de chegar ao seu destino” 14.

JOB DE CARDOSOHóspede de Job, de José Cardoso Pires é um romance que narra a his-

tória de deambulação de um Job que alberga involuntariamente em sua casa um hóspede que o mutilará, reduzindo-o a um pedinte de feira. Esse é um romance acentuadamente pessimista, destituído de dimensão futurante, característica prin-cipal das narrativas do movimento neorrealista. Em Pires o narrador ressalta a linha férrea e, principalmente um silvo e um delicado traço de fumo a alastrar a planície 15. […] Os recrutas e o tendeiro tomam sentido no que ele faz ou diz, mas também no silvo transportado pela noite. Refere-se-lhe ainda noutro tom, antes de se apiedar de si mesmo. Por que esta obsessão? O que é esse “tudo” que pode “trazer a uma vila de tropa o apito indomável duma locomotiva”? Tudo en-colhido, tudo atento à provocação que vem de longe, do comboio”.16 “Comboio de Évora, comboio de Vila Real ou dos quintos dos infernos.... Comboios de mil e seiscentos diabos. Comboios e mais comboios por todo o lado e a esta hora em Álvaro já não há quem se lembre de mim”.17

Como se percebe em O Hóspede de Job, o comboio faz parte da vida dessa gente que mora em Cercal Novo, uma terra recente, como o seu nome indi-ca com poucas casas, bordejando a estrada, e um quartel. O autor ressalta a linha férrea, o silvo e a fumarada do comboio, de tal modo que é uma espécie de me-tonímia da povoação e da sua atmosfera humana, pois centra-se, principalmente nos militares a atenção, eles serão sua referência, sua obsessão, pois eles repre-sentam a repressão do tempo político que Portugal atravessava, o salazarismo.

13 Ibidem,p.4914 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. P.5015 PIRES< José Cardoso. O hóspede de Job. Publicação Dom Quixote Ltda. Lisboa- Portugal 2001.p.916 Idem,p.1117 Ibdem.p.13

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Os dois romances mostram a transitividade das vidas em decurso do tempo, são vidas que estão à mercê de um regime totalitarista, onde os mais for-tes oprimem as categorias mais fracas. O significado do texto literário é apreen-sível não pela análise isolada da obra, nem pela relação da obra com a realida-de, mas tão-só, pela análise do processo de recepção, em que a obra se expõe, pode-se dizer, desta forma vê-se a multiplicidade de seus aspectos. A realidade é tão distante nos dois textos que não se percebe, o hóspede é um estrangeiro como em A Selva que também hospeda um estrangeiro, um português que fica surpreendido ante a prodigalidade da selva e dos homens que resistem a tudo, o homem à selva e a selva o homem.

“O vinho revela o homem”: o desenrolar da conversa ocasiona a re-velação dos estados de alma do cabo Três-Dezasseis, cortado da sua terra natal, por efeito do serviço militar. Julga-se votado ao esquecimento, ninguém da sua terra natal (Álvaro) se lembra dele, nem a sua mãe compreenderá o que ele fez na tropa. Nem os próprios recrutas, ao que parece: instado a responder sobre quem é o inimigo, um deles declara que são as mulas. Em vez de rir, como o 2º recruta, o cabo “sorri de dó. De piedade, de nojo”.

No romance de Pires os homens afogam suas desventuras ou come-moram a esperança no trago do vinho, esse é um costume do povo português. Já na Amazônia de Castro, era prática dos donos de seringais dar ao soldado da bor-racha a cachaça, uma aguardente feita da cana-de-açúcar, um líquido branco que tem o poder de trazer o esquecimento das mágoas e dos ressentimentos gerando uma falsa alegria. Essa prática levava ao vício da embriaguez, ocasionando muitas vezes em morte. O indivíduo embriagado dessa aguardente perde a direção dos sentidos e desconhece tudo e todos e até a si mesmo, como fica atestado no per-sonagem ““Firmino”, porém, demorou a garrafa na boca. E quando se ergueu, soprando com volúpia o ardor, agarrou no farol e pôs-se a marchar à frente”18.

Um outro personagem que está sempre embriagado é o negro Tiago, “outrora escravo, agora quase inútil, [...] vivia isolado numa velha barraca, onde entrava a chuva, o sol e o vento”. Era um homem violento produto da natureza, é desenhado como um ser com uma boca de sapo, desdentada e mascando cons-tantemente fibras de tabaco, lançava, com a saliva negra, todas as obscenidades conhecidas, levando o gerente a pedir, em nome dos ouvidos da mulher, que nesse dia não lhe dessa cachaça. Era o maior castigo, o mais duro tormento que

18 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. p,80

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lhe podiam aplicar. Só o álcool acendia ainda mais a sua vida sugada por todas as vicissitudes, aquele corpo alto, escanzelado e capenga de duende negro. [...]. Às vezes, Tiago cantava. Eram sempre canções lentas, arrastadas, fatalistas, que en-chiam a noite de melancolia, fazendo esquecer a voz pastosa de bêbedo. Canções de escravos, mais toada do que palavras, por ele aprendidas na infância e trazidas para o Brasil no ventre da mãe”. 19 Essa é a imagem retratada pelo narrador desse personagem que incorpora a imagem fantasmagórica e cruel dos homens explorados pelos seringalistas, pelo sonho da riqueza mas transformou-se em trapo humano. Isso acontecia quase sempre pelo desgosto que a vida aplicava aos homens sem esperança que vivia nos confins da Amazônia. Pode-se dizer que o seringal devorou-lhe os últimos dias de mocidade transformando-o num ser nauseante e asqueroso. No escapismo da embriaguez, portanto, vem à tona a alienação da personagem, o seu desenraizamento com a sociedade.

Nesse aspecto de transformar os seres em animais o romance de Pires também apresenta o sargento Leandro que “ladrava” e, as mulheres, transfor-mam-se em apenas “vultos” como simples testemunhos de seres que um dia foram em Cimadas. “Os homens, na sua grande maioria são homens-operários, homens-camponeses cobertos com uma farda que cobriu antes deles outros ope-rários, outros camponeses ou pescadores, e essa roupa, esse simples número de regimento, alheiam-nos da terra, da planície que se abre a dois passos dali ”.20

Em Pires, no capítulo X, tem o diálogo de dois algemados. Um deles é o preso, “camponês miúdo, sugado pelo sol”, outro, o agente, novo, glabro, “polícia-rapaz, polícia da cidade”. Este não é sádico, aconselha o outro a urinar, pois não o poderá fazer até Lisboa; dá-lhe água a beber, galhofa com ele, bate-lhe nos ombros. Sob o seu ponto de vista, o preso é comparado a um cavalo, quan-do urina, quando bebe sofregamente, quando resiste à fadiga. Esta comparação remete para o início do livro, onde a mula é metáfora do oprimido. Tem também a figura do camponês, homem resistente que “dormem de pé, alimentam-se e mijam de pé. Como os cavalos”. 21

Quando se fala de personagens ficcionais, toma-se frequentemente como referência a ideia de pessoa humana. Uma personagem pode parecer mais ou menos convincente, mais ou menos semelhante aos seres que encontramos no mundo real. Isso indica que tendemos à percebê-la utilizando como modelo

19 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. p,14920 PIRES< José Cardoso. O hóspede de Job. Publicação Dom Quixote Ltda. Lisboa- Portugal 2001.p.2521 Idem,p.72

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nossa concepção de pessoa. É importante ressaltar, contudo, que a noção de pessoa humana é variável. O que entendemos por pessoa, nestes dois romances, não correspondem ao que se entendia em outras épocas e culturas, como por exemplo, as personagens do romantismo, esteriotipadas, limpas, incapazes de ati-tudes relaxadas. Nestes, os personagens sofrem com a degradação social a que estão expostos socialmente. São filhos de um tempo historicamente negro para a humanidade, tanto do Brasil quanto de Portugal. Daí os autores refletirem esse tempo na caracterização dos seres.

O ambiente do romance A Selva, o Paraíso é um universo tão rico em flagrantes que o narrador não se sente capaz de sozinho dar conta de mostrar o painel evocativo que deseja transmitir ao leitor. Assim sendo, de forma bastante produtiva, escala duas personagens para auxiliá-lo no mister de descrever os fe-nômenos e narrar os eventos alusivos do dia-a-dia do seringal. E, oferece-lhes as armas adequadas: a Firmino dá o discurso direto como recurso de esclarecimen-to e reconhecimento do espaço e das relações sociais; a Alberto dá-lhe o discurso indireto livre como instrumento de contestação, indignação e reflexão. É através dessas três vozes narrativas principais que o leitor tem a oportunidade de entrar no Paraíso e desvendar-lhe os matizes mais recônditos.

ENTRE OS FLAGRANTES EXPLORADOS PELAS VOZES NARRATIVAS, DESTACAMOS:

A selva se insurge como antagonista do homem na voz de Alberto. “A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e cate-goria, tudo abandonado a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda me-lancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados”.22

Há inúmeras outras passagens que exemplificam esse sentimento de total enclausuramento na floresta, como no trecho que se segue: “O resto era a selva, com a sua vida sombria, ali pertinho, muito pertinho, fechando-se num

22 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930. P.84

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anel estrangulador”.23 Era a selva dominadora onde tudo perdia as proporções normais ”24. “À noite, o lago tornava-se difuso, etéreo e a sua cálida brisa dir-se-ia um bafo de morte, varrendo os fantasmas que andavam a roubar constelações dos trópicos – joias fabulosas e trêmulas que ali se refletiam ”.25 Ao poeta há sempre um mundo instaurado pleno de coisas positivas e negativas, carregado de angústia e sofrimento. São essas expressões negativas que lhe vão calcar a sua longa e intensa solidão como um reflexo isolado de pessimismo. Ferreira de Castro murou-se dentro dessa angústia para atingir a realização total do Eu. Sem a solidão, nos dois textos não seria possível a projeção de um mundo men-tal ausente de positividade e negatividade, também a realização do eu não seria possível.

E tal como a solidão dos homens, o som do apito do trem e do navio refletem o isolamento, é uma tentativa de comunicação. Este som pensa-se que seja um dos elementos transitórios, prenunciador de vidas em mudança, é a pró-pria tristeza dos autores, pois sem esses sons a tristeza seria total, ele forma ou transforma toda uma realidade. É o chamamento para a vida. É a comemoração da existência. Numa irreversível dinâmica de determinismo do meio sobre o indi-víduo, os homens, naquele espaço sui generis, acabavam animalizando-se.

Em Cardoso Pires tem a ambientação apresentada no primeiro ca-pítulo: Espalmada em córregos secos, numa terra de barrão e areão que encar-quilha ao sol; rasgados os campos pela estrada longa de asfalto ou por baforadas ronceiras de comboio – assim, no despertar da charneca, fica Cercal Novo: um clarim, uma igreja abraçada ao quartel, meia dúzia de casas ao correr da estrada e, principalmente um silvo, um delicado traço de fumo a alastrar toda a planície 26 [...] é um clarim pousado à margem da charneca. É um eco de passos rondando ao luar, uma penitência de cinturões e de botas cardadas; uma procissão, uma guerra entre muros27.

Essa ambientação nos remete a um passado de séculos remotos. É um traço isolado da modernidade. O leitor experimenta um sentimento de soli-dão pela imagem evocada, solitária, negativa e reveladora de um povoado distan-te que a modernidade transfigurou. Nele, está o processo dinâmico que é o tem-po das vidas que naufragaram na existência, em que, o silêncio é quebrado pelas

23 Idem,p.9424 Ibdem,p.6225 CASTRO, Ferreira de. A Selva. Lisboa, Guimarães Editores Ltda. 37 ed. 1930.p, 11526 PIRES< José Cardoso. O hóspede de Job. Publicação Dom Quixote Ltda. Lisboa- Portugal 2001.p .927 Idem,p.25

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vozes embriagadas, pelo silvo do trem que chega trazendo para a infelicidade os novos seres. Assim, pela representação temos dois ambientes que os autores trabalham: um quase selvagem (a selva) outro, uma cidade pacata dos tempos de antanho configurando-se como a cidade ideal, é o lamento articulado em torno do processo de mudança no silvo do trem que chega e parte levando vidas em seus espaços, como o navio Justo Chermont, que também carregava vítimas para o sofrimento. A possibilidade de reconstituir a sociedade antiga é um sonho que se inscreve no tempo e,as mudanças ocorridas no presente, tornam-se im-praticáveis. A leitura insinua a existência de acusações aos velhos escritores que defendem o direito de ter saudades do tempo já vivido. Uma saudade confessada no texto. Isto é literatura.

O BALCÃO DE NEGÓCIOSNa Selva tem no barracão o balcão onde os soldados fazem as contas

do apanhado para as necessidades na selva do que poderiam levar para comer. “Atravessada a porta, encontraram-se entre os que aguardavam despacho, aglo-merados junto ao balcão. Atestavam as prateleiras do armazém os riscados e os brins, para a faina quotidiana; o H.J. inglês, para os que tinham saldo e gostavam de brilhar nas festanças dos caboclos; sapatos de verniz e botas de elásticos, qua-se escondidas sob os chapéus de palha, já amarelecidos de tanto esperarem pelo comprador; sabonetes e frascos de patchuli. Também, havia quem não dispensas-se de levar aos bailes um lenço perfumado. Mais acima, os castelos de conservas, o leite condensado, pílulas de quinino, elixires para todos os males que vinha do Sul e servia, mesmo cru, para Bindá entreter a boca, enquanto pesava e media o requerido pelos fregueses. Sob o balcão alinhavam-se as caixas do arroz, do feijão e do café, enquanto ao fundo se vislumbrava, pela segunda arcada das prateleiras, a torneira de metal, que fornecia o petróleo, e a de madeira que esguichava a cachaça apetecida, tudo pingando sobre funis e medidas luzidias”.28 Mas com os brabos, ignorantes do que era e não era indispensável, Juca Tristão procedia de maneira diferente. Ele próprio organizava a lista de aviamento; o boião para de-fumar, a bacia para o látex, o galão, o machadinho, as tigelinhas de folha, todos os utensílios que a extração da borracha exigia – e mais um quilo de pirarucu e uns litros de farinha, pois nos primeiros quinze dias nunca um “brabo” sabe como se caça a paca e a cotia ou se pesca o tambaqui. (p.75).

28 Idem,p.74

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Em Pires existe também o balcão de negócios, o do vendeiro onde vão lá as pessoas tomar vinho, embriagar-se. “Estirado sobre um desses balcões, o cabo ferrador Três-Dezasseis assenta uma palmada no tampo de zinco”. (p.9). [...] “Nem mesmo esse militar em desespero de vinho que, a dois palmos dele roça a cara pelo balcão, estende as unhas, os cotovelos, e é um mostrengo diante de dois recrutas assustados”(p.10)

Bachelar em sua obra A poética do espaço diz que “quando duas ima-gens singulares, de obras de dois poetas diferentes vivenciam separadamente o seu devaneio, quando se encontram, parece que se reforçam mutuamente. Essa convergência de duas imagens excepcionais proporciona, de certa forma, uma confirmação para a pesquisa fenomenológica (p.73).

Sabe-se que a partir do realismo, a cidade substituirá a natureza e, não só como pano de fundo, será ela quem determinará o comportamento dos personagens. Essa substituição é tão forte e significativa que chega até os nossos dias e, hoje, a cidade apresenta-se como tema e personagem, quando não produz comportamentos que explicam a densa e complexa psicologia do personagem. Já em A Selva temos a natureza como impedidora do crescimento do caráter do homem, bestificando e vencendo-o numa luta entre cultura x vida selvagem. O processo de representação literária é o mesmo, até porque a literatura não se modifica, apenas se adaptam suas expressões. É isso que se presentifica nos dois textos.

A CASA, A MORADA DOS HOMENS“A barraca ia tomar piso a meio metro acima da terra e nesse espaço

só se viam as estacas que a suportavam. Paredes e soalhos eram de paxiúba – tronco de palmeira que dente de machado, ora resvala, ora acerta, tinha partido em tantas ripas quantas aconselhava a grossura do caule. [...] A barraca tinha duas divisões: uma, onde Alberto dormira, alardeava no chão, por baixo das redes uma esteira e, ao canto, um baú. A segunda, de mais estreiteza, era a sala de estágio e recepções; outra esteira, dois caixotes vazios, para assento, e, dependurados os rifles. Dava ainda para uma alpendrada, aberta de todos os lados e onde velha lata de petróleo, cortada numa das faces e com um buraco na parte superior, servia de fogareiro à cafeteira, agora a ferver (p.83).

Em Pires o espaço que mais aparece é o gabinete de Leandro, “um quarto e uma arrecadação, simplesmente. Era, no fundo, uma casa modesta

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como a de qualquer camponês da Vila, mas fria. Floripes já não se encontrava no gabinete do sargento. Tinham-na levado para o quarto ao lado, que servia de dormitório dos guardas, e ela, sozinha, diante de três camas, três cobertores de tropa, três capotes pendurados à cabeceira, estremeceu [... depois espreitou para uma mesa de pinho que estava junto à parede: livros de estudo, caneta, papel, um tabuleiro de damas, tudo muito arrumado, como é próprio dos militares de ofício que preenchem o tempo amarrados a uma secretária”(p.52).

Os ambientes são elaborados para aparentar naturalidade ao meio em que estão localizados os personagens. Em A Selva temos uma barraca improvi-sada como é improvisada a vida desses seres que se refugiam dentro delas. Já em pires os espaços são mais organizados, pois temos como referência os militares, homens organizados no ofício, um mundo bem classificado de conhecimentos positivos. Neste, tudo permanece sólido, como se percebe nos móveis da casa, o bastante para conter um mundo bem classificado de conhecimentos positivos pela presença dos livros de estudo.

O narrador de A Selva é um admirador extasiado pela natureza como ele mesmo declara: “Daquela bárbara grandiosidade e da sua estranha beleza, uma só forte impressão ficava: a inicial, que nunca mais se esquecia e nunca mais também se voltava a sentir plenamente (p.85). “A selva começava a falar no ouvido da noite” (p.79). “Ali pertinho, meia dúzia de passos na floresta, o igapó surgia, quedo, miasmático e pavoroso. Era, primeiro, uma língua de água que se estendia por entre os troncos, deixando marcadas em alguns deles as suas subi-das e envolvendo a outros os galhos rasteiros, até morrer na terra ampada, onde jaziam uma pequena ubá” (p.99).

Todo o texto de A Selva configura-se como um contra espaço que, personificado, encara o homem como intruso, invasor, agressor, e, numa expres-são de autodefesa ou vingança, faz de tudo para aniquilá-lo, estrangulá-lo. “Dir-se-ia que a selva, como uma fera aguardava há muitos milhares de anos a chegada de maravilhosa e incognoscível presa” ( p.77). O autor, no Pórtico, promete realizar uma vingança em nome dos “anônimos desbravadores”, “gente sem crônica definitiva, que à extração da borracha entregava a sua fome, a sua liber-dade e a sua existência”. Um livro como vingança. Promessa cumprida.

Nos dois autores pode ser verificado as muitas semelhanças em seus escritos de personagens, de ambiente, de narradores, de vícios humanos, de de-sassossego na vida, de desconforto diante das arbitrariedades trabalhistas, meio

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social, enfim, romance de vidas naufragadas nos espaços alagados da Amazônia ou áridos nos arredores de Portugal, (Cercal Novo).

Se o Neorrealismo como vimos é um movimento internacional, que percorreu, às vezes, com nomes diferentes, várias literaturas ocidentais, com sua introdução em Portugal ganhou maior relevo social e cultural devido à ditadura salazarista e sua equívoca neutralidade durante a II Guerra Mundial. De fato, o Neorrealismo português começa em 1940, quando o grande conflito já se ini-ciara. Por outro lado, Portugal era um país quase exclusivamente agrário, muito atrasado em termos socioeconômicos, com uma indústria incipiente e sem um movimento operário expressivo. A conjugação desses dois fatores dá ao Neor-realismo português uma fisionomia muito própria.

Já na Amazônia, ocorria a queda da economia extrativista como se percebe em Ferreira de Castro. Há uma absoluta predominância do contexto agrário e extrativista sobre o urbano, a ponto de nos primórdios do movimento se falar equivocadamente em regionalismo. Ainda em função do secular atraso econômico e social do país, surge o problema da verossimilhança na construção de personagens conscientes e engajados politicamente, uma vez que, ao contrário do que ocorria em outros países, os trabalhadores portugueses, cearenses e ma-ranhenses na Amazônia, em sua quase totalidade permaneciam alheios às formas de organização e às lutas da classe operária.

Assim, diz-se que em ambos os redentores da literatura, trabalhar as questões sociais dá ao leitor a visão do universo em que vive o homem daqui e de lá. O sofrimento e a luta de classes bem trabalhada remete-nos à Sísifo carregan-do pedra para glorificar o dia a dia da existência. O significado contemporâneo deste personagem da mitologia grega está relacionado com a ideia de que, por mais trabalho e esforço que se faça em relação a algo, o resultado é sempre a penosa atitude diante da inevitabilidade da vida que caminha para a morte do homem que sofre os descasos drástico da sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

G. Bachelar (1998). A poética do espaço. Trad. de Antonio de Paula Danesi. São Paulo: Martins Fontes.

A. Bosi (2003). Céu, Inferno. Ensaio da crítica literária e ideologia. São Paulo: Ed.34 Ltda.

F. Castro (1930). A Selva. Lisboa: Guimarães Editores.

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S. J. Pesavento (2002). O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: UFRGS.

J. C. Pires (2001). O hóspede de Job. Lisboa: Dom Quixote Ltda.

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“DOUTOR MARCOS SE VOCE É PROMOTOR É ATÉ HOJE, SEU JUDEU

SEM VERGONHA”: NARRATIVA DE UM CRIME, OCORRIDO NA CIDADE DE

PARINTINS EM 1938

Suely Mascarenhas Galúcio1

Arcângelo da Silva Ferreira2

O capítulo que se avizinha é o resultado parcial de um subprojeto desenvolvido a partir do projeto inscrito no Programa de Apoio à Iniciação Cien-tífica (PAIC) do curso de História da Universidade do Estado do Amazonas do Centro de Estudos Superiores de Parintins, denominado Fontes para uma nova História de Parintins-AM (1890-1954).3 A pesquisa de Iniciação Científica original, na sua fase de investigação dos arquivos e fontes do Fórum de Justiça da referida cidade, encontrou o Sumário de Culpa, no qual há o registro do referido crime. Nessa medida, elegemos esse documento como o corpus de análise: trata-se do registro de um evento que, se considerada a memória social das gerações mais antigas e residentes nesse município, ainda se fazem permanentes as lembranças desse fato, ocorrido na terceira década do século passado. Ora, é “possível nos lembrarmos de algo que não nos atingiu diretamente, mas que, por uma razão ou outra, contaminou nossa própria lembrança” (MOTTA, 2012, p. 26).

O aludido episódio aconteceu no ano de 1938. Procurando com-preender a documentação supracitada como um campo de possibilidades para o pro-cesso de produção do saber histórico, buscamos elaborar uma narrativa sobre a história desse homicídio, assim como indicar, mesmo que entrelaçadas nas curvas de nosso texto, evidências para se pensar sobre a história da cidade na conjuntura dos anos de 1930. Assim, há questões a se considerar, relacionadas à utilização da fonte criminal que estamos manipulando. 1 Licenciada em História na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) no Centro de Estudos Superiores de Parintins (CESP) 2 Doutorando em História Social na Amazônia no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) no Centro de Estudos Superiores de Parin-tins-AM (CESP). 3 Com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas – FAPEAM, iniciado em agosto de 2016.

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O primeiro aspecto é referente ao problema da desorganização do arquivo público, instalado no Fórum de Justiça Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, onde se deu a busca pelos processos criminais. Estes se encontravam em condições deterioradas, sem jamais terem passado por um sistema de higieniza-ção, catalogação, seleção.4 A documentação estava colocada em locais inapropria-dos, em sacolas plásticas, com fungos e alguns processos criminais, até mesmo, molhados, devido à presença de furos no telhado. Desta forma, o processo de interpretação da fonte histórica, foi antecedido por uma longa etapa de trata-mento um tanto quanto cansativa, todavia prazerosa. A segunda questão gira em torno do conhecimento da legislação inscrita no contexto do crime em estudo: outra demanda, posto que seja necessária minuciosa investigação sobre as leis criminais que regeram os anos de 1930, bem distante do chão histórico onde está acontecendo a escrituração de nossa pesquisa. E isso exige uma investigação interface, entre os domínios da História e do Direito. Fase que está em processo de desenvolvimento, portanto.

Quando o homicídio ocorreu, a cidade era bem pequena. Talvez com aproximadamente cinco mil habitantes. Como afirmam os moradores: “Parintins na década de 30 era pouquinha gente” (DRAY, 2017 – informação oral). Isso facilitava a rapidez das notícias entre os moradores, principalmente àquelas rela-cionadas aos fatos insólitos, como o homicídio tão peculiar como o que iremos averiguar. Ao leitor apresentamos de início nosso argumento: esse crime talvez tenha sido gestado bem antes do dia que ele aconteceu. Dizendo corretamente, foi planejado por três personagens históricos representados pela documentação oficial e, quase que unanimemente pela memória social da cidade, como sujeitos cruéis, “por causa da perversidade deles, eles mataram uma família de japone-ses aqui no Uaicurapa5. Mataram com machado” (Idem). Trata-se dos irmãos Raimundo Barrozo Dias e Sebastião Barrozo Dias, e do pai: Antônio Procópio. Esse crime foi realizado no centro da cidade, precisamente no Fórum de Justiça, anexo à Prefeitura Municipal, naquela conjuntura. Como afirma um de nossos entrevistados:

4 Entretanto, no mês de maio de 2017 nos foi posta a condição de encerramos a nossa pesquisa no referido arquivo, pois os documentos foram direcionados à capital do Estado do Amazonas, sob a justificativa de que iriam passar por processo de tratamento para digitalização. 5 Comunidade localizada próximo ao rio homônimo, a qual faz parte do município de Parintins. Desde os anos de 1930 ocorreu a concentração de japoneses, imigrantes vindos para o Amazonas para a prática de atividades agrícolas, essencialmente, a produção da fibra de juta, usadas na fabricação de sacas, demandadas pela exportação do café.

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Adiante do Banco da Amazônia tinha uma cadeia velha que o nome era Santa Chiquinha. A Casa de Justiça na época era atrás da Prefeitura. E aí o Sebastião com o Raimundo resolveram a fugir e matarem o juiz de direito porque ainda não tinham dado a sentença e eles ainda estavam lá, presos. Aí foram lá... (Idem).

Deste modo, tanto documentação oficial como a não oficial compõe os indícios sobre o crime que chocou os habitantes dessa cidade amazônica.6 E, como todo crime, o que iremos verificar também assume peculiaridades, “cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepções” (FAUSTO, 2001, p. 19). Assim, esse ho-micídio mantem conexão com a história e o cotidiano da cidade, por isso, adiante esboçamos uma breve digressão sobre a trajetória histórica da urbe onde ocorreu o crime. Segundo historiadores diletantes, durante o período colonial e imperial, Parintins ganhou algumas denominações, isto é, Tupinambarana (1796), Villa Nova da Rainha (1803), novamente Tupinambarana (1832), Villa Bella da Imperatriz (1852) e, finalmente Parintins. (BITTENCOURT, 2001). É provável que os primeiros grupos humanos que habitaram esse lugar tenham sido os Aratu, Apocuitara, Yara, Goidui, Curió (CERQUA, 2009). Assim, a presença constante de etnias in-dígenas, obviamente, ocorreu devido a diversos processos migratórios. Tupinam-barana, inclusive, se refere aos Parintintin, etnicamente ligados aos Tupinambá, habitantes do litoral no século XVI, quando da chegada dos europeus. Os Parin-tintin, indígenas conhecidos por sua peculiaridade arredia, segundo as referências consultadas e indicadas linhas acima, quando chegaram à localidade que depois se tornaria a cidade de Parintins, provocaram a saída das outras etnias. A etnia Parintintin, por volta dos séculos XVI e XVII integrava às levas de indígenas que migraram do litoral, a partir dos choques com os colonizadores, em busca da terra sem mal – lugar propalado pelos xamãs caraíbas como uma espécie de paraíso terrestre, conforme o conjunto de crenças dos Tupinambá (FAUSTO, 1992; VAINFAS, 1995). Talvez, pela presença marcante dos Parintintin, de acordo com registros oficiais sobre a colonização portuguesa na região, José Pedro Cordovil, militar designado pela rainha d. Maria I, a louca, foi quem denominou a sesmaria, naquele contexto sobre sua gestão, de Tupinambarana, quiçá em alusão aos ín-dios Parintintin, herdeiros dos Tupiambá (REIS, 1967; BITTENCOURT, 2001).

6 A cidade de Parintins está localizada no extremo leste do Amazonas, cerca de 369 quilômetros da capital Manaus. Sua população foi estimada em 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 112 716 habitantes, sendo o segundo município mais populoso do estado do Amazonas. Sua área é de 5 952 km², representando 0,3789% do estado do Amazonas, 0,1545% da região Norte brasileira e 0,0701% do território brasileiro Desse total 12,4235 km² estão em perímetro urbano.

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Na atual conjuntura a antiga “Ilha Tupinambarana”7 ganhou ares de cidade cosmopolita, pelo menos no mês de junho, quando é realizado o já difun-dido Festival Folclórico de Parintins. Evento marcado por sua complexidade artística, contudo, iniciado a partir de uma festa de promessa. Se considerarmos as análises antropológicas já feitas sobre a referida festa, o auto do boi representa a estrutura dessa festa que inicia popular, herdeira da tradição cultural hibrida onde estão presentes indícios da cultura europeia, africana e indígena e que ao longo dos anos sofreu o processo de transculturação e, por extensão, ressignificação. Por isso, o que antes era uma brincadeira de rua, com o tempo se tornou uma festa inscrita no calendário do turismo internacional. Poderíamos afirmar que antes do boom desse Festival a cidade mantinha peculiaridades bem diferentes dessa que abarca a primeira década do século XXI. Veja, pessoa que ler, adiante uma gravura que representa a cidade no contexto do século XIX.

Imagem 1 – vista da cidade de Parintins desde o rio AmazonasFonte – MARCOY, Paul (2001, p. 210).

Na gravura, que usamos como fonte, inscreve-se a representação de

um lugar sem tantas complexidades. Isso pode ser considerado quando obser-vamos os aspectos geofísicos, socioculturais, os transportes fluviais (à vela e a remo), a disposição e a arquitetura das casas. Porém, como frisamos perpassadas as temporalidades, inúmeras transformações ocorreram, inclusive, os índices de

7 A cidade de Parintins é, de fato, uma ilha que compõe um arquipélago localizado no Baixo rio Amazonas. Ilha que já foi, inclusive, objeto de diversos trabalhos científicos e não científicos. Considerada uma “cidade encantada” pelo conjunto de crenças que se espraia, pelo menos, desde o século o século XVII é palco para estudos, históricos, antropológicos, assim como, para a literatura de ficção como, por exemplo, a mais recente novela Órfãos do Eldorado (2008), do escritor amazonense, mundialmente conhecido, Milton Hatoum.

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criminalidade aumentaram, dentre estes, os homicídios. Daí a indagação: como estava a cidade de Parintins no bojo dos anos de 1930, pois o crime que iremos historicizar ocorreu em 1938? A resolução da pertinente problematização não é fácil de resolver, visto que a história recente de Parintins ainda está se construin-do. Isso nos remete a reflexão sobre a natureza de nossa pesquisa, o que faremos nas páginas que seguem.

Imagem 2 - Prédio da Prefeitura Municipal de Parintins, 1939 – acervo particular de Arcângelo da Silva Ferreira. [fotografo desconhecido até essa fase da pesquisa].

A maioria dos estudos sobre a cidade de Parintins apresenta uma bi-furcação no que tange a manipulação das fontes. Ora usa, por vezes sem os cuidados interpretativos, os memorialistas e historiadores diletantes. Ora está pautada em escassos vestígios escritos e iconográficos, privilegiando, assim em demasia as fontes orais. Isto, inclusive, mobilizou nosso projeto original e, por extensão, esta pesquisa que estamos delineando, ainda de forma incipiente.8 A carência de fontes nos remete à outra digressão necessária para situarmos o leitor no que diz respeito aos procedimentos metodológico que estão norteando a pes-quisa. Aderimos, portanto, mesmo que de forma elementar ao método indiciário. Por isso, lançamos mão de algumas conjecturas.

Buscando isto, verificaremos na documentação a ação de sujeitos con-denados pelo crime de homicídio, apresentados para o leitor linhas acima. Obvia-mente, não conseguimos responder a todas as perguntas que fizemos ao nosso corpus de análise. Contudo, a ênfase aqui é considerar, com Bakhtin (2008), na 8 Contudo os pesquisadores do curso de História do Centro de Estudos Superiores de Parintins da Universidade do Estado do Amazonas, ao longo de uma década, vêm construindo condições de possibilidade para a produção de saber histórico cada vez mais acurado.

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polifonia da documentação, o projeto dos sujeitos envolvidos na ação homicida, portanto, representados como marginais pela ordem de valores vigentes. Desta feita, mesmo que de forma incipiente – como estamos repetindo – pretendemos delinear uma história desde baixo e,

acima de tudo, explorar as experiências históricas daqueles homens e mu-lheres, cuja existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem na principal corrente da história. (SHARPE, 1992, p. 40).

Feita, a nosso ver, a necessária digressão, vamos, adiante, procurar in-terpretar a documentação para, assim, traçar um esboço da história em questão|:

Quase dezesseis horas daquela tarde de calor do dia vinte e três de agosto de 1938, quando os irmãos Procópio colocaram seu plano de fuga em prática9. Um deles Raimundo Barrozo Dias vai até a porta principal da cadeia e convida o soldado Agostinho de Freitas a se dirigir até os fundos da grilheta, no quintal, onde provavelmente os presos tomavam sol. Disse ao soldado que tinha algo a lhe revelar. Ao chegar aos fundos do terreno, Raimundo Dias levou o soldado para debaixo de um cajueiro quando pegou um rifle, escondido no chão, entre as folhas caídas da árvore [aqui residem duas incógnitas: como Raimundo teria conseguido a referida arma? Por que o soldado acompanhou o prisioneiro sozinho, visto que, pressupõe-se determinada relação de perigo? – ainda não resolvidas]. Com o rifle em suas mãos apontou para o soldado, pedindo o sabre que este carregava na cintura. Depois disse para o cadete correr para o lado da cadeia, do contrário Raimundo iria alvejá-lo de balas. Segundo depoimentos de moradores da cidade de Parintins, os irmãos prisioneiros atingiram a cabeça do soldado com pauladas deixando-o desacordado. Depois disso, Sebastião Barrozo Dias foi atrás de outra arma de fogo, que ficava guardada no Mercado Público da cidade. Quando recorremos às fontes narrativas obtemos o seguinte enredo:

[...], Sebastião foi lá no mercado atrás de um rifle que tinha lá. Mas quando chegou lá no, no mercado, que ele subiu lá onde era a chefia do mercado, que ele apanhou o rifle, mas o rifle estava tão enferrujado que não manejava a alavanca, aí ele jogou o rifle e ele vinha saindo. Tinha um funcionário do mercado que se chamava Romualdo, um pretão, Romualdão. Aí agarrou ele e ele disse: “seu Romualdo me deixe, por favor, que eu não tenho nada contra o senhor”. Aí ele disse: “não, você está preso”. Aí ele puxou de uma navalha

9 Conforme uma carta escrita por Raimundo Barrozo Dias, anexada ao Sumário de Culpa, podemos conjecturar que o homicídio do Juiz Salomão Zagury foi planejado pelos irmãos, com auxílio do pai dos mesmos, curiosamente registrado nos documentos como Antônio Procópio.

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e deu um golpe no ombro do Romualdo, imenso, um golpe monstro. ai o Romualdo largou e ele veio pro lado do irmão dele e disse: “olha o rifle não presta aí eu deixei por lá...” (FERREIRA, 2017 – informação oral).

Através desse relato podemos continuar conjecturando sobre a traje-

tória histórica do homicídio. A busca da arma no mercado público por Sebastião Barrozo é, de fato, um indício que nos induz a pensar que o crime foi discutido e arquitetado. Conforme o Sumário de Culpa, Sebastião foi ao encontro do irmão que, àquela hora já se direcionava para alcançar o Fórum de Justiça da cidade de Parintins. A documentação registra que ele chegou às dezesseis horas,

onde no momento, funcionava a audiência do juízo, a casa da justiça, esta-va funcionando normalmente, achando-se presente os doutores João Rebelo Corrêa e Marcos Salomão Zagury, respectivamente juiz e promotor público da comarca, bem assim o escrivão Raymundo Soares Almada e a declarante que exerce a função de escrevente juramentada; que em dado momento surge o indivíduo de nome Raymundo Barrozo Dias, preso de justiça empunhan-do um rifle e se expressando da seguinte forma: DOUTOR MARCOS SE VOCE É PROMOTOR É ATE HOJE, SEU JUDEU SEM VERGONHA; que incontinente o mesmo bandido alveja o citado magistrado, pegando o tiro na barriga; que o doutor Zagury em estado aflito, rodea o recinto da seção e vem se alojar junto a janela, [...]10, diz alguma palavra que a declarante e o escrivão Almada, por parte do criminoso Raymundo, foram alvejados, porém afim de se livrarem caíram por traz de uma tribuna; que o doutor João Corrêa, bastante enfurecido, vem e se aproxima do aludido, onde pede para cessar tal perturbação, quando também recebe um tiro de Raymundo caindo em seguida; que, quando o doutor marcos Zagury procurava sair da casa da jus-tiça em direção da prefeitura municipal, recebeu segundo tiro de Raymundo, o qual, sem qualquer resistência, caiu ao chão; que momentos após, o preso Raymundo Barroso Dias, na maior calma, sai pela porta da prefeitura levando a arma sinistra; dirigindo-se ao doutor Marcos Salomão Zagury, promotor de justiça da comarca, alvejando-o com um tiro de rifle no momento em que ele se levantava. Intervindo nessa ocasião o doutor João Rebelo Corrêa, juiz de direito, foi também atingido por um tiro, no ventre, que lhe desfechara o aludido denunciado, caindo por terra, gravemente ferido. Enquanto isso se passava, o Doutor Marcos Zagury dirigia-se a porta que dava para os fundos do prédio onde foi novamente atingido por um tiro desfechado pelo referido denunciado Raimundo, caindo ao solo vindo a falecer momentos após. (autos de exame cadavérico e de corpo de delito de fls. 7,13, e 44).

10 Reside nessa parte do texto um fragmento que, de certa forma, sentimos dificuldade no processo da sua decifração, devido às condições da documentação.

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Depois de alvejar o Juiz, em processo de fuga Raimundo Barrozo Dias entrou no prédio da Prefeitura Municipal, ao sair encontrou um guarda apressado rumo à delegacia para carregar um fuzil. Raimundo, então, atirou-o pelas costas. Nesse momento chega Sebastião Barrozo que pega a arma do guar-da, naquele instante desfalecido. Os irmãos Procópio se dirigiram à Cadeia Pú-blica. Na frente da porta de entrada deram dois tiros no ar, simbolicamente se despedindo da prisão. Após esse rito, foram na direção do Cemitério Público, desaparecendo. De acordo com a fonte oral aqui manipulada, quando fugiram da cidade de Parintins, se dirigiram para o Alto rio Solimões. Nesse sentido, forças oficiais organizaram uma forte perseguição contra os fugitivos. Foram captura-dos e levados para a capital do Amazonas, “onde deram sumiço neles” (DRAY, 2017 – informação oral).

Votemos ao fragmento retirado do Sumário de Culpa, posto que este entrecho instigue algumas indagações. Chamou-nos a atenção o fato de Raimun-do Dias, antes de mirar e detonar o gatilho do rifle ter enfatizado a condição étnico-religiosa e cultural do juiz, vítima do homicídio. Isso induz a conjecturar-mos sobre a relação entre o magistrado e os prisioneiros regulada, tudo indica, pelos estigmas da discriminação racial, herança do pensamento social apropriado pelas elites intelectuais brasileiras. Obviamente, o juiz Salomão Zagury estava inserido no rol dessas frações elitistas. O leitor atento percebe que, na polifonia do discurso (BAKHTIN, 2008) presente na fonte, é elucidado, em letras garrafais, a expressão proferida por Raimundo Dias. O propósito desta grafia exagerada é tendencioso: testemunhar a voraz oposição entre aquele que representa a lei e ordem dos valores vigentes e aquele, que lança mão da vingança, motivada pelo ódio insurreto e, portanto, insano. Pensamos que o entrecho usado adiante seja outro indício para argumentar acerca da peculiar tensão entre os sujeitos envol-vidos no homicídio.

Com a chegada do promotor Zagury, eles passaram a ter menos liberdade e a pouca que tinham era vigiada. Todos os dias, antes que eles fossem para o trabalho, sob a vigilância do soldado Mosquito, o promotor ia a cadeia e dava-lhes um sermão franciscano. Contavam na época, que o juiz [...], ameaçava os presos com surras e que andou batendo nas caras de alguns. (SAUNIER, 1990, p. 133).

Esse fragmento retirado do conto de um literato da cidade de Parin-tins sinaliza para alguns aspectos sobre a realidade social na qual se insere a su-

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posta relação de poder entre o juiz e seus prisioneiros e, por extensão, apresenta vestígios para se pensar sobre a condição dos sujeitos enclausurados na Cadeia Pública, naquela conjuntura. Sabendo-se que a literatura é uma fonte fecunda (FERREIRA, 2009), reside nesse entrecho, com efeito, a representação de uma alegoria da luta social, compreendendo-se, com isso, as ações políticas no cam-po das redes de relações, inscritas nos espaços macro e, essencialmente, micro (FOUCALT, 1989). Paralelo a isso, um traço de outra relação, aquela que liga o crime ao cotidiano da cidade: depreende-se que o conto corrobora o que se apre-senta também nas fontes orais: a possibilidade dos presos exercerem, decerto, uma limitada “liberdade vigiada”, principalmente para que pudessem trabalhar durante o dia, pois à noite voltavam às celas (FERREIRA, 2017 - informação oral). A perda brusca desta liberdade fomentou a arquitetura do plano de fuga, almejando o homicídio. Assim, a promotoria pública, responsável pelo julgamen-to do crime, se posiciona:

Pela leitura atenta dos inquéritos juntos, evidencia-se que os denuncia-dos além de terem agido com manifesta superioridade em armas, surpresa e ajuste, premeditaram os crimes em questão, tanto assim que antes da sua perpetração, por várias vezes estiveram em conferencia reservada, na cadeia pública desta cidade, com o seu pai Antônio Procópio Dias, que faleceu posteriormente em consequência de resistência oposta à força policial que se-guiu em perseguição aos mesmos denunciados, fato esse que oportunamente esta promotoria provará juntando a competente certidão do registro do óbito. Verifica-se ainda que dois desses crimes foram praticados em auditório de justiça, contra as principais autoridades desta comarca e por indivíduos que se achavam presos preventivamente por estarem sendo processados pelo crime de homicídio anteriormente praticado na pessoa de Marcos Soares Freire. E, porque, assim procedendo, tenham os denunciados Raimundo Barrozo Dias e Sebastião Barrozo dias, incorrido em sanção penal, - o primeiro como in-curso, duas vezes, no artigo 294, § 1º, dadas as circunstancias agravantes dos §§ 2º, 7º e 13º do artigo 39, e no artigo 304, § único, - e o segundo, no artigo 303, todos da “consolidação das leis penais da república”.

Eis aí, portanto, o testemunho histórico para corroborar o que esta-mos argumentando: o homicídio do juiz Marcos Salomão Zagury foi planejado. Contudo, procurando uma perspectiva que deixa precedentes para a elaboração de nossa narrativa histórica a contrapelo, na esteira de Walter Benjamin (1987), procuramos lançar mão da imaginação historiográfica e levantar a seguinte hi-pótese: Antônio Procópio e seus filhos Sebastião e Raimundo Barrozo Dias, ao contrário do que conclui a documentação agiram, também, motivados por sua

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condição de classe. Peculiaridade que talvez seja legitimada quando utilizamos novamente a memória social acerca do evento. Veja, pessoa que ler, como o nos-so entrevistado finaliza o enredo que no fragmento, linhas acima, manipulamos:

[...]. Aí eles saíram pela João Melo e foram embora e até hoje não se sabe pra onde eles foram. Ai a polícia veio atrás disso. Foram lá onde o velho, pai deles morava, pegaram o velho, amarraram num cacaueiro e fuzilaram o velho, me-tralharam o velho, a polícia! [palavras expressas com ênfase, emitindo sinais de estranhamento e desaprovação]. E isso e o que contavam na época. Eu não vi. Na época eu era ainda menino. Além disso, ainda tinham duas irmãs. [...] (FERREIRA, 2017 – informação oral).

A memória por tabela desse senhor de 91 anos de idade recupera por um lado a história de sujeitos criminosos, a qual nossa investigação necessita aprofundar. Qual o papel das mulheres presentes no âmbito familiar? Problema-tização pertinente, principalmente, porque na carta, a qual mencionamos linhas acima, deixada por Raimundo Barrozo, há sentimentos de amargura direciona-dos à relação que mantinha com a mãe, sinalizando para determinados traumas trazidos desde sua infância. Por outro lado, esta reminiscência revela também, certa permanência histórica: a violência das instituições criadas para garantir a segurança da sociedade. A lei, conforme as fontes que aqui interpretamos, agiu para manter a ordem dos valores vigentes. Arriscamos em afirmar que Raimundo e Sebastião Barrozo Dias, por causa da representativa figura do pai receberam a alcunha de irmãos Procópio, devido as suas peculiaridades étnico-social foram considerados aquém da ordem estabelecida para reger a vida cotidiana dos habi-tantes da cidade de Parintins.

Dessa forma, com Mühlen (2014), ao trabalhar com fontes judiciais e processos criminais não podemos olhar para estes, como se fossem um retrato em si da criminalidade. Visto que, por diversas vezes tais processos não nos dão a dimensão exata do que se passava na época, pois os processos criminais geral-mente relatam versões tendenciosas. Abarcam os problemas sofridos pela vítima. Assim, as razões pelas quais mobilizaram os acusados a cometer o crime são, quase sempre, deixadas em uma zona de sombra. Contudo, cabe ao historiador adentrar nessa bruma espessa (a documentação) na perspectiva de interpretar o porquê das tensões que desencadearam o homicídio, quais as peculiaridades que apresenta. Nossas conclusões, portanto, a despeito do Sumario de Culpa, aqui usa-do como fonte essencial, é a de que por meio de um processo é possível detectar

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diversas elementos da sociedade em que viviam os sujeitos históricos envolvidos, desde o delegado ou inspetor que iniciou o inquérito policial e que conduziu a investigação, os réus que são os irmãos, as testemunhas diretas e aquelas que guardaram na memória o evento fatídico e o juiz que irá fazer o parecer final sobre o processo criminal. É de suma importância, quando se manipula um pro-cesso judicial fazer a relação do mesmo com outras fontes para que estas possam dialogar entre si, pois foi a partir da análise dos depoimentos de cada sujeito histórico que foi possível perceber, mesmo que provisoriamente, como o sistema judiciário operava, pelo menos na cidade de Parintins.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASFonte escrita:

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Fontes orais:Benedito Castro Ferreira, 91 anos, aposentado. Entrevista feita por Maria do Per-pétuo Socorro da Silva Ferreira Stucchi, sobrinha do entrevistado, e gentilmente cedia aos pesquisadores, realizada no dia 20 de julho de 2017, em sua residência, na cidade de Parintins; a gravação foi feita em áudio.

Moisés Prestes Dray. Casado 87 anos, aposentado. Entrevista feita por Suely Mascarenha Galúcio, realizada no dia 12 de julho de 2017, em sua residência, na cidade de Parintins; a gravação foi feita em áudio.

Terezinha de Jesus da Silva Ferreira, 85 anos. Entrevista realizada em maio de 2017, por Arcângelo da Silva Ferreira, gravada em áudio, concedida em sua resi-dência, na cidade de Parintins.

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