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Jorge Amado - Terras Do Sem Fim

Date post: 21-Jul-2016
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Transcript

Durante a guerra pela posse da terra na região cacaueira do sul da Bahia, os irmãos Badaró enfrentam o coronel Horácio da Silveira. A luta pela subsistência se entrelaça com intrigas políticas, relações amorosas, crimes passionais. Dois romances improváveis se destacam em meio aos tiroteios e tocaias: o do jovem advogado Virgílio e Ester, esposa do coronel Horácio, amor condenado a um desfecho sangrento, e o de Don’Ana, a valente filha de Sinhô Badaró, e o “capitão” João Magalhães, um embusteiro que se faz passar por engenheiro militar.Publicado em 1943, quando Jorge Amado tinha trinta anos, Terras do sem-fim se tornaria um marco do seu “ciclo do cacau”, que inclui Gabriela, cravo e canela, Cacau e Tocaia Grande, entre outros.

NotadoAutor

Há dez anos passados escrevi um romance, pequeno e violento;sobreomesmotemadocacau,aoqualvoltohoje.Tinhaeuentãodezenoveanos e iniciava minha vida de romancista. Nesses dez anos escrevi seteromances,duasbiogra ias,algunspoemas,centenasdeartigos,dezenasdeconferências. Nesses dez anos lutei duramente, viajei, iz discursos, vivicommeupovoa suavida.Constatocom imensaalegriaqueuma linhadeunidade jamais quebrada liganão só toda aminhaobra realizadanessesdez anos como a vida que durante eles vivi: a esperança — mais queesperança, certeza,dequeodiadeamanhã serámelhoremaisbelo.Emfunção desse amanhã, cuja madrugada já se levanta sobre a noite daguerranoscamposdoesteeuropeu,tenhovividoeescrito.

Montevidéu,agostode1942.

Euvoucontarumahistória,uma,umahistóriadeespantar.

ROMANCEIROPOPULAR

Aterraadubadacomsangue

ONavio

1

O apito do navio era como um lamento e cortou o crepúsculo quecobriaacidade.OcapitãoJoãoMagalhãesencostou-senaamuradaeviuocasario de construção antiga, as torres das igrejas. Os telhados negros,ruas calçadas de pedras enormes. Seu olhar abrangia uma variedade detelhados, porém da rua só via um pequeno trecho onde não passavaninguém. Sem saber por que achou aquelas pedras, com que mãosescravas haviam calçado a rua, de uma beleza comovente. E achou belostambémos telhadosnegroseossinosdas igrejasquecomeçarama tocarchamando a cidade religiosa para a bênção. Novamente o navio apitourasgando o crepúsculo que envolvia a cidade da Bahia. João estendeu osbraços num adeus. Era como se estivesse se despedindo de uma bem-amada,deumamulhercaraaoseucoração.

Dentro do navio homens e mulheres conversavam. Fora, ao pé daescada,umsenhordepreto,chapéudefeltronamão,beijavaoslábiosdeuma rapariga pálida. Ao lado de João um sujeito gordo, encostado noespaldar de um banco, iniciava uma palestra com um caixeiro-viajanteportuguês.Outroconsultavaorelógioediziaparaquemoquisesseouvir:

—Faltamcincominutos...João pensou que o relógio do viajante estava atrasado, porque o

navio apitou uma última vez, os que icavam saltaram, os que iam sedebruçaramnaamurada.

O resfolegar das máquinas lhe deu de repente a certeza de quepartia e então se voltou com uma estranha comoção para a cidade, itounovamente os velhos telhados, o trecho de rua calçada com pedrascolossais. O sino repicava e João imaginou que aquele chamado era paraele,conviteparacorrernovamenteasruasdacidade,paradescerassuasladeiras, tomarmingaunessamadrugadanoTerreiro,bebercachaçacomplantasaromáticas, jogarrondanoscantosdoMercadopelamanhã, jogarsete-e-meio à tarde na casa de Violeta onde ia uma turma boa, jogarpôquer à noite no cabaré com aqueles ricaços que o respeitavam. E pelamadrugada sair novamente pelas ruas, a cabeleira desabada sobre osolhos, dizendopiadaspara asmulheresquepassavamdemãos cruzadassobreopeitoporcausadofrio,procurandoencontrarcompanheiros para

uma farrade violãona cidadebaixa.Depois eramos suspiros deVioleta,no quarto da rapariga a lua entrando pela janela aberta, o ventobalançando os dois coqueiros do quintal. Os suspiros de amor iam comovento,atéalua,quemsabe?

Os soluços damoça pálida desviaram seus pensamentos. Ela dizia,numavozdecertezainfalível:

—Nuncamais,Robério,nuncamais...O homem a beijava numa excitação cheia de dor e respondia com

dificuldade:—Paraomêseuvolto,meuamor,tragoosmeninos.Evocêvai icar

boa.Omédicomedisse...Avozdamoçaeradorida,Joãotevepena:—Euseiquemorro,Robério.Nãovejomaisvocênemosmeninos.

—Repetiubaixinho:—Nemosmeninos...erebentouemsoluços.O homem quis dizer algo, não pôde, balançou a cabeça, olhou a

escada, desviou os olhos para João como quem pedia socorro. A voz damulher era um soluço: "nunca mais lhe vejo...' O homem de pretocontinuavaaolhar João, estavasócoma suador. João icouummomentoindeciso,nãosabiamesmocomoiriaacudirohomemdepreto,depoisquisdescer a escadamas jámarinheiros a retiravam, pois o navio iniciava asmanobras. O homem só teve tempo de beijarmais uma vez os lábios damoça, um beijo ardente, prolongado e profundo como se ele tambémquisesseadquiriramoléstiaquecomiaopeitodaesposa.Pulounonavio.Masa suador foimaisaltaqueseuorgulhoeos soluçossaltaramdoseupeito,encheramonavioquepartia,eatéocoronelgordoparouaconversacomoviajante.Defora,alguémdiziaquaseaosgritos:

—Meescreva.Meescreva...Haviaoutravoz:—Nãovámeesquecer...

2

Raros lenços deram adeuses, só de uma face correram lágrimas,face jovem de mulher que soluçava arfando o peito. Não existia ainda onovo caisdaBahia e as águaspenetravamquasepela rua.Onavio foi seafastandodevagar,nasprimeirasmanobras.Amoçaquechoravasacudiaolençomasjánãodistinguiadentreosquerespondiamdebordoaqueleaquem dera seu coração. Logo depois o navio tomou velocidade, os que

estavamavê-lopartir, se retiraram.Umsenhorvelhopegounobraçodamoçaefoicomela,resmungandopalavrasdeconsolaçãoedeesperança.Onaviosedistanciava.

Grupos se confundiamnosprimeirosminutosda viagem.Mulherescomeçavamaseretirarparaoscamarotes,homensespiavamasrodasquecortavamomar,porquenaquele tempoosnaviosque iamdeBahiaparaIlhéustinhamrodascomoseemvezdeiremvencerograndemaroceanoondecampeiaoventosultivessemapenasquenavegarnumriodeáguasmansas.

OventosoproumaisforteetrouxeparaanoitedaBahiafragmentosdas conversas de bordo, palavras que foram pronunciadas em tommaisforte:terras,dinheiro,cacauemorte.

3

As casas desapareciam. João rodou o anel no dedo, querendodesviaravistadohomemdepretoquelimpavaosolhosequedizia,comoumaexplicaçãodetodaacena:

—Tátísica,coitadinha.Omédiconãodeuesperanças...João olhou o mar de um verde-escuro e só então se lembrou dos

motivos por que fugia assim de cidade. O anel de engenheiro estavaperfeitonoseudedoepareciaatéfeito

propositadamenteparaele.Murmuroudesiparasi:—Nemquefossedeencomenda.Riu,serecordandodoengenheiro.Umpato.Nuncavirapatotãogrande.Aquele,depôquernãoentendianada,deixara

mesmotudoquetinha,atéoanel.tambémnaquelanoite,faziaumasemana,Joãolimparaamesa,sódocoronelJuvênciolevaraumcontoequinhentos.Queculpatinhaele?Estavamuitobemdoseu,estiradoseminunacamadaVioleta,quecantavacomsuavozdelicadaeenfiavaosdedosnosseuscabelos,quandoomeninodoTabarisapareceudizendoquejátinhacorridoacidadetodaatrásdele.Rodolfosemprelhearranjavaumabanquinha.Quandoumamesanãoestavacompleta,eleperguntavaaosparceiros:

— Os senhores conhecem o Capitão João Magalhães? Um capitãoreformado?

Sempre havia um que conhecia, que já tinha jogado com ele. Osoutrosperguntavam:

—Nãoérato,não?Rodolfobancavaindignação:—OCapitão jogasério. Jogabem,nãosenegaaverdade.Maspara

umsujeitojogarsérioéprecisoquejoguecomooCapitão.Mentiacomacaramaiscínicadessemundoeaindacompletava:—UmamesasemoCapitãonãotemgraça...Parapassaressacantada,Rodolfotinhaasuacomissãoesabiaque

mesa onde João Magalhães estava era mesa onde a bebida corria e obaratodacasaerapesado.MandavaomeninoatrásdeJoão,preparavaosbaralhos.

Foraassimnaquelanoite.Joãoestavamole-mole,osdedosdeVioletanosseuscabelos,quaseadormecendoaosomdasuavoz,quandoogarotoapareceu.Sóhouvemesmotempodebotararoupaenuminstanteestavaaboletado na sala dos fundos do cassino. Do Coronel Juvêncio levou umconto e quinhentos e do engenheiro levou tudo que ele tinha no bolso,levouatéoaneldeformaturaqueorapazapostounahoraqueseviucomumfourdedamasnamão,mesmonumahoraemqueJoãoMagalhãesderaascartas.Perdeu,porqueofourdoCapitãoJoãoMagalhãeseradereis.Sóo outro parceiro, um comerciante da cidade baixa, tivera lucro também;duzentosepoucosmil-réis.Emmesaemque João jogasse,outroparceiroganhava sempre, era da sua técnica. E como o Capitão tinha um gênioesquisito(diziamosíntimos),escolhiaoganhadorpelacordosolhos,olhosque mais se aproximassem de uns que haviam icado no Rio, olhando aiguradopro issionalcomdesprezoenojo.Erademanhãquandotodosselevantaram e Rodolfo avaliou o anel emmais de um conto. O engenheirojogara por trezentos e vinte no four de damas. João ri no tombadilho donavio."Sógentebestaacreditanasdamas..."

Tinha ido para a casa de Violeta bem descansado, pensando nasatisfação que a rapariga teria no dia seguinte quando ele lhe levasseaquele vestido de seda azul que ela vira numa vitrine. Pois não é que oengenheiro,emvezdeperdercalado,nooutrodiasebotouparaapolícia,contou uma história atrapalhada, disse cobras e lagartos de João,perguntoudequeexércitoeraasuapatentedeCapitão,eapolíciasónãoo chamou para uma conversa porque não o encontrou? Rodolfo oesconderabemescondido,AgripinoDocadissera-lhemaravilhasdeIlhéuse do cacau e agora ele estava naquele navio, depois de ter passado oitomeses na Bahia, a caminho de Ilhéus, onde surgira o cacau e com elefortunasrápidas,oaneldeengenheironodedo,umbaralhonum

bolso,umcentodecartõesnooutro:

CAPITÃODR.JOÃOMAGALHÃESENGENHEIROMILITAR.

Aos poucos, a tristeza de abandonar a cidade que tanto amaranaquelesoitomeses,foidesaparecendo.Joãocomeçouaseinteressarpelapaisagem,árvoresvistasao longe, casasque icavampequeninas.Onavioapitou e a água respingou o chapéu de João. Ele o tirou, passou o lençoperfumadopelapalhinhadacopaeocolocousobobraço.

Depois alisou o cabelo revolto, propositadamente descuidado,fazendoondas.Erelanceouumolharportodootombadilho, indodesdeohomem de preto que tinha a vista presa ao cais que já não se via, até ogordocoronelquenarravaaocaixeiro-viajanteatosdebravuranasterrassemibárbaras de São Jorge dos Ilhéus. João rodava o anel no dedo,estudavaa isionomiadosoutrosviajantes.Seráqueencontrariaparceiropara umamesinha? É verdade que levava uma bolada regular no bolso,masdinheironuncafezmalaninguém.Assobioudevagarinho.

No navio a conversa começava a se generalizar. João Magalhãessentiaquenãotardariaaserenvolvidopelaconversaepensavaemcomoconseguirparceirosabordo.Tirouumcigarro,bateucomelenaamurada,riscouumfósforo.Depoisseinteressounovamentepelapaisagem,porqueagoraonavioiabempróximoáterranasaídadabarra.Nafrentedeumacasatristedebarro,doisgarotosnus,deenormesbarrigas,gritavamparao navio que passava. Do claro de outra casa,meio escondida pela janela,uma moça, de rosto bonito, acenou um adeus. João calculou que aqueleadeusdevia ser ouparao foguista oupara toda a genteque ia nonavio.Mas assim mesmo respondeu, estendendo sua mão magra num gestocordial.

Ocoronelgordoespantavaocaixeiro-viajantenarrandoumbarulhoquetiveranumapensãodemulheresnaBahia.Unsmalandros izeram-sedebesta,tinhamqueridocorreremcimadeleporcausadeumamulatinha.Elepuxouoparabélumebastougritar:

— Vem com coragem que eu sou é de Ilhéus... — para que osmalandrosrecuassemacovardados.

Oviajanteseassombravacomacoragemdocoronel.—Osenhorfoimachopraburro!OCapitãoJoãoMagalhãesfoiseaproximandovagarosamente.

4

Margotsaiudeumcamaroteeatravessouonaviodepontaapontarodando a sombrinha de muito pano, arrastando a cauda do vestido demuito roda, se deixando admirar pelos caixeiros-viajantes que diziampiadas;pelos fazendeiros,quearregalavamosolhos;atépelopessoalqueia na terceira em busca de trabalho nas terras do sul da Bahia. Margotatravessouosgrupos,pedindolicençacomsuavozquasesussurradaeemcada grupo se fazia silêncio paramelhor a verem e a desejarem. Porém,mal ela passava, as conversas recaíam no tema de sempre: cacau. Oscaixeiros-viajantesolhavamMargotpassandoentreos fazendeiroseriam.Bem sabiam que ela ia em busca de dinheiro, ganhar facilmente o quemuitocustaraaqueleshomensrudes.Sónãoriram

quandoJucaBadarósaiudaescuridão,tomouMargotporumbraçoe a conduziu para a amurada de onde viam Itaparica que desaparecia, ocasariolongínquodacidadedaBahia,anoitequechegavarapidamente,arodadonaviolevantandoágua.

—Vosmicêdeondevem?—JucaBadarócorriaocorpodamulhercomosolhosmiúdos,sedemorandonaspernas,nosseios.LevouamãoàsnádegasdeMargoteasbeliscouparasentiradurezadacarne.

Margottomouumaatitudedeofensa:—Nãolheconheço...Queliberdadeéessa?JucaBadaróa seguroupordebaixodoqueixo, levantousuacabeça

decachosloirosedissecomvozpausada,osolhospenetrandonosdela:—Senuncaouviu,vosmicêvaiouvir falarmuitoemJucaBadaró.E

ique sabendo que 'ta desde agora por minha conta. Veja como secomportaporqueeunãosouhomemdeduasconversas.

Largou bruscamente o queixo de Margot, voltou-lhe as costas epartiu para a popa do navio, onde os passageiros de terceira seaglomeravamedeondevinhamsonsmelodiososdeharmônicaeviolão.

5

Aluaagoracomeçavaasubirparaoaltodocéu,umaluaenormeevermelha que deixava na negrura do mar um rastro sanguinolento.António Vítor encolheu mais as pernas compridas, descansou o queixosobreos joelhos.Atoadadacançãoqueosertanejocantavapertodeleseperdia na imensidão do mar, enchia de saudades o coração de AntónioVítor. Recordava as noites de lua de sua cidadezinha, noites em que oscandeeirosnãoeramacesos,nasquaiseleiacomtantosoutrosrapazes,e

comtantasmoçastambémpescardoaltodapontebanhadadeluar.Eramnoitesdehistóriaserisadas,apescariaeraapenaspretextoparaaquelasconversas, aqueles apertos de mão quando a lua se escondia sob umanuvem. Ivone estava sempre perto dele, era umamenina de quinze anosmasjáestavanafábrica,na iação.Eeraohomemdafamília,sustentandoamãe doente, os quatro irmãos pequenos, desde que o pai abalara umanoite, ninguém sabia para onde. Nunca mais dera notícia, Ivone caiu nafábrica, faziaparatodasaquelasbocas.Easconversasnaponteeramsuaúnica diversão. Descansava a cabeça de cabelos mulatos no ombro deAntónioedava-lheos lábiosgrossostodasasvezesquea luaseescondia.Ele plantavauma roçademilho commais dois irmãosnas imediações dacidade.Masdeixavatãopoucoetantaseramasnotíciasdefartotrabalhoefarto pagamento nas terras do sul, onde o cacau dava umdinheirão, queele um dia, igual ao pai de Ivone, igual a seu irmão mais velho, igual amilhares de outros, deixou a pequena cidade sergipana, embarcou emAracaju,dormiuduasnoitesnumapensãobaratadabeiradocaisdaBahiaeagoraestavanaterceiraclassedeumnaviozinhocomdestinoaIlhéus.Éum caboclo alto emagro, demúsculos salientes e grandesmãos calosas.Tem vinte anos e seu coração está cheio de saudade. Uma sensação queantes ele não conhecera invade seu peito. Virá da grande lua cor desangue? Virá da melodia triste que o sertanejo canta? Os homens emulheres espalhados no tombadilho conversam sobre as esperançasdessasterrasdosul.

—EumebotoparaTabocas...—dizumhomemquejánãoémuitomoço,debarbaralaecabeloencrespado.—Dizqueéumlugardefuturo.

—Masdizquetambémqueéumabrabeza.Queéumtaldematar?gentequeDeusmeperdoe...—falouumpequenininhodevozrouca.

—Jáouvicontaressaconversa...Masnãoacreditonemumtiquinho.Sefalamuitonomundo...

—SeráoqueDeusquiser...—agoraeraavozdeumamulherquetraziaacabeçacobertacomumxale.

— Eu vou é pra Ferradas... — anunciou um jovem. — Tenho umirmão por lá, tá bem. Tá com o coronel Horácio, um homem de dinheiro.Vou icarcomele.Játemlugarpramimtrabalhar.DepoisvoltoprabuscaraZilda.

—Tuanoiva?—perguntouamulher.—Minhamulher,tácomuma ilhinhadedoisanos,outronobucho.

Umalindezademenina.—Tunãovoltaénunca...— falouumvelhoenvoltonumacapa.—

Tunãovoltaénunca,queFerradaséocudomundo.Tusabemesmooqueéquetuvaisernasroças",ocoronelHorácio?Tuvaisertrabalhadoroutuvai ser jagunço.Homemque nãomata não tem valia pro coronel. Tu nãovoltaénunca.—eovelhocuspiucomraiva.

António Vítor ouve? as conversasmas amúsica que vem de outrogrupo,harmônicaeviolão,o arrastanovamenteparaapontedeEstânciaonde é belo o luar e a vida é tranquila. Ivone sempre lhe pedia que nãoviesse.Aroçademilhobastariaparaelesdois,paraqueessaânsiadevirbuscardinheironumlugardoqualcontavamtantacoisaruim?Nasnoitesdelua,quandoasestrelasenchiamocéu,tantasetãobelasqueofuscavama vista, os pés dentro da água do rio, ele planejava a vinda para estasterras de Ilhéus. Homens escreviam, homens que haviam ido antes, econtavam que o dinheiro era fácil, que era fácil também conseguir umpedaço grande de terra e plantá-la com uma árvore que se chamavacacaueiroedavafrutoscordeouroquevaliammaisqueopróprioouro.Aterra estava na frente dos que chegavam e não era ainda de ninguém.Seria de todo aquele que tivesse coragem de entrarmata adentro, fazerqueimadas,plantarcacau,milhoemandioca,comeralgunsanos farinhaecaça, até que o cacau começasse a fruti icar. Então era a riqueza tantodinheiro que um homem não podia gastar, casa na cidade, charutos,botinas rangedeiras. De quando em vez também a notícia de que ummorreradeumtirooudamordidadeumacobra,apunhaladonopovoadoou baleado na tocaia. Mas que era a vida diante de tanta fartura? NacidadedeAntónioVítoravidaerapobreesempossibilidades.Oshomensviajavam quase todos, raros voltavam. Mas esses que voltavam — evoltavam sempre numa rápida visita — vinham irreconhecíveis após osanos de ausência. Porque vinham ricos, de anelões nos dedos, relógio deouro,pérolasnasgravatas.Ejogavamodinheirofora,empresentescarosparaosparentes,dádivasparaas igrejaseparaossantospadroeiros,emapadrinhamento das festas de im de ano: "Voltou rico", era só o que seouvia dizer na cidade. Cada homem daqueles que chegava e logo partia,porquenãomaisseacostumavacomapacatezdaquelavida,eramaisumconvite para Antonio Vítor. Só Ivone é que ainda o prendia ali. Os lábiosdela,ocalordosseusseios,osrogosqueelafaziacomavozecomosolhos.Mas um dia rompeu com tudo aquilo e partiu. Ivone soluçara na ponteondesehaviamdespedido.eleprometera:

—Enriconumano,venholhebuscar.Agoraa luadeEstânciaestásobreonaviomasnão temaquelacor

amarelacomaqualcobriaosnamoradosnaponte.Elaestávermelha,tinta

desangueeumvelhodizqueninguémvoltadestasterrasdocacau.António Vítor sente uma sensação desconhecida. Será medo? Será

saudade?Elemesmonãosabeoqueseja.Aquelaluarecorda-lheIvonedelábios suplicandoque elenãoparta, deolhos cheiosde lágrimasnanoitedadespedida.Nãohavialuanaquelanoite,nãohavianinguémsobrea

ponte, pescando. Estava escuro e o riomurmurava embaixo, ela seencostounele,seucorpoquente,seurostomolhadodelágrimas.

—Tuvaimesmo?Ficouemsilencioumlongominuto,triste.—Tuvaienãovoltamais.—Juroquevolto.Elafezquenãocomacabeça,sedeitoudepoisnamargemdorioeo

chamou.Abriuocorpoparaelecomouma lorseabreparaosol.Edeixouque ele a possuísse, sem dizer uma palavra, sem soltar um lamento.Quando ele terminou, os olhos ainda esbugalhados pelo imprevisto daoferta, ela baixou o vestido de chita onde agora o seu sangue colorianovamenteas loresjádesbotadas,cobriuorostocomamãoedissecomavozentrecortada:

—Vocênão vai voltarmais, outro iamepegar umdia qualquer. Emelhorsermesmocomtu.Assimtuficasabendoquantoeugostodevocê.

—Juroquevolto...—Tunãovoltamais...EeleveioapesardogostodocorpodeIvoneoprenderali,desaber

quedeixaranelaum ilho.Diziaparasimesmoqueiafazerdinheiroparaelaeparaofilho,voltariacomumano.AterraerafácilemIlhéus,plantariaumaroçadecacau,colheriaos frutos,voltariapor Ivoneepelacriança.Opaidelanãovoltou,ninguémsabiamesmoondeeleestava.Umvelhoestádizendoqueninguémvoltadestasterras,nemmesmoosquetemmulheredois ilhos.Porqueessaharmônicanãopáradetocar,porqueessamúsicaétãotriste?Porqueévermelhacomosangueessaluasobreomar?

6

Acançãoétristecomoumpresságiodedesgraça.Oventoquecorresobreomaraarrastaconsigoeaespalhaemsonsmusicaisqueparecemnão terminar. Uma tristeza vem com a música, envolve os homens daterceira,tomacontadamulhergrávidaqueapertaobraçodeFilomeno.Ossons da harmônica acompanham a melodia que o jovem canta com uma

vozforte.AntónioVítorsefechamaisemsimesmo,dentrodeleasimagensdeEstânciaquieta,deIvoneseentregandosemumgemido,seconfundemcom novas imagens de uma terra ainda inconquistada, de barulhos comtirosemortes,dinheiro,maçosdenotas.Umhomemquevaisozinhoenãofala com ninguém, atravessa os grupos, vem se debruçar na amurada. Aluadeixaumrastrovermelhosobreomar,acançãorasgacorações.

“Meuamor,euvou-meemboraNuncamaiseuvouvoltar.”

Outras terras icam distantes, visões de outros mares e de outraspraias ou de um agreste sertão batido pela seca, outros homens icaram,muitosdosquevãonopequenonaviodeixaramumamor.Algunsvieramporessemesmoamor,buscarcomqueconquistarabem-amada,buscaroouroquecompraafelicidade.EsseouroquenascenasterrasdeIlhéus,daárvoredocacau.Umacançãodizque jamaisvoltarão,quenessasterrasamorteosesperaatrásdecadaárvore.Ea luaévermelhacomosangue,onaviobalançasobreaságuastranquilas.

Ovelhotevestecapaetrazaspernasnuas,ospésdescalços.Temosolhosduros,pitaumapontadecigarrodepalha.Alguém lhepede fogo,ovelhopuxaumabaforadaparaavivarabrasadocigarro.

—Obrigado,meutio.—Nãoporisso...—Parecequevaicairtemporal...— E tempo de vento sul... Tem vez que é uma disgrama, não tem

embarcaçãoquearrisista...Amulherseenvolveu:—TemporalteménoCeará...Pareceumfimdemundo...—Jáouvifalar—disseovelho.—Dizqueémesmo.Se juntaramaumgrupoque conversava em tornodehomensque

jogambaralho.Amulherquersaber.—VosmecêédeIlhéus?—TouemTabocasvaifazercincoanos.Soudosertão...—Equeveiofazerpraessasbandascomessaidade?— Não vê que primeiro veio meu ilho Joaquim... Se deu bem, fez

umarocinha,avelhamorreu,elemandoumebuscar...Ficou calado, agora parecia prestar muito atenção à música que o

vento levava para os lados da cidade escondida na noite. Os outrosestavamesperando.Massóorumordasconversasnaprimeiraclasseeatoadaqueonegrocantavaquebravamosilencio.

“Nuncamaiseuvouvoltar.

Nessasterrasvoumorrer.”Avozcantavaeoshomens seencolhiamcom frio.Oventopassava

rápido, vinhado sol e era violento.Onavio jogava sobre as ondasmuitosdaqueles homens nunca tinham entrado num navio. Tinham atravessadoasásperascatingasdosertãonumtremquearrastavavagõesevagõesdeimigrantes.Ovelhoolhava-oscomseusolhosduros.

—Tãovendoessamodinha?"Nessasterrasvoumorrer".Táaíumacoisaverdadeira...Quemvaipraessas terrasnuncamaisvolta...Temumacoisaqueparecefeitiço,éfeitovisgodejaca.Seguraagente...

—Temdinheiro fácil,nãoé?—o jovemseatirouparaa frentedeolhosacesos.

—Dinheiro...Táaíoqueprendeagente.Agente chega, faz algumdinheiro, que dinheiro há mesmo, Deus seja servido. Mas é dinheirodesgraçado,umdinheiroquepareceque temmaldição.Nãoduranamãodeninguém,agentefazumaroça.

Amúsicavinhaemsurdina,os jogadoreshaviamparadoa "ronda".Ovelho itouojovembemdentrodosolhos,depoisrelanceouavistapelosdemaishomensemulheresqueestavampresosàssuaspalavras:

—Jáouviramfalarem`caxixe"?—Dizqueéumnegóciodedoutorquetomaaterrado?outros.—Vemumadvogadocomumcoronel,fazcaxixe,agentenemsabe

ondevaipararospésdecacauqueagenteplantou.Espiouemvoltanovamente,mostrouasgrandesmãoscalosas:— Tão vendo? Plantei muito cacaueiro com essas mãos que tão

aqui...Eue Joaquimenchemosmataematadecacau,plantamosmaisquemesmoumbandodejuparáqueébichoqueplantacacau...Queadiantou?–perguntavaatodos,aosjogadores,àmulhergrávida,aojovem.

Ficounovamenteouvindoamúsica,fitoulongamentealua:—Dizquea luaquandotáassimcordesanguequeédesgraçana

estradanessanoite.TavaassimquandomataramJoaquim.Nãotinhamporque,mataramsódemalvadez.

—Porquemataramele?—perguntouamulher.— O coronel Horácio fez um caxixe mais Dr. Rui, tomaram a roça

quenóshaviaplantado.Que a terra eradele, que Joaquimnão eradono.Veio com os jagunços mais uma certidão do cartório. Botou a gente prafora, icaramaté como cacauque já tava secando,prontinhopravender.Joaquim era bom no trabalho, não tinha mesmo medo do pesado. Ficouacabadocomatomadadaroça,deudebeber.Eumavez, jábebido,disseque iasevingar, ia liquidarcomocoronel.Tavaumcabradocoronelpor

perto,ouviu, foi contar.Mandaramtocaiar Joaquim,mataramelenaoutranoite,quandovinhapraFerradas.

O velho silenciou, os homens não ?perguntaram mais nada. Osjogadores voltaram ao seu jogo, o que estava com o baralho botou duascartasnochão,osoutrosapostaram.Amúsicamorriaaospoucosnanoite.Oventoaumentavademinutoaminuto.Ovelhovoltouafalar:

— Joaquim era um homem de paz, ele não ia matar ninguém. Ocoronel Horácio bem sabia, os cabras também sabia. Ele disse aquiloporque tava bêbedo, não iamatar ninguém. Era um homem do trabalho,queriaeraganharcomqueviver...Sentiuquetomassemaroça,issosentiu.Massófalouporquetinhabebido.Nãoerahomempramatar.Liquidaramelepelascostas...

—Forampresos?Ovelhoolhoucomraiva:—Namesmanoitequemataramele, tavambebendonumavenda,

contandocomoocasotinhasedado.Fez-sesilencionogrupo,sóumjogadorfalou:?—Sete...Mas o .outro nem recolheu o dinheiro, absorto na igura do velho

queagoraestavadobradoepareciaesquecidodomundo, sozinhonasuadesgraça.Amulhergrávidaperguntoubaixinho:

—Evosmecê?—MetocarampraBahia,queeunãopodia icarmaislá...Masagora

touvoltando...O velho se alterou de súbito, seus olhos adquiriram novamente

aquelebrilhoduroquehaviamperdidono imdasuanarração,faloucomvozdecidida:

—Agoravoupranãovoltarmais...ninguémagoravaimebotarprafora... É o destino que faz a gente, dona... Ninguémnasce ruim ou bom, odestinoéqueentortaagente.

—Mas...—eamulhercalou.—Podefalarsemsusto.—Comoéquevosmecêvaiviver?... Jánãotáemidadedepegarno

pesado...— Quando a gente tem uma tenção, dona, a gente sempre se

arranja...Eeutenhoumatenção...Meu ilhoeraumhomembom,elenãoiamatarocoronel.Eutambémnuncasujeiessasmãos—mostravaasmãoscalosasdotrabalhonaterra—comsangue.Masmatarammeufilho...

—Vosmecê?—fezamulhercomespanto.

Ovelhovirouascostasesaiudevagar.—Matamesmo...—comentouumhomemmagro.A música cresceu mais uma vez dentro da noite, a lua subia

rapidamente para o céu. O que estava com o baralho balançou a cabeçaapoiando o comentário do homem magro, voltou a dar cartas. A mulhergrávidaapertouobraçodeFilomeno,faloubaixinho:

—Toucommedo...Aharmônicacessousuamúsica.Oluarsederramavaemsangue.

7

José da Ribeira dominava outro grupo. Contava casos da terra docacau, histórias emais histórias. Cuspia a todomomento, estava feliz empoder falar,dizerparaaquelagenteoquesabia.Ouviam-noatentamente,comoseouveaumapessoaquetemoqueensinar.

—Quasequeeunãovinha—dizumamulherbaixaqueamamentaumacriança—porquemecontaramquedavauma febreporessasboasdasquemataatémacaco.

José riu, os outros se voltaram para ele. ele tomou uma voz deconhecedor:

—Nãocontarammentira,não,siádona.Jávitantohomemcaircomessafebre,homemfortequenemcavalo.Comtrêsnoitesdefebre,forçadohomemeraumdia.

—Nãoéataldabexiga?—Bexiga temmuito também,masnãoédelaque tou falando.Tem

bexiga de toda espécie, mas a que tem mais é a negra que é a pior detodas. Nunca vimacho escapar da bexiga negra.Mas não é dela que toufalando. Tou falando é da febre, ninguém sabe que febre é, que nome adesgraçadatem.Vemsemocujoesperar,liquidaelenumfechardeolhos.

—T'esconjuro...—fezoutramulher.Josécuspiu,relembrou:— Apareceu um doutor, tinha tirado diploma de médico, era

mocinho, nem barba possuía ainda, uma lindeza de rapaz. Diz que iaacabarcomafebreláemFerradas.Afebreacabouantescomele,acaboutodaalindeza;foiodefuntomaisfeioqueeujávi.Maisfeiomesmoqueoinado Garangau que mataram nos Macacos a faca e cortaram todo earrancaramosolhos,alínguaeapeledopeito.

— Pra que izeram isso com o pobrezinho? – perguntou amulher

queamamentava.—Pobrezinho?—JosédaRibeirariuesuarisadaeraparadentro,

parecia que ele estava se divertindo enormemente— Pobrezinho? Se jáapareceujagunçoruimpelasbandasdosulfoiVicenteGarangau.Numdiasóele liquidousetehomensde Juparana...CabramalvadocomoDeusnãofezdois...

Ogrupoestavaimpressionadomasumcearensetroçou:—Seteéacontadomentiroso,seuJosé.Josériudenovo,pitouseucigarro,nãoseaborreceu:—Tuécriança,queéque tu jáviunessavida?Tumevêaqui, tou

commais de cinquenta no costado, já andei muita terra, tenho dez anosdentrodessasmatas. Já fui soldadodoexército, jávimuitadesgraça.Masnão temnada nomundoque chegue perto das desgraceiras daqui. Tu jáviufalaremtocaia?

— Já, sim— gritou outro homem.—Diz que um ica esperando ooutroatrásdeumpauparaatirarnodesinfeliz.

—Poisolhe.Temhomemdealmatãodanadaquesepostanatocaiaeapostadezmil-réismaisoamigopraverdequeladoo inadovaicair.Eoprimeiroquevemnaestradarecebechumboqueépraapostasedecidir.Tujáouviufalardisso?

Ocearenseestremece,umadasmulheresnãoqueracreditar:—Sópraganharumaaposta?JosédaRibeiracospe,explica:—Touaqui, jácorrimuitomundo, fui soldado,vi coisadearrepiar.

Como por essas bandas nunca vi nada... terra de homem macho, mastambém dinheiro é cama de gato. Se o cujo é bom no gatilho passa vidaregalada...

—Evosmecêoqueéquefazporlá?— Fui pra lá de sargento da polícia, pus uma rocinha que é bem

melhor que as dragonas, tou vivendo dela. Vim na Bahia agora arejar,comprarumascoisasquetavaprecisando.

—Etávoltandodeterceira,tio?—chasqueouocearense.Eleriunovamenteseurisoparadentro,confessou:—Asbrancas comeramodinheiro todo,meu ilho.Dentrodaquela

mata,onçaéqueémulherdagente...Demodoquequandoo cujovêumrabobranco,nacapital, icademiolovirado...Fiqueimaislimpoquepedraderio...

Mas ninguém comentou porque agora um homem baixo derebenque na mão e chapéu Chile, estava parado diante deles. José se

voltou,cumprimentouhumildemente:—Comovaivosmecê,seuJuca?—Comovai,ZédaRibeira?Comovaituaroça?—Toufora,vai fazer trintadias.Esteanovouderrubarmaismata,

assimDeusmeajude...JucaBadaróassentiucomacabeça,olhouogrupo:—Vocêconheceessagente,ZédaRibeira?—Touconhecendoagora,seuJuca.Porque,semallhepergunto?Juca em vez de responder andou mais para o meio dos homens,

perguntouaumdeles:—Vocêdeondevem?—DoCeará,patrão.DoCrato...—Eratropeiro?— Não, sinhô... Tinha uma plantaçãozinha... — e sem esperar a

pergunta:—Asecaacaboucomela.—Temfamíliaouésozinho?—Tenhomulhereumfilhopranascer...—Quertrabalharpramim?—Inhô,sim.E assim Juca Badaró foi contratando gente, o jogador que dava

cartas, um dos seus parceiros, o cearense, o jovem António Vítor queolhavaocéudemilestrelas.Muitoshomensseoferecerame JucaBadaróos recusou. Ele tinha uma grande experiência dos homens e sabiaconhecer facilmenteaquelesqueserviriamparaas suas fazendas,paraaconquista da mata, para o trabalho da terra e pra garantir a terracultivada.

8

O Capitão João Magalhães mandou descer vinho português. — Ocaixeiro-viajanteaceitou-Ocoroneldissequenão,O jogodonavioatacavaseuestômago:

— Tá um vento brabo... Se eu tomar vinho boto os burrinhosn'água...

—Cerveja,então?Umconhaque?O coronelnãoquerianada. JoãoMagalhães contava grandezas, sua

vidanoRio,capitãodoexércitomastambémhomemdenegócioserico.—Souproprietáriodemuitascasas...Deapólicestambém...

Rapidamenteestavainventandoahistóriadeumaherançarecebidadeumatiamilionáriaesem ilhos.Falavaempolíticoseminentesdaépoca,seus amigos— dizia -, gente que ele tuteava, com quem bebia e jogava.Deixaraoexército,sereformara,agoraandavaviajandooseupaís.Estavavindo desde o Rio Grande do Sul, pretendia ir até o Amazonas Antes deviajar no estrangeiro queria conhecer bem o Brasil, não era como essagentequepegaumdinheirinho,vailogogastarcomasfrancesasemParis...O coronel aprovava, achavamuito patriótico e quis saber se era verdadeque as "tais francesas" que existiamnoRio, se elas faziammesmo "tudo"ou se isso era conversa de gente descarada. Porque já tinham dito a eleque no Rio havia uma espécie de mulheres assim. João Magalhãescon irmou e se alongou em detalhes escabrosos, apoiado pelo caixeiro-viajante que também queria mostrar conhecimentos (já estivera no Rioumavezeessaviagemeraofatomais importantedasuavida).Ocoronelsedeliciavacomosdetalhes.

—Oqueéquemeconta,Capitão?Masissoéumaporcaria.O Capitão João Magalhães então carregava nas tintas. Mas não se

demoroumuitonessasdescrições, voltoua falarna sua fortuna, nas suasboasrelações.OcoronelnãoprecisavadenadanoRio.Dealgumempenhojuntoaalgumpolíticoimportante?Seprecisasseerasódizer.Eleestavaaliparaserviraosamigose, sebemtivesseconhecidoocoronel faziapouco,tinha simpatizado imensamente com ele, seria feliz de servi-lo. O coronelnãoprecisavadenadanoRiomas icoumuitoagradecidoecomoManecaDantas ia passando, pesadão e gorducho, a camisa suada e as mãospegajosas,eleochamouefezasapresentações:

— Aqui é o coronel Maneca Dantas, fazendeiro forte lá da zona...Dinheiroemcasadeleémesmoquemato...

JoãoMagalhãesselevantava,muitogentil:— Capitão João Magalhães, engenheiro militar para o servir.

Dobravaocantodeumdoscartões,entregavaaocoronelManeca.Depoisofereceuumacadeira,fezquenãoouviuocomentáriodocaixeiro-viajanteparaocoronelFerreirinha:

—Moçodistinto...—Deeducação...OcoronelManecaaceitavavinho.Enjoonãoiacomele:— Tou aqui é como se tivesse em minha cama lá na Auricídia.

Auricídiaéonomeládeminharocinha,Capitão.Sequiserpassarunsdiaslácomendocarneseca...

Ferreirinhariuescandalosamente:

— Carne seca... Capitão, na Auricídia, almoço é banquete, jantar éfesta de batizado. Dona Auricídia tem umas negras na cozinha que temmão de anjo... — e o coronel Ferreirinha passava a língua nos lábiosgulosamente, como se estivesse vendo os pratos.— Fazem um sarapatelqueéde

deixarumcristãovendooparaíso...Maneca Dantas sorria, inchado, com os elogios à sua cozinha. E

explicava:—Éoquese levadamundo,Capitão.Agentevivenumasbrenhas

danadas,derrubandomatapraplantarcacau,labutandocomcadajagunçodesgraçado,escapandodemordidadecobraedetirodetocaia,seagentenãocomerbem,oqueéquevai fazer?Lánão temesses luxosdacidade,teatro, pensão de mulher, cabaré, nada disso. É trabalho dia e noite,derrubarmataeplantarroça...

Ferreirinhaapoiava:—Otrabalhoéduro,sim.— Mas também o dinheiro é de fartura... — atalhou o caixeiro-

viajantelimpandooslábiossujasdevinho.ManecaDantassorriudenovo:—Queissoéverdade,émesmo.Aterraéboa,Capitão,pagaapena.

Dámuitocacauealavouraéboa,deixabomlucro.Dissoagentenãopodesequeixar.Dásempreparasepoderoferecerumalmoçoaosamigos...

—Voualmoçarlánodia16-—avisouoviajante.QuandoeupassarparaoSequeiroGrandevoupernoitarlá.

— As ordens... — fez Maneca. — E o senhor também aparece,Capitão?

João Magalhães disse que sim, era bem possível. Pensava sedemorar na zona algum tempo, ia mesmo ver se valia a pena empregaralgumdinheiroemterra,emroçasdecacau.DesdeoRioquevinham lhefalando desta zona, da dinheirama que havia por lá. Estava tentado aempregarumapartedoseucapitalemfazendasdecacau.Éverdadequeeletambémnãopodiasequeixar, tinhaamaiorpartedoseudinheiroemprédiosnoRioedavamboarenda.Masrestava-lhealgumnobanco,umasdezenasdecontosemuitaapólicedadívidapública.Sevalesseapena...

ManecaDantasfalousério,aconselhando:— Pois vale, seu Capitão. Vale a pena. Cacau é uma lavoura nova

masa terradaquiéamelhordomundoparacacau. Jáveiomuitodoutorporaquiestudareissoécoisaassentada.Nãoháterramelhorprocacau.Ea lavoura é o que há de bom, eu não troco por café nem por cana de

açúcar.Sóqueagenteaindaéumbocadobrabamasissonãohádemetermedo a um homem como o senhor. Seu Capitão, eu lhe digo: dentro devinteanosIlhéuséumagrandecidade,umacapitaletodosessespovoadosdehojevãosercidadesenormes.Cacauéouro,seuCapitão.

A conversa foi assim se prolongando, falaram da viagem, JoãoMagalhãesfaloudeoutraspaisagens,viagensdetrem,denaviosenormes,seu prestígio crescia demomento paramomento. A roda foi aumentandotambém,contavamhistórias,ovinhocorria.JoãoMagalhãesfoiconduzindoaconversasubtilmenteparaoterrenodosjogos,acabaramporfazerumamesinha de pôquer. O coronel Totonho, dono do Riacho Seco, aderiu, e ocaixeiro-viajante desistiu porque o cacife era muito alto e o "hand"também.FicaramostrêscoronéisemaisJoão,osoutrosperuando.ManecaDantastirouopaletó:

—Nãoseijogarisso...Ferreirinhaestrugiudenovonasuagargalhada:—Nãováatrásdisso,Capitão...OManecaéummestrenopôquer...

Nãoháparceiroqueseaguentecomele.AgoraManecabotavaorevólvernobolsodedentrodopaletópara

quenão icasseàvistanocinto,e JoãoMagalhãescogitavasevaliaapenaperdernesseprimeirojogo,nãomostrardevezassuasqualidades.

Orapazdobartrouxeumbaralho,Manecaperguntou:—Curingado?—Comoqueiram—respondeuJoãoMagalhães.— Pôquer Curingado não é pôquer — falou Totonho e era a

primeiravezqueelefalava.—Nãoboteocuringa,porfavor.—Táfeitaasuavontade,compadre—eManecajogouocuringano

meiodascartasinúteis.Ferreirinhafoiocacifeiro,cadaumcomprouquinhentosmil-réisde

icha.JoãoMagalhãesestudavaTotonhodoRiachoSecoquetinhaumolhovazadoenumadasmãosapenastrêsdedos.Erasombrioecalado.Coubeaele dar cartas. João tinha resolvido não fazer patota no jogo, jogarlealmente,atéfazerbesteirasefossepossível,perderalgumacoisa.Assimganhavaosparceirosparaoutraspartidasquepudessemrenderbastantemais.

Tinhaumpardereinamão,foiaojogo.ManecaDantaschamoucommais dezesseis, Ferreirinha fugiu. Totonho pagou, João completou.Ferreirinhadeucartas,Manecapediuduas.Totonhopediuuma.

—Todasastrês...—pediuJoão.Totonho deu mesa, Maneca apostou, ninguém foi ver. Maneca

arrastouamesa,nãoseconteve,mostrouoblefe:—TrincaPirangi...Estavacomumvalete,umreieumadama,tinhapedidoduascartas

para sequência. João Magalhães riu, bateu palmadinhas nas costas deManeca:

—Muitobem,coronel,bempassadoesse...Totonhoolhoucomumolhartorvo,nãocomentou.JoãoMagalhãesperdeutodoorespeitopelosparceiros.Decididamenteia

enriquecernessasterrasdocacau.

9

O caixeiro-viajante se cansou de peruar o jogo, subiu para otombadilho. O luar cobriaMargot que cismava debruçada na amurada. Omar era de um verde escuro, há muito que as últimas luzes da cidadehaviamdesaparecido.Onaviojogavamuito,quasetodosospassageirossehaviamrecolhidoaoscamarotesouestavamestiradosemcadeirasdelona,ocorpocobertocomgrossoscobertores.Naterceiraaharmônicavoltaraatocaruma lânguidamúsicaea lua, agora, estavanomeiodo céu.Um friocortante vinha do mar, trazido pelo vento sul que fazia voar as cabeloslongos deMargot. Ela arrancara os grampos e a loira cabeleira ao ventolutuavanoar.Ocaixeiro-viajanteassobioubaixinhoquandoaviusóe foise aproximando demanso. Não levava nenhum plano traçado, uma vagaesperançanocoraçãoapenas:

—Boanoite...Margotsevoltou,segurouoscabeloscomamão:—Boanoite...—Tomandofresco?—É...Novamente olhava o mar onde as estrelas se re letiam. Cobriu a

cabeça comum lenço, amarrando os cabelos, afastou o corpo para que oviajantepudesseseencostartambémnaamurada.Ficaramemsilencioumlongo minuto. Margot parecia não vê-lo, distante na contemplação domistériodomaredomistériodocéu.Foielequemfalouporfim:

—VaiparaIlhéus?—Vou,sim.—Vaiparaficar?—Seilá...Semederbem.

—TuestavasnapensãodeLísia,nãoestavas?—Hum...Hum.—ebalançouacabeça.—Eutevilá,nosábado.Porsinalqueestavascomodoutor...— Já sei... — atalhou ela e voltou a espiar o mar como se não

quisessecontinuaraconversa.— Ilhéus é terra demuito dinheiro... Umabichinha assim tão linda

comovocêécapazdebotarroçaporlá...Nãohádefaltarcoronelqueentrecomasmassas.

Eladesviouosolhosdomar, itouoviajante.Pareciapensar,comoseestivesseemdúvidassedevia falarounão.Masvoltouaolharomarsemdizernada.Oviajantecontinuou:

—JucaBadarótesegurouindagora...Tomacuidado...—Queméele?—Eumdoshomensricosda terra...Evalente também...Falampor

lá que os trabalhadores dele tem pintado o diabo. Invadem terra dosoutros,matam,fazemeacontecem.ÉodonodoSequeiroGrande.

Margotestavainteressada,elecompletou:—Dizemque todaa famíliaévalente,homensemulheres.Queaté

asmulherestemmortesfeitas.Querumconselho?Nãosemetacomele.Margotestirouobeiçonumgestodedesprezo:—E quem lhe disse que eu tenho interesse nele? Ele é que táme

cercandoquenemgalovelhocomfranganova...Nãoqueronadacomele,nãovouatrásdedinheiro...

O caixeiro-viajante sorriu como quem não acreditava, ela deu deombroscomosepoucolheimportasseaopiniãodele.

—Contampor láqueamulherde Juca jámandourasparacabeçadeumaraparigaqueestavaamigadacomele...

—Masquemmeteunasuacabeçaqueeuestoucominteressenele?Elepodeterasmulheresquequiser,nãotemessaaqui...—batiaamãonopeito.

Mais uma vez icou como que duvidando de falar ou não, seresolveu:

—TunãomeviunosábadodançandocomVirgílio?PoiseleestáemIlhéus,euvouveréele.

— É verdade... Estava me esquecendo... Ele está por lá, sim.Advogando...Rapazdefuturo,hein?DizemquefoiocoronelHorácioquemmandoubuscarparaeledirigiropartido...-balançouacabeça,convencido.—Seéassimnãodigonada.Sóqueaconselho:cuidadocomJuca

Badaró...

Seafastou,nãovaliaapenaaconversa,raparigaapaixonadaémoçadonzela.ComoJucaBadaró iriasearranjar?Margotdesamarravao lenço,deixavaqueoventofizessevoarosseuscabelos.

10

Uma sombra desliza pela escada, antes de por o pé na primeiraclasse espia se não há movimento. Ajeita o cabelo, o lenço amarrado nopescoço.Asmãosaindaestãoinchadasdosbolosquetomoudapolícia.Nodedo ainda não entra o anelão falso. O subdelegado disse que nem quetivessedequebraraquelasmãos,elasnãovoltariamasemeternosbolsosalheios. Fernando escala o último degrau, toma o lado contrário daqueleonde Margot se encontra. Como vem um marinheiro, se encosta naamurada, parece um passageiro de primeira vendo a noite. Sai devagar,deita-se junto à cadeira de lona onde o homem ronca. Suas mãos sutisdeslizamsobocobertor,sobopaletó,tocamnorevólverdeaçofrio,tiramdobolsodacalçaacarteirarecheada.Ohomemnemsemoveu.

Retornapara a terceira.Atira a carteira aomar, guardaodinheironobolso.Agoraandadecócorasentreosgruposdaterceiraquedormem,procuraalguém.Numcanto,deitadodebruçoscomosedormissesobreaterraressonaovelhoquevoltaparavingaramortedo ilho.Fernandotiradeentreasnotasumasquantas,coloca-as,comtodaasutilezadequesãocapazesassuasmãos,nobolsodovelho.Depoisescondeasnotasquelherestaramnoforrodopaletó,suspendeagolaevaisedeitarnocantomaisdistante,ondeAntónioVítorseimaginaemEstânciatendojuntoasiocalordeIvone.

11

Amadrugadaé fria,ospassageiros seencolhemsobos cobertores.Margotouveaconversaquevemdelonge:

—Seocacauderquatorzemil-réisesseanolevoafamíliaaoRio...—ToucomvontadedefazerumacasaemIlhéus...Oshomensseaproximavamconversando:—Foiumcasofeio.MandarammatarZequinhapelascostas...—Mas,dessavezvaihaverprocesso,eulhegaranto.—Váesperando...

Pararam diante de Margot, icaram a espiá-la sem a menorcerimônia. O baixinho sorria sob um bigode enorme que alisava a cadamomento:

—Assimvocêseresfria,menina...Margotnãorespondeu.Ooutroperguntou:—OndeéquevocêvaipousaremIlhéus?EmcasadeMachadão?—Quelheimporta?—Nãosejaorgulhosa,menina.Nãoédagentemesmoquevocêvai

viver?Olhaaqui,ocompadreMourabemquepodetemontarumacasa.Obaixoriurepuxandoosbigodes:—Emontomesmo,belezinha.Ésódizersim...JucaBadaróveiochegando:—Comlicença.Osdoisseafastaramligeiramente.—Boanoite,Juca.Jucacumprimentoucomacabeça,sedirigiuaMargot:—Tá na hora de ir dormir, dona. Émelhor dormir que estar aqui

dandoprosaatodomundo...Olhou acintosamente para os dois, eles foram se afastando.Margot

ficousócomele:—Quemlhedeudireitoasemeternaminhavida?—Espie,dona.Euvoudescer, vouver seminhamulher tábemno

camarote. Mas volto já e se encontrar vosmecê ainda aqui vai haverbarulho.Mulherminhameobedece...—esaiu.

Margot repetiu com asco: "mulher minha" e foi andando devagarpara o camarote. Ainda ouviu o baixinho, de bigodes, dizer quando elapassava:

—EsseJucaBadaróestámerecendoumaliçãobemdada.EntãosesentiucomosefossemulherdeJucaeperguntou:—Eporquevocênãodá?

12

Sobreonavioquecortaanoitedomarseestendeumsilênciocalavez maior. Já não soavam as harmônicas e os violões na terceira classe.Nenhumavoz cantava já tristezas de amor, lamentos de saudade.Margotse havia recolhido, ninguém mais cismava na amurada do navio. Aspalavrasdosjogadoresdepôquernãochegavamatéomar.Banhadopela

luzvermelhadeuma luadepresságios,onaviocortavaaságuas, cobertoagora pelo silencio. Um sono povoado de sonhos de esperanças enchia anoitedebordo.

O comandante desceu da sua torre do comando, vinha com oimediato.Atravessaramtodaaprimeiraclasse,osgruposquedormiamnasespreguiçadeiras, cobertos com cobertores de lã. Por vezes alguémmurmurava uma palavra no sonho e estava sonhando com as roças decacau carregadas de frutos. O comandante e o imediato desceram pelaestreita escada e atravessaram por entre os homens e mulheres quedormiam na terceira, uns sobre os outros, apertados pelo frio. Ocomandante ia calado, o imediato assobiavaumamúsicapopular.AntónioVítordormia comumsorrisonos lábios, sonhava talvez comuma fortunaconquistadasemesforçonasterrasdeIlhéus,comsuavoltaaEstância,embuscadeIvone.Sorriafeliz.

O comandanteparou, olhouomulatoque sonhava.Virou-separaoimediato:

—Tárindo,vê?Vairirmenosquandoestivernamata...EmpurroucomopéacabeçadeAntónioVítor,murmurou:—Medãopena...Chegaram junto à amurada, na popa do navio. As ondas subiam

revoltas, o luar era vermelho de sangue. Ficaram calados, o imediatoacendendoseucachimbo.Porfimocomandantefalou:

— Por vezesme sinto como o comandante de um daqueles naviosnegreirosdotempodaescravidão...

Comooimediatonãorespondesse,eleexplicou:—Daquelesqueemvezdemercadorias traziamnegrospraserem

escravos.Apontou os homens dormidos na terceira. António Vítor que ainda

sorria:—Quediferençahá?O imediato levantou os ombros, puxou uma baforada do cachimbo,

nãorespondeu.Olhavaomar,anoiteimensa.océudeestrelas.

AMata

1

Amatadormiaoseusonojamaisinterrompido.Sobreelapassavamosdiaseasnoites,brilhavaosoldoverão,caíamaschuvasdoinverno.Ostroncos eram centenários, um eterno verde se sucedia pelomonte afora,invadindo a planície, se perdendo no in inito. Era como um mar nuncaexplorado, cerrado no seu mistério. A mata era como uma virgem cujacarne nunca tivesse sentido a chama do desejo. E como uma virgem eralinda, radiosa emoça apesar das árvores centenárias.Misteriosa como acarnedemulheraindanãopossuída.Eagoraeradesejadatambém.

Da mata vinham trinados de pássaros nas madrugadas de sol.Voavamsobreasárvoresasandorinhasdeverão.Eosbandosdemacacoscorriam numa doida corrida de galho em galho, morro abaixo, morroacima. Piavam os corujões para a lua amarela nas noites calmas. E seusgritosnãoeramaindaanunciadoresdedesgraçasjáqueoshomensaindanão haviam chegado á mata. Cobras de inúmeras espécies deslizavamentreasfolhassecas,semfazerruído,onçasmiavamseuespantosomiadonasnoitesdecio.

A mata dormia. As grandes árvores seculares, os cipós que seemaranhavam,alamaeosespinhosdefendiamoseusono.

Damata,doseumistério,vinhaomedoparaocoraçãodoshomens.Quando eles chegaram, numa tarde, através dos atoleiros e dos rios,abrindo picadas, e se defrontaram com a loresta virgem, icaramparalisadospelomedo.Anoitevinhachegandoetrazianuvensnegrascomela, chuvas pesadas de junho. Pela primeira vez o grito dos corujões foi,nesta noite, um grito agoureiro de desgraça. Ressoou com voz estranhapelamata, acordou os animais, silvaram as cobras, miaram as onças nosseus ninhos escondidos, morreram andorinhas nos galhos, os macacosfugiram.E,comatempestadequedesabou,asassombraçõesdespertaramnamata. Em verdade teriam elas chegado comos homens, na rabada dasua comitiva, junto com os machadas e as foices, ou já estariam elashabitandonamatadesdeoiníciodostempos?Naquelanoitedespertarameeramolobisomemeacaipora,amula-de-padreeoboitatá.

Os homens se encolheram com medo, a mata lhes infundia umrespeito religioso. Não havia nenhuma picada, ali habitavam somente os

animaiseasassombrações.Oshomenspararam,omedonocoração.Atempestadecaiu,raiosquecortavamocéu,trovõesqueressoavam

como o rilhar dos dentes dos deuses da loresta ameaçada. Os raiosiluminavam por umminuto amata, mas os homens não viam nadamaisqueoverde-escurodasárvores,ossentidostodospresosaosouvidosqueouviam, juntamente com o silvo das cobras em fuga e com o miado dasonças aterrorizadas, as vozes terríveis das assombrações soltas namata.Aquele fogo que corria sobre os mais altos galhos saía sem dúvida dasnarinas do boitatá. E o tropel amedrontador que era senão a corridaatravésda lorestadamula-de-padre,anteslindadonzelaqueseentregou,numaânsiadeamor,aosbraçossacrílegosdeumsacerdote?Nãoouviammaisomiadodasonças.Agoraeraogritodesgraçadodolobisomem,meiohomem,meio lobo, de unhas imensas, desvairado pelamaldição damãe.Sinistro bailado da caipora na sua única perna, com o seu único braço,rindocomsuafacepelametade.Omedonocoraçãodoshomens,

E a chuva caía pesada como se fora o começo de outro dilúvio. Alitudo lembrava o princípio do mundo. Impenetrável e misteriosa, antigacomo o tempo e jovem como a primavera, a mata aparecia diante doshomens como a mais temível das assombrações. Lar e refúgio doslobisomensedascaiporas. Imensadiantedoshomens.Ficavampequenosaos pés da mata, pequenos animais amedrontados. Do fundo da selvavinham as vozes estranhas. E mais terrível era o espetáculo, já que atempestade irrompia com fúria, do céu negro, onde nem a luz de umaestrelabrilhavaparaoshomensrecém-chegados.

Vinham de outras terras, de outros mares, de próximo de outrasmatas. Mas dematas já conquistadas, rasgadas por estradas, diminuídaspelasqueimadas.Matasdeonde jáhaviamdesaparecidoasonçaseondecomeçavam a rarear as cobras. E agora se defrontavam com a matavirgem, jamais pisada por pés de homens, sem caminhos no chão, semestrelas no céu de tempestade. Nas suas terras distantes, nas noites deluar, as velhas narravam tétricas histórias de assombrações. Em algumaparte do mundo, em algum lugar que ninguém sabia onde estava, nemmesmoos andarilhosmais viajados, aquelesque cortamos caminhosdossertões recitando profecias, nesse distante lugar tem a sua morada asassombrações. Assim diziam as velhas que possuíam a experiência domundo.

E, de súbito, na noite de temporal, diante da mata, os homensdescobriam esse recanto trágico do universo, onde habitavam asassombrações. Ali, na mata, em meio da loresta, sobre os cipós, em

companhia das cobras venenosas, das onças ferozes, dos agoirentoscorujões, estavam pagando pelos crimes cometidos aqueles que asmaldições haviam transformado em animais fantásticos. Era dali que nasnoites sem lua partiam para as estradas a esperar os viandantes quebuscavam seus lares. Dali partiam para amedrontar omundo. Agora, emmeiodoruídodotemporal,oshomensparados,pequeninos,ouvem,vindodamata,orumordasassombraçõesdespertadas.Evêem,quandocessamos raios, o fogo que elas lançam pela boca, e veem, por vezes, o vultoinimagináveldacaiporabailandoseubailadoespantoso.Amata!nãoéummistério,nãoéumperigonemumaameaça.Éumdeus

Nãoháventofrioquevenhadomar.Distanteestáomardeverdesondas. Não há vento frio, nessa noite de chuva e relâmpagos.Mas, aindaassim,oshomensestãoarrepiadosetremem,seapertamosseuscorações.Amata-deusnasuafrente.Omedodentrodeles.

Deixaram cair osmachados, os serrotes e as foices. Estão demãosinertes diante do espetáculo terrível da mata. Seus olhos abertos,desmesuradamente abertos, veemo deus em fúria ante eles. Ali estão osanimais inimigos do homem, os animais agoureiros, ali estão asassombrações.Não é possível prosseguir, nenhumamão de homempodese levantar contra o deus. Recuam devagar, o medo nos corações.Explodem os raios sobre a mata, a chuva cai. Miam as onças, silvam ascobras, e, sobre todo o temporal, as lamentações dos lobisomens, dascaiporas e das mulas-de-padre, defendem o mistério e a virgindade damata.Diantedoshomensestáamataéopassadodomundo,oprincípiodomundo. Largam os facões, os machados, as foices, os serrotes, so há umcaminho,éocaminhodavolta.

2

Oshomensvãorecuando.Levaramhoras,diase.noites,parachegaratéali.Atravessaramrios,picadasquase intransitáveis, izeramcaminhos,calçaramatoleiros, um foimordidode cobrae icouenterradoao ladodaestrada recém-aberta. Uma cruz tosca, o barro mais alto, era tudo quelembravaocearensequehaviacaído.Nãopuseramoseunome,nãohaviacom que escrever. Naquele caminho da terra do cacau aquela foi aprimeiracruzdasmuitasquedepois iriam ladearasestradas, lembrandohomens caídos na conquista da terra. Outro se arrastou com febre,mordidoporaquela febrequematavaatémacacos.Searrastandochegou

eagoraele tambémrecua,a febre fá-lovervisõesalucinantes.Gritaparaosdemais:

—Éolobisomem...Vão recuando. A princípio devagar. Passo a passo até alcançar o

caminhomaislargo,ondesãomenosnumerosososespinhoseosatoleiros.A chuva de junho cai sobre eles, encharcando as roupas, fazendo-ostremer.Diantedelesamata,atempestade,osfantasmas.Recuam.

Agora chegamàpicada, é uma corrida só, atingirão asmargensdorio onde uma canoa os espera. Quase respiram aliviados. O que vai comfebre já não sente a febre. O medo dá-lhe uma nova força ao corpoalquebrado.

Masdiantedeles,parabélumnamão,orostocontraídoderaiva,estáJuca Badaró. Também ele estava ante amata, também ele viu os raios eouviuostrovões,escutouomiadodasonçaseosilvodascobras.Tambémseu coração se apertou com o grito agourento do corujão. Também elesabiaquealimoravamasassombrações.Mas JucaBadarónãovianasuafrente amata, o princípio domundo. Seus olhos estavam cheios de outravisão.Viaaquela terranegra, amelhor terradomundoparaoplantiodocacau. via na sua frente nãomais amata iluminada pelos raios, cheia deestranhas vozes, enredada de cipós, fechada nas árvores centenárias,habitada de animais ferozes e assombrações. Via o campo cultivado decacaueiros,asárvoresdosfrutosdeouroregularmenteplantadas,oscocosmaduros, amarelos. Via as roças de cacau se estendendo na terra ondeantesforamata.Erabelo.Nadamaisbelonomundoqueosroçasdecacau.Juca Badaró, diante da mata misteriosa, sorria. Em breve ali seriam oscacaueiros, carregadosde frutos,umadocesombrasobreosolo.Nemviaoshomenscommedo,recuando.

Quandoosviu, só teve tempodecorrernasua frente, sepostarnaentradadocaminhodeparabélumnamão,umadecisãonoolhar:

—Metobalanoprimeiroquederumpasso...Os homens pararam. Ficaram um instante assim, sem saber o que

fazer.Atrásestavaafloresta,nafrenteJucaBadaródispostoaatirar.Masoquetinhafebregritou:

—Éolobisomem...—eavançounumpulo.Juca Badaró atirou, novo raio atravessou a noite. A mata repetiu

numecoosomdotiro.Osoutroshomens icaramemtornodoquecaíra,ascabeças baixas. Juca Badaró se aproximou vagarosamente, o parabélumaindanamão.AntónioVítortinaseabaixado,seguravaacabeçadoferido.Abalaatravessaraoombro.JucaBadarófaloucomavozmuitocalma:

— Não atire para matar, só para mostrar que vocês tem queobedecer...—Apontouparaum:—Vábuscaráguaparalavaraferida.

Assistiu a todo o tratamento, ele mesmo amarrou um pedaço depanonoombrodohomem feridoe ajudoua levá-loparao acampamentojuntodamata.Oshomens iam tremendo,mas iam.Deitaramo feridoquedelirava.Namataasassombraçõesestavamsoltas.

—Adiante—disseJucaBadaró.Os homens se espiavam uns aos outros. Juca suspendeu o

parabélum:—Adiante...Os machados e os facões começaram a cair num ruído monótono

sobreamata,perturbandoseusono.JucaBadaróolhounasuafrente.Vianovamente toda aquela terra negra plantada de cacau, roças e roçascarregadasdefrutosamarelos.Achuvadejunhorolavasobreoshomens,o ferido pedia água numa voz entrecortada. Juca Badaró guardou oparabélum.

3

A manhã de sol dourava os cocos ainda verdes dos cacaueiros. OcoronelHorácioiaandandodevagarentreasárvoresplantadasdentrodasmedidasestabelecidas.Aquelaroçadavaseusprimeirosfrutos,cacaueirosjovensdecincoanos.Antesalitambémforaamata,igualmentemisteriosae amedrontadora. Ele a varara com seus homens e com o fogo, com osfacões,osmachadoseas foices,derrubouasgrandesárvores, jogouparalonge as onças e as assombrações. Depois fora o plantio das roças,cuidadosamente feito,paraquemaiores fossemascolheitas.E,apóscincoanos, os cacaueiros en loraram e nessamanhã pequenos cocos pendiamdos troncos e dos galhos. Os primeiros frutos. O sol os doirava, o coronelHorácio passeava entre eles. Tinha cerca de cinquenta anos e seu rosto,picado de bexiga, era fechado e soturno. As grandes mãos calosasseguravam o fumo de corda e o canivete com que faziam o cigarro depalha. Aquelas mãos, que muito tempo manejaram o chicote quando ocoroneleraapenasumtropeirodeburros,empregadodeumaroçanoRio-do-Braço,aquelasmãosmanejaramdepoisarepetiçãoquandoocoronelsefezconquistadordaterra.Corriamlendassobreele,nemmesmoocoronelHorácio sabia de tudo que em Ilhéus e em Tabocas, em Palestina, e emFerradas,emÁgua-Preta,secontavasobreeleesuavida.Asvelhasbeatas

que rezavam a 'São Jorge na igreja de Ilhéus costumavam dizer que ocoronel Horácio, de Ferradas, tinha debaixo da sua cama, o diabo presonuma garrafa. Como o prendera era uma história longa, que envolvia avenda da alma do coronel num dia de temporal E o diabo, feito servoobediente,atendiaatodososdesejosdeHorácio,aumentava-lheafortuna,ajudava-ocontraosseusamigos.Masumdia—easvelhaspersignavamaodize-lo—Horáciomorreria semcon issãoendiabosaindodagarrafalevariaasuaalmaparaasprofundasdosinfernos.DessahistóriaocoronelHorácio sabia e ria dela, uma daquelas suas risadas curtas e secas, queamedrontavammaisquemesmoosseusgritosnasmanhãsderaiva.

Outras histórias se contavam e essas estavam mais próximas darealidade.ODr.Rui,quandobebiademasiado,gostavadelembraradefesaquecertavez izeradocoronelnumprocessodehámuitosanospassados.Acusavam Horácio de três martes e de três mortes bárbaras. Dizia oprocessoquenão contentede termatadoumdoshomens, cortara-lhe asorelhas,alíngua,onariz,eosovos.Opromotorestavacomprado,estavaalipara impronunciar o coronel. Ainda assim o Dr. Rui pudera brilhar,escrevera uma defesa linda, onde falara em "clamorosa injustiça", em"calúniasforjadasporinimigosanônimossemhonraesemdignidade".Umtriunfo, uma daquelas defesas que o consagraram como um grandeadvogado. Fizerao elogiodo coronel, umdos fazendeirosmaisprósperosda zona, homem que izera levantar não só a capela de Ferradas, comoaindaagoracomeçavaalevantaraigrejadeTabocas,respeitadordasleis,por duas vezes já vereador em Ilhéus, grão-mestre de maçonaria. Umhomemdestespoderiaporacasopraticartãohediondocrime?

Todos sabiam que ele o havia praticado. Fora uma questão decontrato de cacau. Nuns terrenos de Horácio o preto Altino. mais seucunhadoOrlando e um compadre chamado Zacarias, haviambotado umaroça, em contrato com o coronel. Derrubaram a mata, queimaram-na,plantaramcacaue,entreocacau,amandioca,omilhodequeiamviverostrêsanosdeesperaatéqueoscacaueiroscrescessem.Passaram-seostrêsanos, eles foram ao coronel para entregar a roça e receber o dinheiro.Quinhentosréisporpéplantadoevingadodecacau.Comaqueledinheiropoderiamadquirirumterreno,umpedaçodemataqualqueredesbravá-laeplantarentãoumaroçaparaelesmesmos. Iamalegresecantavampelaestrada. Oito dias antes tinha vindo Zacarias trazer milho e farinha demandioca e levar carne seca, cachaça e feijão, do armazém da fazenda.Encontraraentãoocoroneletinham icadoosdoisconversando,eledandoconta do estado dos cacaueiros, o coronel lembrando que faltava pouco

tempopara indarostrêsanos.DepoisHoráciolheofereceraumapinganavaranda da casa-grande e lhe perguntara o que pensavam fazer depois.Zacarias lhecontaradoprojetodecomprarumpedaçodemata,derrubá-laeplantarumaroça.Ocoronelnãosóoaprovoucomo,amavelmente,sedispôs a ajudá-los. Não vê que ele tinha ótimas matas em terrenosexcelentes para o plantio de cacau? Em toda a zona de Ferradas, aquelaimensazonaque lhepertencia,elespodiamescolherumpedaçodemata.Assimeramelhorparaeletambém,jáquenãoteriadepuxardodinheiro.Zacariasvoltouradianteparaorancho.

Foramaocoronelquandooprazo indou.Fizeramascontasdospésdecacauquehaviamvingado,jáantestinhamescolhidoopedaçodemataque queriam comprar. Chegaram a um acordo com o coronel, beberamumascachaças,Horáciodisse:

— Vocês podem se botar pramata que um dia desses quando eudesceraIlhéusmandoavisaravocêsprairumtambémeagentebotaropretonobranconocartório...

Assim diziam de passar a escritura. O coronel mandou que elesfossemempaz,comummêsmaisoumenosiriamaIlhéus.Ostrêsforam,depois de cumprimentos e reverencias ao coronel.No outro dia partirampara a mata, começaram a derrubá-la, armando um rancho. Passou-se otempo, o coronel foi a Ilhéus duas e três vezes, eles já haviam iniciado aplantação e nada de escritura. Um dia Altino tomou coragem e falou aocoronel:

— Vosmecê me adisculpe, seu coronel, mas nós queria saber,quandoéqueagentepassaaescrituradaterra?

Horácio primeiro se indignou com a falta de con iança.Mas diantedas desculpas de Altino explicou que já dera ordens ao Dr. Rui, seuadvogado, para tratar do assunto. Não ia demorar, um dia destes elesseriam chamados para darem um pulo a Ilhéus, e liquidarem o assunto.Maistemposepassou,daterraplantadacomeçaramasurgirasmudasdecacau, ainda simples gravetos que em breve seriam árvores. Altino,OrlandoeZacariasolhavamasplantas comamor.Eramcacaueirosdeles,plantados com as suas mãos, em terras que eles haviam desbravado.Cresceriam e dariam frutos amarelos como ouro, dinheiro. Nem serecordavamdaescritura.SóonegroAltino,porvezesparavapensando.Hámuitoque conheciao coronelHorácio edescon iava.Aindaassim icaramsurpresosnodiaquesouberamquea fazendaBeija-Flor foravendidaaocoronelRamiroequearoçadelesestavacompreendidanavenda.Foramfalar ao coronel Horácio. Orlando icou, foram os outros dois. Não

encontraram o coronel, estava em Tabocas. Voltaram no outro dia, ocoronelestavaemFerradas.EntãoOrlandoresolveuirelemesmo.Paraeleaquela terra era tudo,nãoaperderia.Disseram-lhequeo coronel estavaem Ilhéus. Ele fez que sim mas entrou pela casa-grande adentro eencontrouocoronelnasalade jantar,comendo.Horácioolhouo lavrador,faloucomsuavozseca:

—Quercomer,Orlando?Sequerseabanque.—Nãosinhô,obrigado.—Quelhetrazporaqui?Algumanovidade?—Umanovidadebemfeia,sinhô,sim.OcoronelRamiroapareceulá

pelaroça,dizquearoçaédele,dizquecomprouaosinhô,coronel.—SeocoronelRamiroéquedizdeveserverdade.Elenãoéhomem

pramentira...Orlando icou mirando o coronel Horácio que voltava a comer.

Olhava as grandesmãos calosas do coronel, a sua face fechada. Por im,falou:

—Vosmecêvendeu?—Issoénegóciomeu...—Mas vosmecênão se arrecordaquenos vendeu essepedaçode

mata?Pelodinheirodocontratodecacau?— Vocês tem a escritura? — e Horácio voltou a comer. Orlando

rodou na mão o chapéu enorme de palha. Tinha consciência de toda adesgraçaque lheshavia acontecido, a ele e aosdois companheiros. Sabiatambémque legalmentenãohaviacomo lutarcontraocoronel.Sabiaquenãotinhammaisterra,nemroçaplantada,nãotinhammaisnada.Umvéudesangueturvouseuolhar,nãomediamaisaspalavras:

—Desgraçapoucaébobagem,coronel.Vosmecê iqueavisadoquenodiaqueo coronelRamiroentrarna roça, nessedia vosmecêpagaportudo...Pensebem.

Disse e saiu afastando com o braço a negra Felícia que estavaservindo o coronel. Horácio continuou a comer, como se nada houvessepassado.

DenoiteHorácio chegou com seus cabrasna roçados três amigos.Cercouorancho,dizemqueelemesmoliquidouoshomens.Equedepois,comsuafacadedescascarfrutas,cortoualínguadeOrlando,suasorelhas,seunariz, arrancou-lheas calçaseo capou.Tinhavoltadoparaa fazendacomseushomensequandoumdeles foipegado,bêbado,pelapolícia eodenunciou,eleapenasriusuarisada.Foiimpronunciado.

Seusjagunçosdiziamqueeleeraummachodeverdadeequevalia

apena trabalharparaumhomemassim.Nuncadeixavaque jagunço seuparassenacadeiaecertavezsaíraespecialmentedafazendaparalibertarumqueestavanaprisãodeFerradas.Depoisdetirá-lodeentreasgrades,

rasgaraoprocessonacaradoescrivão.MuitashistóriascontavamdocoronelHorácio.Diziamque,antesde

ser chefe do partido político oposicionista, para conquistar esse posto,mandara que seus jagunços esperassemna tocaia o antigo chefe político,umcomerciantedeTabocas,eoliquidassem.Depoislançouaculpacontraosinimigospolíticos.Agoraocoronelerachefeindiscutidodazona,omaiorfazendeiro dali e imaginava estender suas terras por muito longe. Queimportavamashistóriasquecontavamsobreele?Oshomens, fazendeirose trabalhadores, contratistas e lavradores de pequenas roças, orespeitavam,onúmerodosseusafilhadoseraincontável.

Nessa manhã ele ia entre os cacaueiros novos que davam seusprimeiros frutos. Acabara de preparar o cigarro com as grandes mãoscalosas.Pitavavagarosamenteenãopensavaemnada,nemnashistóriasquecontavamdele,nemmesmonachegadarecentedoDr.Virgílio,onovoadvogado que o partido enviara da Bahia para os trabalhos de Tabocas,não pensava nem mesmo em Ester, sua esposa, tão linda e tão jovem,educada pelas freiras naBahia, ilha do velho Salustiano, comerciante deIlhéus que a dera, encantado, de esposa ao coronel. Era a sua segundamulher, a primeira morrera quando ele era ainda tropeiro. Era triste elinda,magraepálida,eeraaúnicacoisaquefaziaocoronelHoráciosorrirde uma maneira diferente. Neste momento nem em Éster pensava. Nãopensava em nada, via apenas os frutas dos cacaueiros, verdes ainda,pequeninos, as primeiros daquela roça. Com a mão tomou de um deles,doce e voluptuosamente o acariciou. Doce e voluptuosamente como seacariciasseacarnejovemdeEster.Comamor.Cominfinitoamor.

4

Ester andou para o piano, piano de cauda, num canto da salaenorme. Descansou as mãos sobre as teclas, os dedos iniciarammaquinalmente uma melodia. Velha valsa, farrapo de música que lhelembrava as festas do colégio. Recordou-se de Lúcia. Onde andaria ela,Fazia tempoquenão lheescrevia,quenãomandavaumadassuascartasloucas e divertidas. Também a culpa era sua, não respondera às duasúltimas cartas de Lúcia... Nem agradecera as revistas francesas e os

igurinos que ela mandara. Ainda estavam em cima do piano, junto comantigasmúsicas esquecidas. Éster riu tristemente, arrancou outro acordedo piano. Para que igurinos naquele im do mundo, naquelas brenhas?Nas festasdeSão José,emTabocas,nas festasdeSão Jorge,emIlhéus,asmodasandavamatrasadasdeanoseelanãopoderiaexibirosvestidosqueaamigavestiaemParis...Ah!seLúciapudesseimaginarsequeroqueeraa fazenda, a casaperdidaentre as roçasde cacau, o silvodas cobrasnoscharcos onde comiam rãs E a mata... Por detrás da casa ela se estendiatrancadanostroncosenoscipós.Esteratemiacomoauminimigo.Nuncase acostumaria, tinha certeza. E se desesperava porque sabia que toda asua vida seria passada ali, na fazenda, naquele mundo estranho que aaterrorizava.

NasceranaBahia, emcasadosavós,ondeamãe fora ter criançaemorreudoparto.OpainegociavaemIlhéus,naqueletempoiniciavaavidaeEster icoucomosavósquelhefaziamtodasasvontades,queamimava.e viviam exclusivamente para ela. O pai prosperou em Ilhéus com umarmazémde secosemolhados, apareciadequandoemvez,duasviagensporanoàcapital,anegócios.EstercursaraomelhorcolégioparamoçasdaBahia, um colégio de freiras, primeiro externa, interna depois quando osavós morreram no último ano do curso. Morreram um após o outro nomesmo mês. Ester vestiu luto, naquele momento não chegou a se sentirsozinhaporque tinhaascolegas.Nocolégiosonhavamsonhos lindos, liamromances franceses, histórias de princesas, de uma vida formosa. Todastinham planos de futuro, ingênuos e ambiciosos: casamentos ricos e deamor, vestidos elegantes, viagens ao Rio de Janeiro e à Europa. TodasmenosGeniquedesejavaserfreiraepassavaodiarezando.EstereLúcia,consideradas as mais elegantes e belas do colégio, sonhavam deimaginaçãosolta.Conversavamnospátios,duranteosrecreios,nosilenciododormitóriotambém.

Ester deixa o piano, o último acorde vai morrer na mata. Ah! ostempos felizes do colégio Ester se recordava de uma frase de sórorAngélica, a freiramais simpática de todas, quando elas desejavam que otempodecolégiopassassequantoantesechegasseomomentodeviveravida intensamente. Então soror Angélica pousara nos seus ombros asdelicadasmãos,tãomagras!elhedissera:

— Nenhum tempo é melhor que este, Ester, em que o sonho épossível.

Naquelediaelanãoentendera,foraprecisoquepassassemosanos,até que a frase lhe viesse àmemória de novo para ser recordada desde

entãoquasediariamente.Ah!Ostemposfelizesdocolégio...Esterandaatéaredequeaesperanavaranda.Daíelavêaestradarealondederaroemraro um trabalhador passa em busca do caminho de Tabocas ou deFerradas.Vêtambémogrupodebarcaçasondeocacausecaaosol,pisadopelos pés negros dos trabalhadores. Terminado o curso, ela viera paraIlhéus,nemassistiraaocasamentodeLúciacomoDr.Alfredo,omédicodetantosucesso.Aamigaviajaralogo.RiodeJaneiroeEuropa,ondeomaridoiasedemoraremhospitaiscélebres,especializando-se.Lúciaforarealizarseussonhos,osvestidoscaros,osperfumes,osbailesdegrandeorquestra.Ésterpensanasdiferençasdodestino.ElavieraparaIlhéus,outromundo.Uma cidade pequena, que apenas começava a crescer, de aventureiros elavradores,ondesósefalavaemcacauemortes.

O pai morava num primeiro andar, por cima do armazém, da suajanelaEsterviaamonótonapaisagemdacidade.Ummorrode cada lado.Nãoencontravabelezanorio,nemnomar.Paraelaabelezaestavacomavida de Lúcia, os bailes em Paris. Nem mesmo nos dias de chegada denavios,quandotodaacidadeseanimava,quandohavia jornaisdacapital,quando os botequins se enchiam de homens que discutiam política, nemnesses dias quase de festa Ester saía de sua tristeza. Os homens aadmiravameacortejavamdelonge.Notempodasfériasumestudantedemedicina escreveu-lhe uma carta emandou-lhe versos.Mas para Ester otempo era pouco para chorar, para lastimar a morte dos avós que aobrigavam a viver naquele desterro. As notícias de brigas e demortes aassustavam,deixavam-nanumaagonia.Aospoucosfoisedeixandovencerpelavidadacidade,sedespreocupandodaelegânciaquetantosucesso(ecertoescândalo) izeraquandodasuachegada,equandoumdiaseupai,muito alegre, lhe comunicouqueo coronelHorácio, umdoshomensmaisricosdazona,pediaasuamão,elasecontentouemchorar.

Agora era uma festa quando ia a Ilhéus. O sonho das grandescidades,daEuropa,dosbailes imperiaisedosvestidosparisienses, icaraparatrás.Pareciatudomuitolonge,perdidonotempo,naqueletempo"emqueerapossívelsonhar".Poucosanossehaviampassado.Maseracomosetodaumavidativessesidovividanumarapidezdealucinação.Seumelhorsonhodessesdiaséumaviagema Ilhéus,assistiràs festasda igreja,umaprocissão,umaquermessecomleilãodeprendas.

Balança-senaredemansamente.Nasuafrente,atéondeseusolhosalcançam,estendem-se, subindoebaixandoosmorros,as roçasdecacau,carregadasdefrutos.Noterreirociscamasgalinhaseosperus.Osnegrostrabalhamnas barcaças, revolvendo o cacaumole. O sol irrompe sobre a

paisagem, saindo de entre as nuvens. Ester se recorda do dia docasamento. No dia que casara, nesse mesmo dia, havia vindo para afazenda.Ester estremecena rede ao lembrar. Fora a suamaior sensaçãodehorror.Selembravaqueantes,aoseranunciadoonoivado,acidadeseencheu de cochichos, de disse-não-disse. Uma senhora, que nunca avisitara, apareceu um dia para lhe contar histórias. Antes haviam vindovelhas beatas, conhecidas da igreja, que lhe diziam das lendas sobre ocoronel. Mas aquelamulher trouxe uma notícia que eramais concreta emais terrível.DisseraqueHoráciomatara aprimeiramulher a rebenqueporqueaencontraracomoutronacama.Issonotempoemqueaindaeratropeiro e atravessava as picadas recém-abertas nomistério damata. Sómuito tempo depois, quando já ele enricara, essa história começara acircularnasruasdeIlhéus,nasestradasdaterradocacau.Talvezporquetodaa cidade falassedeleemvozbaixa,Ester, comcertoorgulhoemuitodespeito,levouonoivadoadiante,umnoivadofeitodesilêncioslongosnosrarosdomingosemqueelebaixavaà cidadee ia jantar emsua casa.Umnoivado sem beijos, sem carícias sutis, sem palavras de romance, tãodiferentedonoivadoqueEster imaginaraumdia, na quietudedo colégiodefreiras.

Quisera um casamento simples, se bem Horácio tentasse fazer ascoisasagrande:banqueteebaile,foguetesemissacantada.Masforatudomuitoíntimo,realizadosemcasaosdoiscasamentos,odopadreeodojuiz.Opadrefezumsermão,ojuizdesejoufelicidadescomsuacaracansadadebêbado,oDr.Ruibotoudiscursobonito.Casarampelamanhã,eànoitinha,no lombo dos burros, através dos atoleiros, chegavam à casa-grande dafazenda. Os trabalhadores que se haviam reunido no terreiro em frentedispararam suas repetições quando os burros se aproximaram. Estavamdesejando boas-vindas ao casal, porém Ester sentiu seu coração apertarcom o estampido dos tiros na noite. Horácio mandara distribuir cachaçapelo pessoal mas, minutos depois, já a deixava sozinha e saía para seinformar do estado das roças, para saber como se haviam perdido asarrobas de cacau que estavam secando na estufa, devido às chuvas. Sóquandoelevoltouasnegrasacenderamas lâmpadasdequerosene.Esterse assustou com o grito das rãs. Horácio quase não falava, esperavaimpaciente que o tempo passasse. Quando outra rã gritou no charco, elaperguntou:

—Queé?Avozdeleveioindiferente:—Umarãnabocadeumacobra...

E chegou o jantar servido pelas negras que olhavam descon iadaspara Ester. E de repente, mal terminado o jantar, foi aquele rasgar devestidosedoseucorponapossebrutaleinesperada.

Seacostumoucomtudo,agorasedavabemcomasnegras,aFelíciaatéestimava,eraumamulatinhadedicada.Seacostumouatécomomarido,comoseusilenciopesado, comosseusrepentesdesensualidade, comassuas fúrias que deixavam os mais ferozes jagunços encolhidos de medo,acostumoucomostirosànoitenaestrada,comoscadáveresqueporvezespassavam estirados em redes, um triste acompanhamento de mulhereschorando, sónão seacostumoucomamatano fundoda casa, ondepelasnoites,aocharcoqueoriachofazia,asrãsgritavamseugritodesesperadona boca das cobras assassinas. No im de dez meses nascera um ilho,agora tinha ano e meio e Ester via horrorizada que Horácio nasceranovamentenacriança.Era tudodeleeEsterpensavaconsigomesmaqueela era culpada, pois não colaborara no gestar daquele ser, nunca seentregara, fora sempre tomadacomoumobjetoouumanimal.Masaindaassimoqueria,oamavaardentementeesofriaporele.Seacostumaracomtudo,nãosonhavamais.Sónãoseacostumaracomamataecomanoitedamata.

Nasnoitesde temporal era espantoso: os raios iluminandoos altostroncos,derrubandoasárvores,os trovõesroncando.NessasnoitesEsterseencolhiacommedoechoravasobreoseudestino.Eramnoitesdepavor,de medo irreprimível, um medo que era como uma coisa concreta epalpável. Começava na hora dilacerante do crepúsculo. Ah! aquelescrepúsculos damata, anunciadores de tempestades.Quando a tarde caía,cheiadenuvensnegras,assombraseramcomofatalidadesde initivas,nãohavialuzdequerosenequetivesseforçadeespantá-las,deevitarqueelascercassemacasae izessemdela,dasroçasdecacauedamata,umacoisasó, ligadaspelo crepúsculo igual a umanoite.As árvores se agigantavam,cresciam com o estrume misterioso das sombras, os ruídos se faziamdolorosos,piosdeavesdesconhecidas, gritosdeanimaisqueEsternuncasabiaondeestavam.Eosilvardosrépteis,obulirdasfolhassecasondesearrastavam...Ester temsemprea impressãodequeascobras terminarãoum dia por subirem na varanda, penetrarem na casa e chegarem, numanoitedetemporal,aoseupescoçoeaodacriança,nosquaisseenroscarãocomo um colar. Ela mesma não poderia contar o horror daquelesmomentos que duravam desde a chegada do crepúsculo até o cair dotemporal.Então,quandoeledesabava,anaturezadesejandodestruirtudo,ela procurava os lugares onde a luz das lâmpadas de querosene mais

brilhava. Ainda assim as sombras que a luz projetava lhe davam medo,faziam sua imaginação trabalhar, acreditar nas mais supersticiosashistórias dos capangas. Havia uma coisa que sempre voltava à suamemória nessas noites. Eram as cantigas de ninar que sua avó cantavaparaacalentá-lanasuainfânciadistante.EEster, juntoácamadacriança,asrepetiabaixinho,umaauma,porentrelágrimas,acreditandomaisumaveznoseusortilégio.Cantavaparaacriançaqueaolhavacomseusolhosbaçoseduros,osolhosdeHorácio,mascantavapara

sitambém,tambémelaumacriançaamedrontada.Cantavabaixinho,se embalava na melodia, as lágrimas rolavam pela sua face. Esquecia aescuridãodavaranda,asterríveissombrasdocampo,ogemeraziagodascorujas nas árvores, a tristeza da noite, O mistério da mata. Cantavadistantes cantigas, melodias simples contra os male ícios. Era como se asombra protetora da avó se estendesse ainda sobre ela, carinhosa ecompreensiva.

Mas,desúbito,Ogritodeumarãassassinadanumcharcoporumacobra atravessava a mata, as roças, entrava pela casa adentro, era maisaltoqueopiodascorujaseorumordas folhas,eramaisaltoqueoventoque assobiava, vinha morrer na sala que a lâmpada de queroseneiluminava, estremecia o corpo de Ester. Silenciava a cantiga. Fechava osolhos e via—vianosmínimosdetalhes—o réptil que chegavadevagar,Oleoso e repelente, se arrastando em curvas sobre a terra e as folhascaídas, de súbito se jogava em cima de uma rã inocente. E o grito dedesespero, de despedida da vida, abalava as águas calmas do riacho,enchiademedo,demaldadeededor,Ocenáriodanoiteamedrontadora.

Nessas noites ela via as cobras em cada canto da casa, saindo deentreasgretasdotabuado,deentreastelhas,decadavãodeporta.Viadeolhos fechados como cada uma ia se arrastando, se aproximandocautelosamenteatéopulo fatalsobreasrãs.Tremiasemprequepensavaque sobre o telhado podia estar uma delas, sutil e silenciosa, vindo demanso para o leito de jacarandá, talvez para se enroscar no seu pescoçodurante o sono. Ou então para penetrar no berço da criança e seenrodilhar sobre ela. Quantas noites passara sem dormir porquerepentinamentepensaraqueuma cobradesciapelaparede?Bastavaumrumorouvidonoprincípiodosono.Eraobastanteparaenche-ladeterror.Levantava-se, arrancava as cobertas, atirava-se para a cama do ilho.Quando se convencia de que ele estava dormindo sem perigo, realizavaumabuscaportodooquarto,Ocandeeironumamão,Osolhosabertosdemedo. Horácio por vezes acordava e resmungava na cama, mas Ester

continuava sua busca infrutífera. Não dormiamais. Esperava e esperavacomterrorqueelachegasse.Apareceriadesúbito,movendo-sepelacamae Ester já não poderia tentar nenhuma reação. Chegava a sentir oestrangulamento na sua garganta onde a cobra se enroscaria. Chegava aver o ilho morto, vestido de anjo no caixão azul. No rosto a marca dosdentesvenenosos.

Certavezfoiumpedaçodecordaentrevistonaescuridãoqueafezsoltar um grito que, igual ao das rãs, atravessou o campo e o charco, foimorrernamata.

Ester se recorda de outra noite. Horácio viajara para Tabocas, elaestavasócomacriançaeasempregadas.Dormiam,quandopancadasnaportaasdespertaram.Felícia foiveroqueeraechamouEsteraosgritos.ElachegouedeparoucomunstrabalhadoresquetraziamAmaromordidoporumacobra.Esterespiavadaporta,semquererseaproximar.Ouviaoshomensquepediammedicamentoseouviaaexplicaçãoqueumdavaemvoz rouca: "fora uma surucucu apaga-fogo, venenosa como que".AmarraramapernadeAmarocomumcordão,acimadolugardamordida.Felíciatrouxeumabrasadacozinha,Esterviuquandoapuseramsobreapicada. A carne queimada chiou, Amaro gemeu, um cheiro estranho seespalhoupelacasa.UmtrabalhadorhaviamontadoparairaFerradasembusca de um soro antio ídico.Mas o veneno teve uma açãomuito rápida.Amaro morreu entre Ester, as negras e os trabalhadores, o rostoesverdeado, os olhos demasiadamente abertos. Ester não podia sedesprender do cadáver e ouvia sair daquela boca para sempre caladagritos dolorosos como os das rãs assassinadas nos charcos. QuandoHorácio chegou, pelo meio da noite, de Tabocas, e deu ordem para quelevassemocadáverparaumadascasasdetrabalhadores,Esterteveumacrisedechoroepediuaomarido,soluçando,quefossememboradali,quepartissemparaacidadeouelamorreria,ascobrasviriam,seriammuitas,apicariamtoda,matariamacriança,terminariamporestrangulá-lacomseusanéisviscosos.Sentianopescoçoofriodocorpomoledacobra,umarrepioapercorriaechoravamaisalto.Horácioriudomedodela.Equandoelesetocouparaa sentineladeAmaro,elanãoquis icar sóemcasae tambémfoi.

Os homens em torno do cadáver bebiam cachaça e contavamhistórias. Histórias de cobras, a história de José da Tararanga que viviabêbadoeumanoitevoltavaparacasacaindodecachaça,namãodireitaoifóaceso,naesquerdaumlitrodeparati.Nacurvadaestradaasurucucupulou no ifó, com o baque José da Tararanga caiu. Quando sentiu a

primeirapicadadacobraabriuolitroeobebeutodo.Nooutrodia,quandoos homens passaram para o trabalho nas roças, encontraram José daTararanga que dormia, a surucucu dormindo também enroscada no seupeito. Mataram a cobra, José da Tararanga tinha dezessete picadas, masnadalheaconteceuporcausadacachaça.Oálcooldiluiuoveneno,sóqueJoséinchoudurantequinzedias, icoudotamanhodeumcavalo,depoisfoificandosão.

Contaram também de homens curados de cobra que as pegavampelas estradas sem que elas nada izessem. Bem próximo da fazenda,moravaAgostinhoqueera"curado",cobranãolhefaziamal,eele,sóparasedivertirentregavaobraçopraelasmorderem.

Joana, mulher do tropeiro, que bebia como qualquer dos homens,contou que, numa fazenda do sertão, onde ela vivera antes de vir paraessasterrasdosul,sucederaumahistóriatriste.

Certacobrapenetraranacasa-grandeandeos senhoresestavamapasseio. Vinham sempre no im do ano e desta vez vinham felizes poishavianascidoumacriança.Masacobraentraraeforaseaninharnoberçodacriançaqueeraaprimeiradossenhorescasadoshápoucomaisdeumano.Acriançachoravapeloseiomaternoetomoudorabodacobranasuainocência.Nooutrodiatinhanabocaorabodajararacaquedormiamasjánãomamavaporqueovenenoagiralogo.Asenhorasaírapeloscampos,oscabelosdeoirosoltosaovento,ospésnusealvos,comoJoananuncaviraiguais,pisandoosespinhos,edizemquenuncamaisvoltaraaserperfeitadacabeça,queficaraidiotaeenfeara,perderatodaaquelalindezaderostoe de corpo. Antes, parecia uma destas bonecas estrangeiras, depois doacontecido icara que nem uma bruxa de pano. A casa-grande se fechoupara sempre, nunca mais as senhores voltaram, a hera cresceu pelasvarandas,ocapiminvadiuacozinhaeosquepassampertoouvemhojeospiosdascobrasquefazemninholádentro.Joanaterminouasuanarração,bebeuoutrotragodecachaça,cuspiu,procuroucomosolhosaEster.Masela já não estava, correra para casa, para junto do ilho, como se foraenlouquecertambém.

Agora,navaranda,ondeosolbrincadescuidado,Ésterrecordaessaeoutrasnoitesdeterror.DeParis,Lúcia lheescrevia,cartasquelevavamtrêsmesesa chegareque traziamnotíciasdeoutravida,deoutragente,decivilizaçãoede festas.Aquieramasnoitesdamata,dotemporaledascobras. Noites para chorar sobre o destino desgraçado. Crepúsculos queapertavamo coração, tiravam todaa esperança.Esperançadeque?Tudoeratãodefinitivonasuavida...

Choravanoutrasnoitestambém.QuandoviaHoráciosairáfrentedeumgrupodehomensparaumaexpediçãoqualquer.Sabiaquenessanoite,emalgumapartesoariamostiros.Quehomensmorreriamporumpedaçode terra, que a fazenda deHorácio, que era também sua, aumentaria demais um pedaço de mata. De Paris, Lúcia escrevia, contava bailes naEmbaixada, óperas e concertos. Na casa-grande da fazenda, o piano decaudaesperavaumafinadorquenuncaviera.

Noites emqueHorácio saíana frentedoshomenspara expediçõesarmadas! Certa vez, depois dele partir, Ester se encontrou imaginando amorte de Horácio. Se ele morresse... Então as fazendas seriam somentedela, entregaria ao pai para administrá-las e partiria... Iria encontrarLúcia... Foi porém um sonho curto. Para Ester, Horácio era imortal, era odono,opatrão,ocoronel...Tinhacertezadequemorreriaantesdele...Eledispunha da terra, do dinheiro e dos homens. Era feito de ferro, nuncaadoecera,pareciaqueasbalasoconheciametemiam...Porissoelanemseabalou naquele sonho tão ruim e tão maravilhoso... Para ela não tinhamesmojeito,nemesperança.Suavidaeraaquela,aqueleeraseudestino.Eem Ilhéusquantamoçanão a invejavaEla era adonaEster, amulherdohomem mais rico de Tabocas, do chefe político, dono de tantas terrasplantadasdecacauedetantamatavirgem...

Horácio chegou juntoda rede.Estermal teve tempodeenxugaraslágrimas. Ele trazia namão um pequeno coco de cacau, primícia da roçanova.Vinhaquasesorridente:

—Aroçajáestábotando...Ficou parado, não compreendia por que ela estava chorando.

Primeirolhedeuraiva:—Porquediaboestáchorando?Suavidaéchorar?Nãotemtudoo

quequer?Queéquelhefalta?Esterprendeuosoluço:—Nãoénada...Besteiraminha...Tomoudofrutodocacaueiro,sabiaqueaquiloagradariaaomarido.

Horácio sorriu já alegre, já feliz da esposa, os olhos descendo pelo corpodela.Aliestavamasúnicascoisasqueeleamavanomundo:Esterecacau.Sentou-sejuntoaelanarede,perguntou:

—Porquechora,tola?—Nãoestoumaischorando...Horácio icou pensando, logo falou, os olhos estirados para o lado

dasroças,opequenococodecacaunamãocalosa:—Quandoomeninocrescer—semprechamavao ilhode"menino"

—elehádeencontrartudoissoaquicheioderoça.Tudocultivado...Ficoumaistempocalado,porfimconcluiu:— Meu ilho não vai precisar viver socado nas brenhas como a

gente.Voumeterelenapolítica,vaiserdeputadoegovernador.Praissoéquefaçodinheiro.

SorriuparaEster,desceuamãopelocorpodela.Depoisavisou:—Enxugueessesolhos,mandefazerumjantardireitoquehojevem

comer aqui o Dr. Virgílio, esse advogado novo que tá em Tabocas e éprotegidodoDr.Seabra.Evocêsevistadireitotambém.Eprecisomostraraomoçoqueagentenãoébichodomato.

Riu sua risada curta, deixou com Ester o coco de cacau, saiu paradarordensaostrabalhadores.Ester icoupensandonesse jantardanoite,com esse tal de advogado, igual naturalmente ao Dr. Rui que seembriagavae icava,nahoradasobremesa,acuspirparatodososladosea contar histórias porcas... E, de Paris, Lúcia escrevia cartas, falava defestasedeteatros,devestidosedebanquetes...

5

Osdoishomenstranspuseramaporta,onegrofalou:—Mandouchamar,coronel?JucaBadaroia dizer que eles entrassem,mas o irmão fez um gesto

com a mão que eles esperassem lá fora. Os homens obedeceram esentaramnumdos bancos demadeira que estavamna varanda larga dacasa-grande. Juca andou de um lado para outro da sala, pitou o cigarro.Esperavaqueoirmãofalasse.SinhôBadaró,ochefedafamília,descansavanumaaltacadeiradebraços,cadeiraaustríacaquecontrastavanãosócomorestodomobiliário,bancosdemadeira, cadeirasdepalhinha redesnoscantos, como também com amística simplicidade, das paredes caiadas. Orelógio na sala de jantar deu as cinco horas da tarde. Sinhô Badarópensava,osolhossemicerrados,alongabarbanegraseestendendosobreopeito.Levantouosolhos,espiouJucaqueandavanervosamentepelasala,orebenquenumamão,ocigarrofumegandonaboca.Maslogodesviouosolhos e itou o único quadro da parede, uma reprodução oleográ ica deumapaisagemdecampoeuropeu.Ovelhaspastavamnumasuavidadeazul.Pastores tocavam uma espécie de lauta e uma camponesa, loira e linda,bailava entre as ovelhas. Descia uma imensa paz da oleogravura. sinhôBadaróse lembroudecomoacomprara.Entraracasualmentenumacasa

de sírios na Bahia para avaliar um relógio de ouro. Vira o quadro e selembraraqueDon'Anahámuitodiziaqueasparedesdasalanecessitavamde algo que as alegrasse. Por isso o comprara e só agora reparava neleatentamente.Eraumcampotranquilo,deovelhas,pastores, lautasebaile.Azul,quasecordocéu.BemdiferenteeraessecampodelesEssaterradocacau. Por que não haveria de ser assim também como esse campoeuropeu? Mas Juca Badaró andava impaciente de um lado para outro,esperava a decisão do irmãomais velho. A Sinhô Badaró repugnava vercorrer sangue de gente. No entanto muitas vezes tivera que tomar umadecisão comoaque Jucaesperavanaquela tarde.Nãoera aprimeiravezqueordenavaqueumoudoisdeseushomensfossemsepostarna"tocaia"paraesperaralguémquepassarianaestrada.

Olhouoquadro.Bonitamulher...Defacesrosadas,osolhoscelestes.Mais bonita talvez que Don'Ana... E os pastores eram sem dúvida bemdiversos dos tropeiros da fazenda... Sinhô Badaró gostava da terra e deplantar a terra. Gostava de criar animais, os grandes bois mansos, osnervosos cavalos, as ovelhas de terno balar. Mas lhe repugnava ter deordenar a morte de homens. Por isso demorava sua decisão, só apronunciava quando via que era o único caminho. Ele era o chefe dafamília, estava construindo a fortuna dos Badarós, tinha de passar porcimadaquiloqueJucachamavaas"suasfraquezas".Nuncahaviareparadoantes,detidamente,naquelequadro.Ocoloridoazuleraumabeleza...Bemmaisbonitoquequalquerfolhinhadefimdeano,ehaviafolhinhaslindas...

JucaBadaróparouemfrenteaoirmão:—Eujálhedisse,sinhô,quenão há outro jeito... O homem empacou que nem um jumento... Que nãovendearoça,quenãohádinheiro,queelenãoprecisa...EvocêbemsabequeFirmosempretevefamadecabeçudo.Nãotemjeitomesmo.

SinhôBadaróarrancoucom tristezaosolhosdoquadro:—Épenaqueéumhomemquenuncafezmalàgente...Senãofosseporqueesseéoúnico jeito de estender a fazenda prós lados de SequeiroGrande... SenãovaicairnasmãosdeHorácio...

Suavozsealterou ligeiramentequandopronunciouonomeodiado.Jucaaproveitou:

—Seagentenãomandafazeroserviço,Horáciomandanacerta.EquemtiveraroçadeFirmotemachavedasmatasdeSequeiroGrande.

Sinhô Badaró estava perdido novamente na contemplação doquadro.Jucacontinuou:

— Tu sabe, Sinhô, que ninguém conhece terra pra cacau como euconheço.Tuveiodeforamaseujánasciaquiedesdemeninoqueaprendi

aconhecer terraqueéboaproplantio.Posso tedizerquebastaeupisarnumaterraesei logoseelaprestaounãoprocacaueiro.Éumacoisaquetenhonasoladospés.PoiseutedigoquenãoháterramelhorpralavouradecacauqueasdeSequeiroGrande.Tusabequeeujápasseimuitanoitedentrodaquelemundodemataespiandoaterra.Eseagentenãochegaládepressa,Horáciochegaantes.Eletambémtemfaro...

SinhôBadarópassouamãopelabarbanegra:— E engraçado, Juca, tu é meu irmão, tuamãe foi a mesma velha

FilomenaquemepariueDeustenhaemsuaguarda.Teupaierao inadoMarcelino que era omeu pai também. E nós dois é tão diferente um dooutro como pode ser duas pessoas nomundo. Tu gosta de resolver logotudocomtirosemortes.Euqueriaquetumedissesse:tuachabommatargente? Tu não sente nada? Nada por dentro? Aqui! — e Sinhô Badarómostravaolugardocoração.

Juca pitou o cigarro, bateu com o rebenque na bota enlameada,andoupelacasa.Depoisfalou:

— Se eu não te conhecesse, Sinhô,mas eu te conheço, e se não terespeitassecomomeuirmãomaisvelho,eueraatécapazdepensarquetueraumcagão.

—Tunãorespondeuoqueeuteperguntei.— Se gosto de ver gente morrer? Nem sei mesmo. Quando tenho

raivadeum,soucapazdecortareledevagarinho.Tusabe...—Equandonãotemraiva?—Toda vez que um semete naminha frente temque sair pra eu

passar. Tu é meu irmão mais velho e é tu quem resolve das coisas dafamília. Tu é que Pai deixou tomando conta de tudo: das roças, dasmeninas,demimmesmo.TuéquetáfazendoariquezadosBadarós.Maseu tedigo,Sinhô,queseeu tivesseno teu lugaragente tinhaduasvezesmaisterra.

Sinhô Badaró levantou-se. Era alto de quase dois metros a barbarolavapelopeito,negradetinta.Osolhosseacenderam,suavozencheuasala:

—Equandotujámeviu,Juca,deixardefazerumacoisaquandoeranecessário? Tu bem sabe que eu não tenho esse gosto de sangue que tutem.Masquandotujáviueudeixardemandarliquidarumquandohouvenecessidade?

Jucanão respondeu.Respeitavao irmãoe talvezaúnicapessoadomundoqueeletemessefosseSinhôBadaró.Estebaixouavoz:

—Sóquenãosoucomotu,umassassino.Souumhomemquesófaz

as coisas por necessidade. Tenho mandado liquidar gente, mas Deus étestemunhaque só façoquandonão tem jeito. Seique issonãovalenadaquandochegarodiadeprestarcontasláemcima—apontavaocéu.Masparamimmesmo,temoseuvalor.

Jucaesperouqueoirmãoseacalmasse.—Tudo isso por causa de Firmo, um idiota cabeçudo. Tu podeme

chamardoquequiser,eunãomeimporto.Agorasótedigoumacoisa:nãohá terra pra cacau como as de Sequeiro Grande e se tu quer elas prósBadarósnãohájeitomesmo...Filmonãovendearoça.

SinhôBadaró fezumgesto comamão, Juca compreendeu, chamouoshomensqueestavamnavaranda.Mas,antesqueelesentrassem,disse:

—Setunãoquer,euexplicotudoaoscabras.Sinhôsemicerrouosolhos,sentou-senaaltacadeira:— Quando decido uma coisa, tomo a responsabilidade. Eu mesmo

falo.Olhou o quadro, tão tranquilo na sua paz azul. Se aquela terra

retratada na oleogravura fosse boa para o cultivo do cacau ele, SinhôBadaró, teria que mandar jagunços pra detrás de uma árvore, para a"tocaia", jagunçosque liquidassemospastoresque tocavamgaita, amoçarosadaquedançavatãoalegre...Oshomensestavamesperando,elefezumesforço,esqueceutodaacenadoquadro,amulherparandoseubailecomo tiro que ele mandara dar, começou a repetir ordens com sua vozpausadadesempre,firmeecalma.

6

Pelaestradaondeoventadatardelevantaumapoeiravermelhadebarro vão dois homens, cada um com sua repetição a tiracolo. Viriato,mulatosararáquevieradosertão,propõeumaaposta:

—Touapostandocincomil-réisqueohomemvemédomeulado...Acontecia que a estrada real se bifurcava nas proximidades da

fazendoladeFirmo.PorissoSinhôBadarómandaradoishomens.Umparacadacaminho.OnegroDamião,queeraseuhomemdecon iança,certeironapontaria,devotadocomoumcãodecaça, icarianoatalhoporondeeramaisprovávelqueFirmopassasse,economizandocaminhoetempo.Viriatoesperaria na estrada real, por detrás de uma goiabeira onde já outroshaviamcaído antes.Viriato estápropondoumaaposta e apesardeque équase certo que Firmo venha pelo atalho, Damião não aceita. Viriato se

admira:—Toutedesconhecendo,irmão.Tácurtodearame?...Masnãoeraporque lho faltasse cincomil-réis, saláriodedoisdias,

queDamiãonão aceitava.Muitas vezeshavia apostadomais que isso, emoutras tocaias,noutras tardes comoesta.Mashojeháalgumacoisaqueoimpededeaceitar.

A noite vai caindo sobre os dois homens na estrada deserta deviandantes.Sóencontraramatéagoraumhomemmontadonumburroqueos olhou muito e logo esporeou o burro pedindo distância. Quem nãoconhece nessas redondezas ao negro Damião, o jagunço de con iança deSinhôBadaró Sua fama corre terra, hámuito que está alémdaPalestina,de Ferradas e de Tabocas. Dos botequins de Ilhéus; onde comentavamseus feitos, ele viajara nos pequenos navios até a capital e um jornal daBahia já publicara seu nome em letra redonda. Como era um jornal deoposição falava muito mal dele, chamava-o de nomes feios. Damião selembraperfeitamentedessedia:SinhôBadaróomandarachamarnacasa-grandenahoradoalmoço.Estavamuitagentenamesa,ondeasgarrafasde vinho destapadas revelavam a presença do juiz. Estava também oDr.Genaro, o advogado dos Badarós, e fora ele quem trouxera o jornal. Dr.GenaronãoerabrilhantecomooDr.Rui,nãosabiafazeraquelesdiscursoscheios de palavras bonitas, mas conhecia meticulosamente todos osintrincados detalhes da lei e de como passar por cima da lei, e SinhôBadaró o preferia a qualquer dos vários advogados do foro de Ilhéus.SinhôBadarósorriuparaDamião,mostrou-oaosoutros:

—Táaquiafera...Comoeleriu,Damiãoriutambém,seulargorisoinocente,osdentes

brancos e perfeitos brilhando na enorme boca negra. O juiz bêbado riualegrementemasoDr.Genaroapenassorriuedavaaimpressãodequeofaziaporpuracortesia.SinhôBadarócontinuou,agorafalavaparaDamião:

—Tusabe,negro,queosjornaisdacapitaltãoseocupandodetiDizque não há melhor matador nessa zona que Damião, o cabra de SinhôBadaró.

DiziacomorgulhoecomorgulhoDamiãorespondeu:—Everdade,Sinhô,sim.Nãoseidecabramaiscerteironapontaria

queessenegroquetáaqui—eriunovamentecomsatisfação.Dr.Genaroengoliuemseco,encheuseucopo.OjuizacompanhouagargalhadadeSinhôBadaró.Esse leuanotíciapara

Damião que só a compreendeu pela metade, havia muitos termosdemasiado di íceis para ele. Mas se foi satisfeito porque Sinhô Badaró

gritaraparadentro:—Don'Ana!Don'Ana!A ilhachegoudacozinhaondedirigiaoandamentodoalmoço,era

morenaeforte,silvestreflordamata:—Queé,pai?Ojuizaolhavadeolhosinteressados.SinhôBadaróordenou:—Tiracinquentamil-réisdocofreedáaDamião.Onomedeleanda

pelosjornais.Depoisdespediuonegroeaconversacontinuaranasaladealmoço.

DamiãoforaaPalestinagastarodinheirocomasrameiras.Beberaanoitetodaea todagentecontavaqueumjornaldaBahia tinhaescritoquenãohaviapontariacomoadele.

Por isso o homem montado esporeava o burro. Sabia que tiro donegro Damião era caixão de enterro encomendado e sabia também quecabra de Sinhô Badaró era cabra garantido, não havia polícia para eles.Toda a gente sabia que o juiz era homem dos Badarós, até roça tinhambotadoparaele,osBadarósestavamporcimanapolítica,contavamcomajustiça.Quandoohomemesporeouoburro,Viriatoriusedivertindo.MasonegroDamiãoficousérioeViriatorepetiu:

—Toutedesconhecendo,irmão.Damiãotambémestavasedesconhecendo.Muitasvezesjáforapara

outras"tocaias",esperarhomensaquemmatar.Ehojeeracomose fossepelaprimeiravez.

Aquiaestradasebifurcava.Viriatoinsistiu:—Nãoquerapostar,negro—Jádissequenão.Se separaram, Viriato foi assobiando. A noite descera

completamente, a lua iniciava sua subidaparao céu.Noiteboaparauma"tocaia".Seviaaestradacomosefossededia.OnegroDamiãotomoupeloatalho, sabia de uma árvore magní ica para a espera. Era uma jaqueirafrondosa na beira da estrada, parecia de propósito para um homem seesconder atrás dela e atirar no que passasse. "Nunca atirei em nenhumdessa jaqueira", pensou Damião. O negro vai triste, desde a varanda eleouviraaconversadosirmãosBadarós.OuviraoqueSinhôdisseraaJucaeé isso que o perturba nessa noite. Seu coração inocente está apertandonuma agonia. Nunca Damião se sentiu assim. Não compreende, nada lhedóinocorpo,nãoestádoente,enoentantoeracomoseoestivesse.

Se antes alguém lhe dissesse que era terrível esperar homens na"tocaia"paramatá-los,elenãoacreditaria,poisseucoraçãoerainocentee

livredetodaamaldade.AscriançasdafazendaadoravamonegroDamiãoqueserviadecavaloparaasmaispequenas,que iabuscar jacamolenasgrandes jaqueiras, cachos de banana-ouro nos bananais onde viviam ascobras, que selava cavalos mansos para os maiorzinhos passearem, quelevava todos para o banho no rio e lhes ensinava a nadar. As crianças oadoravam,paraelasninguémeramelhorqueonegroDamião.

Suapro issãoeramatar,Damiãonemsabemesmocomocomeçou.Ocoronel manda, ele mata. Não sabe quantos já matou. Damião não sabecontar além de cinco e ainda assim pelos dedos. Tampouco lhe interessasaber. Não tem ódio de ninguém, nunca fez mal a pessoa alguma. Pelomenosassimpensouatéhoje.Porquehojetemocoraçãopesadocomoseestivessedoente?Édelicadonasuarudeza,seháumtrabalhadorenfermona fazenda, logo aparece Damião para fazer companhia, para ensinarremédios de ervas, para chamar Jeremias, o feiticeiro. Por vezes oscaixeiros-viajantes que param na casa-grande obrigam-no a contaralgumas das mortes que ele praticou. Damião narra com voz calma,inocentedetodoomal.ParaeleumaordemdeSinhôBadaróéindiscutível.Se ele manda matar há de matar. Da mesma maneira que quando elemandaselarasuamulapretaparaumaviagemháqueselaramulapretarapidamente.Edemais,nãoháoperigodacadeiaporquecabradeSinhôBadaró nunca foi preso. Sinhô sabe garantir os seus homens, trabalharparaeleéumprazer.NãoécomoocoronelClementinoquemandavafazero trabalho e depois entregava os homens. Damião desprezava o coronel.Um patrão assim não é patrão para um homemde coragem servir. ele oserviramuitoantesquandoeraumrapazola.Láaprenderaaatirar,paraClementinomataraoprimeirohomem.Eumdiatevequefugirdafazendaporque a polícia fora procurá-lo e o coronel nem o avisara sequer... Seacoitaraemterras

dosBadaróseagoraeraohomemdecon iançadeSinhôSenoseucoração há algummau sentimento é o desprezo profundo que ele sentepeloCoronelClementino.Porvezes,quando falamnoseunomenascasasdostrabalhadores,onegroDamiãocospeediz:

— Aquilo não é homem. É mais covarde que uma mulher... Deviavestirsaia...

Diz e depois ri com seus dentes brancos, com seus olhos grandes,com o rosto todo. Risada feliz e sã, inocente como a gargalhada de umacriança.Rolavapela fazenda,ninguémadistinguiada risadadas criançasquando Damião estava brincando com elas no terreiro, ao lado da casa-grande.

OnegroDamiãochegaà jaqueira.Tiraarepetição,coloca-asobreotroncodá árvore.Deumbolsoda calça saca opedaçode fumode corda.Começacomofacãoacortarfumoparaumcigarro.Aluaagoraéenormeeredonda,tãograndeassimDamiãonuncaviu.Senteque

dentro dele alguma coisa se aperta como se tivesse uma mãoenorme,umadassuasenormesmãosnegras, aapertá-lopordentro.Nosseus ouvidos ainda soam as palavras de Sinhô Badaró: "Tu acha bommatargente?Tunãosentenada?Nadapordentro?"Damiãonuncapensouquesepudessesentirnada.Ehojeelesente,aspalavrasdocoronelestãosobre seu peito como um peso impossível de arrancar, mesmo por umnegrofortecomoDamião.elesempreodiouador ísica.Suportava-abem,umavezdeuumprofundo talhonobraço esquerdo como facão, quandocortava os cocos de cacau nas roças. Atingira quase o osso e ele odiou ador,sebemquecontinuasseassobiandoenquantoDon'AnaBadaróbotavaiodona ferida.Outravez Jacundinoo cortara tambéma facão, três talhosnuma perna. Aquilo, aquela dor ele compreendia, era uma coisa queestava,porassimdizer,diantedosseusolhos.Masoqueelesenteagoraédiferente.Coisasemqueelenuncapensouenchemsua cabeçaquase tãograndecomoadeumboi.TinhaaspalavrasdeSinhôBadarómetidasnacabeça e atrás delas vinham imagens e sensações, velhas imagens jáesquecidasenovassensaçõesantesdesconhecidas.

Acaboudefazerseucigarro.Aluzdofósforobrilhounamata.Pitou.elenuncapuderaimaginarocoronelcomremorso.Eraremorsoapalavra.Uma vez um caixeiro-viajante lhe perguntara se ele, Damião, não tinharemorsos. ele pedira que lhe explicasse o que era. O viajante explicou eDamiãoapenasdissenamaiorinocência:

—Porque?Ocaixeiro-viajante saíra assombradoe atéhojenarravao casonos

cafésdaBahia, quando, comoutros, discutia sobre a humanidade, a vida,os homens, e outras iloso ias. Depois, numNatal, Sinhô Badaró trouxeraum frade para celebrar missa na fazenda. Havia armado um altar navaranda — uma beleza de altar, ao se lembrar Damião sorri seu únicosorriso dessa noite de "tocaia"— Damião ajudaramuito a Don'Ana, a jáinada Lídia, esposa de Sinhô, a Olga, mulher de Juca, que tratavam dafesta. O frade chegou de noite, houve um jantar com uma in inidade depratos,galinhas,perus,carnedeporcoedecarneiro,caçaeatépeixequehaviam mandado buscar em Água-Branca. Havia aquela pedra fria quechamavam gelo e Don'Ana, que era umamenina icandomoça, dera umpedaço a Damião, pedaço que lhe queimara a boca. Don'Ana rira muito

com a cara desconsolada do negro. No outro dia foi a missa, quem eraamigadosecasou,osmeninossebatizaram,ospadrinhoseramsempredafamíliadosBadarós.Por imofradefezumsermão,umdiscursoquenemoDr.Ruieracapazdefazertãobonitonos jurisdeIlhéus.Éverdadequeele tinha a línguameio embolada porque era estrangeiro,mas talvez porisso mesmo quando falava do inferno, das chamas que queimavam oscondenadosparatodoosempre, faziaestremeceroshomens.AtéDamiãoicaracommedo.Antesnuncapensaranoinferno,depoistampoucovoltouapensar.Sóhojeselembradofrade,dasuavozgritandocomódiocontraos que matavam seus semelhantes. O frade falara muito em remorso, oinfernoemvida.Damião jásabiaoqueeraremorso,masnaquelaocasiãotampouco a palavra o impressionou. Ficara impressionado, sim, com adescriçãodo inferno,um fogoquenãoacabava,umqueimar sem imdascarnes.NopulsoDamiãotemamarcadeumaqueimadura,umabrasaquelhecaíraemcima,umdiaemqueajudavaasnegrasnacozinha.Doeradefazermedo. Imagine então o corpo todo queimado e queimando sempre,sempre,sempre.Eofradedissequebastavamatarumparaircomcertezapro inferno. Damião nem sabe quantos matou. Sabe que foram mais decincoporqueatécincosabecontarecontou.Depoisperderaaconta,semachar que aquilo tivesse muita importância. No entanto hoje, enquantofuma seu cigarro na "tocaia", ele se esforça inutilmente para se recordarde todos. Primeiro fora aquele tropeiro que desfeiteara o coronelClementino.Foraumacoisa inesperada,ele iacomocoronel,montadososdois,quandocruzaramcomatropaqueviajavaparaoBanco-da-Vitória.OtropeiroquandoviuClementinolançaraolongochicotedetocarosburrosnacaradocoronel.Clementinoficarabranco,gritaraparaDamião:

—Abaixaele...Foicomumrevólverquelevavanocinto.Atiroueotropeirocaiu,os

burros passarampor cima do cadáver. Clementino tocou para a fazenda,norostolevavaamarcavermelhadochicote.Damiãonemtiveratempodepensar no caso porque a polícia apareceu dias depois e ele tivera quefugir. Depois começaria a matar para Sinhô Badaró: Zequinha Fontes, ocoronel Eduardo, aqueles dois jagunços de Horácio no encontro deTabocas,faziamcinco,masjáSílviodaTocaonegroDamiãonãosabiaquenúmero era. Muito menos o homem que quisera atirar em Juca BadarónumacasademulheresemFerradasequesónãoatirouporqueDamiãopuxara antes o revólver. Muito menos os que se seguiram. Que númeroseriaFirma?"VoupediraDon'Anaquemeensineacontarnaoutramão."Haviatrabalhadoresquesabiamcontarnosdedosdamãoenosdedosdos

pés, mas estes eram uns inteligentes, não eram um negro burro comoDamião.Mas agora era necessário saber contar pelomenos os dedos daoutramão.Quantoshomensjáhaviamatado?Aluasobesobreajaqueira,ilumina a estrada por onde virá Firmo. Sim, porque com certeza ele virápor aqui enãopela estrada real onde estáViriato. Éumatalhodequaseuma légua, Firmodeveestar compressade chegar emcasa,de arrancaras botas e deitar com dona Teresa, sua mulher. Damião a conhecia,algumasvezespararaemfrentedacasa,quandoiadeviagem,parapedirumcanecodeágua.EdonaTeresa,umcertodiaatélhederaumapingaetrocara duas palavras com ele. Era bonita, branca que nem um papel deescrever. Mais branca que Don'Ana. Don'Ana era morena, queimada dosol. Dona Teresa parecia que nunca tinha estado ao sol, que o sol nãoqueimavasuasfaces,suacarnebranca.Tinhavindodacidade,era ilhadeumitalianoepossuíaumavozbonita,pareciaqueestavacantandoquandofalava.Firmo,comcerteza,vemcompressadechegaremcasa,deitarcomamulher,seen iarnaquelascarnesbrancas.Mulhernaquelasbandaseracoisarara.Tirandoasrameirasdospovoados,quatrooucincoemcadaum,cada qual mais acabada de doença, apenas uns poucos homens tinhammulher.EclaroqueissosepassavacomostrabalhadoreseFirmonãoeraumtrabalhador,tinhaumarocinha,iaandandoparaafrente,sedeixassemia acabar um coronel com muitas terras. Botara a rocinha, foi logo praIlhéus arranjar uma mulher. Casara com a ilha de um italiano que erapadeiro.Mulherbrancaebonita,atéhaviamditoqueJucaBadaró,queeradoido por mulher, andara de Olho nela. Damião não sabia ao certo. Masmesmoquefosseverdade,comcertezaelenãotinhaqueridonadaporqueJuca arrepiara carreira e os comentários haviam cessado. Sim, não tinhadúvida,Firmoviriapeloatalho,nãoiaencompridarcaminhoquandotinhaumamulherbrancaemoçaesperandoporele.E'averdadeéqueonegroDamiãoestápreferindoqueFirmovenhapelaestradareal...Éaprimeiravezquelheaconteceisso.Naconfusãoquevaipelasuacabeçaepeloseupeitoelesentetambémumacertahumilhação.

Parecia até que ele não estava acostumado. Parecia até AntónioVítor, aquele trabalhador que viera de Sergipe e que quandomatara umhomemnoencontrodeTabocas,comagentedeHorácio, icaratremendoanoite toda, chegara mesmo a chorar que nem uma fêmea. Depoisacostumara e agora erao capangade JucaBadaró, andava sempre a seuladonassuasviagens.QuemestavaigualaAntónioVítor,naquelediaeraonegroDamiãocomosenãoestivesseacostumadoa icarumanoitetodana"tocaia'esperandoumhomem.Seosoutrossoubessemiaserirdelecomo

se haviam rido de António Vítor naquela noite do barulho de Tabocas. OnegroDamiãofechaosolhosparaverseconsegueesquecertodasaquelasimagens.O cigarro jáacaboueelepensa sevaleapena fazeroutro.Tempoucofumoeaesperapodedemorar.QuemsabeaquehorasviráFirmo?Fica indeciso,estáquasecontenteporqueagorasópensanesseproblemadofumo.Fumobom...Esseésertanejodobom,oqueéfeitoemIlhéusnãovale nada, é uma desgraça, seco, não dura... Mas que faz ali Teresa? Ebranca,Damiãoestápensandoenofumonegro,queéquevemfazeraliorostobrancodedonaTeresa?Quemachamou?OnegroDamiãotemraiva.Mulher é sempre metida, aparece sempre onde ninguém a chama. Mástambém, por que Sinhô Badaró, naquela tarde, dera de falar naquelascoisas para o irmão? Por que pelomenos nãomandara que ele e Viriatofossemparalonge?Davarandaouviaaconversatoda:

—Tuachabommatargente?Tunãosentenada?NadapordentroO negro Damião está sentindo. Antes nunca sentia nada. Talvez se

não fosse Sinhô Badaró quem houvesse falado, se fosse o próprio Juca,talvezelenemligasse.MasSinhôBadaróeracomoumdeusparaDamião.Respeitava-omaisqueaJeremias,ofeiticeiroqueotinha"curado"debalaedemordidadecobra.Easpalavras tinham icadodentrodele,pesavamsobreseucoração,andavampelasuacabeça.EtraziamParaasuafrenteorosto brancode donaTeresa, esperando omarido, repetindo as palavrasde SinhôBadaró, as palavras do frade também. Ela erameio estrangeiracomoo frade. Sóque a vozdo frade era cheia de raiva, anunciava coisasterríveis,eavozdedonaTeresaeradocecomoumamúsica.

Já não pensava em fazer um cigarro e pitar. Pensava era emdonaTeresa esperando Firmo para o amor na cama de casal. Carnes brancasque esperavam o marido. Tinha cara de ser uma criatura boa. Uma vezderaumapingaaonegroDamião...Etrocaracomeleumaspalavrassobre

o sol que batia a estrada naquela tarde. Sim, era umamulher boa,sembesteiras.Bemquepodianemter faladoaumnegroassassinocomoDamião.Elatinhasuaroçadecacau,podiaserumaorgulhosacomotantasoutras.Mastinhalhedadoumapingaefalarasobreosolescaldante.Nãotiveramedodelecomomuitasoutras...Muitasoutrasque,malenxergavamonegroDamiãoquevinhavindo,seescondiampelacasaadentro,eramosmaridos que atendiam. Damião sempre se rira dessemedo que algumassenhoras lhe tinham, até se orgulhava dele: era a sua fama, que corriamundo.Mas hoje, Damião, pela primeira vez, imagina que não fugiam deum negro valente. Que fugiam de um negro assassino... Um negroassassino... Repetiu as palavras baixinho, devagarinho, e elas soaram

tragicamenteaosseusouvidos.O fradedissequeninguémdevematarosoutros,queéumpecadomortalquesepagavacomoinfernoDamiãonãoligara.MashojeforaSinhôBadaróquedisseraaquelascoisassobrematar.Um negro assassino... E dona Teresa era boa, bonita como que, brancacomoelanãohaviaoutranasfazendaspróximas...Gostavadomarido,bemse via, tanto que nem aceitara o arrastar de asa de Juca Badaró, homemricoporquemasmulheresviviamsebabando...Asmulherestinhammedodele,donegroDamião,oassassino.Agoraserecordavadeumasérielongadedetalhes,mulheresquedesapareciamdos terreirosquandoelesurgia,outrasqueoespiavamamedopelasfrestasdas janelas,aquelaprostitutade Ferradas que não quis dormir com ele de jeito nenhum" apesar delemostraranotadedezmil-réisnamão...Nãoquiseradormircomele.Nãodissera por quê, inventara que estava doente, mas na sua cara, Damiãovira outra coisa: o medo. Não ligara, rira sua gargalhada ampla, foi embuscadeoutramulher.Masagoraarecusadarameira lhedóinopeito játão feridonessedia.SóDon'AnaBadaróeraboacomele,não tinhamedodo negro. Mas Don'Ana era uma mulher valente, era da família dosBadarós. As crianças é que não tinham medo dele, as crianças nãoentendiamnadaainda,nãosabiamqueeleeraumassassinoqueiaparaas"tocaias" esperar homens para derrubar com sua pontaria certeira.Gostava das crianças. Se entendiamelhor com elas que com os grandes.Gostava de brincar com os ingênuos brinquedos dosmeninos das casas-grandes, gostava de fazer as vontades dos ilhos miseráveis dostrabalhadores. Se dava bem com as crianças... E, de súbito, a ideiaaterradoracortousuacabeça:esedonaTeresaestivesseprenhe,um ilhona barriga? Ia nascer sem pai, o pai teria icado debaixo da pontaria donegro Damião... Faz uma força imensa, sua enorme cabeça está pesadacomonosdiasdegrandebebedeira:não,donaTeresanãoestágrávida,elerepararabemnelanodiaemquehaviamtrocadoduaspalavrasnaportadacasadeFirmo.Elanãotinhabarriganenhuma,não,nãoestavaprenhe...Masissojáfaziaseismeses,quemsabeseagora?Bemquepodeestarpraparir,um ilhonabarriga... Ianascersempai, ia saberqueopai caíranaestradanumanoitede lua,derrubadopelonegroDamião.E teriaódiodonegro,nãoseriacomoasoutrascriançasquevinhambrincarcomDamião,quesubiamnassuascostasquandoaindanãopodiammontarnosburrosmaismansos. Não comeria jaca colhida pelo negro Damião, nem banana-ouroqueonegro iabuscarnosbananais.Olhariaonegro comódio,paraeleDamiãoseriasempreoassassinodeseupai...

Damião sente uma tristeza in inita. A lua sobre ele, a jaqueira o

escondedaestrada,a repetiçãodescansano tronco.Outrosmarcavamnocabo da arma, com um traço, cada morto derrubado. Ele nunca o izeraporque não queria estragar sua repetição. Gostava dela, guardava-asempredependuradasobresuacamadetábuas,semcolchão.Porvezes,ànoite, SinhôBadaró tinhaque sairdeviagememandava chamaronegroparaacompanhá-lo.Erasópegardarepetiçãoeandarparaacasa-grande.Osburrosjáestavamselados,quandoSinhômontavaelemontavatambém,ia atrás do patrão, a repetição na frente da sela. Podia um homem deHorácio estar escondido na estrada. Acontecia que Sinhô Badaró ochamavaparaafrenteeiaconversandocomelesobreasraças,assafras,sobre o estado do cacau mole, sobre uma série de coisas que serelacionavamcomavidadafazenda.EsseseramdiasfelizesparaonegroDamião. Felizes também porque, quando chegavam no termo da viagem:Rio-do-Braço,Tabocas,FerradasouPalestina,ocoronellhedavaumanotadecincomil-réiseeleiapassarorestodanoitenacamacomumamulher.Aí deixava a repetição nos pés da cama porque Sinhô poderia querervoltar aqualquermomentoeummolequedopovoado corria as casasdemulheres à procura do negro. Ele saltava da cama— certa noite saltoumesmo do corpo da mulher — pegava da repetição e ia de novo. Seencaminharacomaarma,a trazia limpa,davagostover.Hoje,noentanto,nemaquermirar,seusolhosprocuramoutravisão.Aluaestánoaltodoscéus.Porquesepode itara luaenãoháolhosqueaguentem itarosol?EsseproblemanuncaocorreraaonegroDamiãoAgorasetrancanele,suacabeça toda empregada em resolve-lo. Assim não vê dona Teresa, nem ofilhoqueelavaiter,nemavozdeSinhôBadaróperguntandoaJuca:

—Tuachabommatargente?Tunãosentenada?Nadapordentro?Porqueninguémpodeolharosoldecaraparacima?Nãoháquem

aguente. Também aos homens que matara, Damião nunca havia olhadodepois. Não tinha tempo, tinha que arribar logo depois de feito o"trabalho".Tambémnunca tiveraodesgostode saberqueum icara comvida,comoofinadoVicenteGarangauquetinhatantafamaefoiacabarnasmãos de um em quem atirara. Não foi se certi icar se o homem estavamortomesmoedepois terminoudaquelamaneirahorrorosa, cortadoaospedacinhos. Damião também nunca foi ver nenhum dos que derrubou.Como icariam?Elejáviumuitohomemmorto,mascomoseriaquehaviamde icarosqueelematou?Como icariaFirmonessanoitedehoje?Cairiade bruços sobre o burro, que o arrastaria na corrida, ou cairia logo nochão,o sanguecorrendodopeito?Assimdepeito furadoo levariamparacasa quando o encontrassem no outro dia. Dona Teresa la estaria a lita

comademora.Equefariaquandoovissechegarjáfrio,mortopelonegroDamião? As lágrimas desceriam pelo seu rosto branco de cal. Talvez atéizessemal àprenhezdela.Talvez, como choque, tivesseo ilho antesdotempo. Talvez até morresse, que era fraca, tão magra na sua brancura...Assim,emvezdematarum,onegroteriamatadodois...Teriamatadoumamulhereissoumnegrovalentenãofaz...Eomenino?Nãoestavacontandocom omenino. Com omenino—Damião contou nos dedos – eram três...Agora já não discutia que Teresa estivesse grávida. Era uma coisa certaparaele.Iamatartrêsnessanoite.Umhomem,umamulhereummenino.Osmeninos são tão lindos, bons para o negro Damião, gostam dele. Comaquele tiro ele ia matar um... E também a dona Teresa, a carne brancamorta no caixão de defuntos, o enterro saindo para o cemitério deFerradas que era omais perto. Ia ser precisomuita gente para levar ostrêscaixões. Iriambuscargentepelaredondeza,possivelmenteacudiriamà fazenda dos Badarós. E Damião viria e levaria o caixãozinho azul dacriançaqueestariavestidadeanjo...Eraquasesempreelequemlevavaoscaixões de "anjo' quando uma criança morria na fazenda. Damiãoarranjava loressilvestres,enfeitavaocaixão,levava-onoombro.Masodoilho do Firmo ele não poderia levar... Pois se foi ele quem o matou... OnegroDamiãofazforçanovamente.Suacabeçanãolheobedece,porque?Averdadeéqueelenãomatounenhumacriança,nãomatoudonaTeresa,nãomatounemmesmoaFirmoainda.Nessemomento foi que a ideiadenãomatar

Firmo apareceu pela primeira vez na cabeça do negro Damião.Levementeapenas,elenãochegoupropriamenteapensaremnãomatar.Foiumacoisa rápidae fugidia,masaindaassimoamedrontou.Comonãocumprir uma ordem de Sinhô Badaró? Homem direito, Sinhô Badaró.Demaisgostavadele,doseunegroDamião.Naestradaconversavacomele,tratava-o quase como a um amigo. E Don'Ana também. Lhe davamdinheiro, seu salário era dois mil e quinhentos réis por dia, mas emverdade ele tinha muito mais, cada homem que derrubava era umagrati icaçãona certa.Alémdeque trabalhavapouco,hámuitoquenão iapara as roças, icava sempre fazendo pequenos serviços na casa grande,acompanhando o coronel nas suas viagens, brincando com as crianças,esperando ordens para matar um homem. Sua pro issão: matar. AgoraDamião se dá perfeita conta disso. Sempre lhe parecera que ele era umtrabalhadorda fazendadosBadarós.Agoraéqueviaqueeraapenasum"jagunço". Que sua pro issão era matar, que, quando não havia homensque derrubar na estrada, ele não tinha nada que fazer. Acompanhava

Sinhô mas era para guardar a vida dele, era para baixar algum quequisessebalearocoronel.Eraumassassino.EssaforaapalavraqueSinhôBadaróempregaraarespeitodeJuca,naconversadaquelatarde.Palavrajustaparaeletambém.Aindaagoraquefaziaalisenãoesperarumhomempara atirar nele? Estava sentindo alguma coisa por dentro, alguma coisaque era terrivelmente dolorosa. Doía como uma ferida. Era como se otivessem apunhalado por dentro. A lua brilha sobre a mata silenciosa.Damiãoselembraquepodefazerumcigarro,assimteráalgumacoisaemqueseocupar.

Quando acabou de acender o cigarro a ideia voltou: e se ele nãomatasse Firmo? Agora chegou como uma coisa de inida, Damião seencontroupensandonoassunto.Não, issonãoerapossível.Damião sabiaperfeitamente por que SinhôBadaró necessitava damorte de Firmo. Erapara poder mais facilmente se apossar da sua roça e marchar para asmatasdeSequeiroGrande.QuandoosBadaróstiveremaquelasmatasvãoter a fazenda maior do mundo; vão ter mais cacau que o resto de todagentejunta,vãosermaisricosquemesmoocoronelMisael.Não,deixardeliquidarFirmonessanoiteerafaltaràconfiançaqueSinhôdepositavanele.Se o mandara é porque con iava no negro Damião. Tinha que matar. Seaferrou a esse pensamento. Matara tantos antes, por que hoje era tãodi ícil?OpioreraTeresa,abrancadonaTeresa,comum ilhonobucho.Iamorrercomcerteza,omeninotambém.EstávendodonaTeresa,antesaquieraobrancoluarquecaía,agoraéorostoalvodamulherdeFirmo.Nemquetivessebebido,umporre

mãe. Outros bebiam antes de ir liquidar um homem. Ele nuncaprecisou. Veio sempre calmo, con iante na sua pontaria. Nunca precisoutomarumtragocomoosoutros,se?embebedarparaatirarnumhomem.Mas hoje se encontra mo se tivesse bebido muito e a cachaça tivessesubido. Está vendo no chão o rosto branco de dona Teresa. Antes era oluar, alvo de leite, se derramando sobre a terra. Virou dona Teresa, derosto branco e a lito, de rosto aberto numa surpresa trágica; estavaesperandoomaridoparaoamor,elechegavamorto,umabalanopeito.Dochão ela olhava para o negro Damião. Está pedindo que ele não mateFirmo,quepeloamordeDeuselenãomate...Nochãode luaronegrovêperfeitamente visto o rosto de Teresa. Se estremece todo, seu enormecorpodegigante.

Não,nãopodiaatender,donaTeresa.SinhôBadarómandou,onegroDamião temque fazer.Não podia trair a con iança de umhomemdireitocomo Sinhô Badaró. Ainda se fosse Juca que tivesse mandado. Mas era

Sinhô,donaTeresa,essenegronãopodefazernada.Aculpatambémédeseumarido...Porquediaboelenãovendearoça?Nãotávendoquecontraos Badarós ele não pode lutar? Por que ele não vendeu a roça, donaTeresa?NãochorequeonegroDamiãoécapazdechorartambém...Eumcabra valente não pode chorar que se desmoraliza. O negro Damião lhejuraquesepudessenãomatavaFirmo, lhe faziaavontade.Mas foiSinhôquemmandou,negroDamiãotemqueobedecer...

Quem disse que Dona Teresa era boa! mentira. Agora ela abre abocaecomsuavozmusicalrepeteaquelaspalavrasdeSinhôBadaró:

—TuachabommatargenteTunãosentenada?Nadapordentro?Avozdelaémusicalmaséterríveltambém.Soacomoumapragana

mata,nocoraçãoamedrontadodonegro.Ocigarroseapagou,elenãotemcoragem de riscar um fósforo para não despertar as assombrações damata. Só agora pensou nelas porque esse rosto de dona Teresa sedesenhando no chão é com certeza coisa de bruxaria. Damião sabe quemuitagentetemrogadopragacontraele.Parentesdegentequeelematou.Pragashorríveis, ditas nahorado sofrimento e do ódio.Mas eram coisasdistantes. Damião apenas sabia delas por ouvir dizer. Agora não. É donaTeresaqueestáali,seusolhostristes,seubrancorosto,suavozmusicaleterrível.AmaldiçoandoonegroDamião.Perguntandoseelenãosentenadapor dentro, lá no fundo do coração. Sente, sim, dona Teresa. Se o negroDamião pudesse nãomatava Firmo.Mas não tem jeito, não é porque elequeira,não...

E, se dissesse que errou o tiro? Era uma ideia nova, iluminou océrebro de Damião. Por um segundo ele viu o luar em vez do rosto deTeresa. Ficaria desmoralizado, outros cabras não erravam a pontaria,quantomais o negro Damião! Sua pontaria era amelhor de toda aquelazona do cacau. Nunca dera dois tiros para matar um homem. Bastousemprecomoprimeiro.Ficariadesmoralizado,todaagenteiarirdele,atéasmulheres, até osmeninos. Sinhô Badaró daria seu lugar a outro... Iriaser um trabalhador como os outros, colhendo cacau, tocando burros,dançandonabarcaçaparasecaroscaroçosmoles.Todagente ia rirdele.Não, não podia. Demais ia trair damesmamaneira a con iança de SinhôBadaró. O coronel precisava que Firmo morresse, quem tinha culpa eramesmoFirmoqueeratãocabeçudo.

DonaTeresasabedetudonomundo,émesmoassombração,porqueelaagoraestálembrandoaonegro,desdeochãoondeseurostosubstituiunovamenteo luar,queSinhôestavaindecisonaquelatarde,sómandouoshomensporqueJucaforçara.Damiãolevantaosombros...SinhôBadaróera

lá homem para decidir uma coisa só porque Juca insistia... Isso era nãoconhecerSinhôBadaró...BemsevêquedonaTeresanãooconhece...Ela,porém, está lembrandodetalhes eonegroDamião começaa vacilar.E seSinhônãoquisessetambémamortedeFirmo?SetambémeletivessepenadedonaTeresa?Do ilhoqueelatemnabarriga?Seeletambémestivessesentindoalguma coisapordentro comoonegroDamiãoDamiãoaperta acabeçacomasmãos.Não,eraverdade.Era tudomentiradedonaTeresa,de dona Teresa com suas bruxarias. Sinhô Badaró, se não quisesse queFirmomorresse,nãoomandaria.SinhôBadarósófazoquequer.Paraissoele é rico e é o chefe da família. Juca tinha medo dele, apesar de todavalentia que arrota. Quem é que não tinha medo de Sinhô Badaró? SómesmoonegroDamião.Mas,senãomatarFirmo,vai termedotodavida,nuncamaisvaiolhardireitoparaSinhôBadaró.

Do chão a voz de dona Teresa se rindo do negro: "então é só demedo de Sinhô Badaró que ele vai matar Firmo? Com medo de SinhôBadaró? E esse é o negro Damião que se diz o cabra mais valente daredondeza?..."

DonaTeresa não ri, a risada cristalina e burlona sacode os nervosdonegro.Eleestátremendotodopordentro.Arisadavemdochão,vemdamata, da estrada, do céu, de toda parte, todos estão dizendo que ele temmedo, que ele é ummedroso, um cagão, ele, o negro Damião falado nosjornais...donaTeresanoriamais,eusoucapazde lhedarumtiro.Nuncaatirei em mulher, um homem não faz isso. Mas sou capaz de atirar emvosmecê, se vosmecê não parar de rir. Não ria do negro Damião, donaTeresa.OnegronãotemmedodeSinhôBadaró.Temérespeito,nãoquerfaltar á con iançaqueSinhô temnele.PorDeusqueé isso...Não riamaisqueeulhedouumtiro,lhemetobalanessacarabranca...

Estão apertando seu peito. O que foi que puseram em cima dele?Isso é bruxaria, é praga que lhe rogaram. Praga de mulher em cima donegro.VemdamataavozquerepeteaspalavrasdeSinhôBadaró:

—Tuachabommatargente?Tunãosentenada?Nadapordentro?A mata inteira ri dele, a mata toda grita aquelas palavras, a mata

todaapertaseucoração,dançanasuacabeça.NafrentedonaTeresa,nãoé ela toda, é só o rosto. Isso é bruxaria, é praga que rogaram no negro.Damião sabe bem o que eles querem. Querem que ele nãomate Firmo...Dona Teresa está pedindo, o que ele pode fazer? Sinhô Badaró é umhomemdireito,donaTeresatemorostobranco.Estáchorando...Masquemé? E dona Teresa com seu rosto no chão ou é o negro Damião? Estáchorando... Dói mais que talho de facão, que brasa chiando na carne do

negro...Prenderam seus braços, não pode matar. Prenderam seu coração,

ele temquematar.Pelo rostonegrodeDamião choramosolhosazuisdedonaTeresa...Amatasesacodeemriso, sesacodeempranto,abruxariadanoite rodeiaonegroDamião. ele sentouno chão e choramansamentecomoumacriançacastigada.

Oruídodeumburrotrotandoaumentanaestrada.Vemmaisperto,cadavezmaisperto,soboluarapareceovultodeFirmo.OnegroDamiãoalteia seu corpo, se levanta, um nó na garganta, suas mãos tremem narepetição.Amatagritaemtorno,Firmoseaproxima.

7

—Cristalbacarat...—anunciouHoráciobatendocomodedonataça.Sonoridades claras e pequenas se espalharam pela mesa. Horáciocompletou;

— Me custou um dinheirão... Foi quando casei. Mandei buscar noRio...

ODr. Virgílio tomouda sua taça onde as gotas do vinho portuguêsmanchavam de sangue a transparência do cristal. Suspendeu-a à alturadosolhos:

—Éderefinadobomgosto...SedirigiaatodosmasseuolhardemorouemEstercomoalhedizer

queele,Virgílio,sabiaperfeitamentequeobomgostoeradela.Falavacomsua bela voz cheia e modulada e escolhia as palavras como se estivessenum torneio de oratória. Saboreava o vinho como um conhecedor, empequenos goles que valorizavam a bebida. Suas maneiras inas, seulânguidoolhar, suacabeleira loira, tudocontrastavacomasala.Horácioosentiavagamente.ManecaDantassedavaconta.MasparaEsterasalanãoexistia.Ela,comapresençadojovemadvogado,forabruscamenteretiradadafazenda,jogadaparaosdiasdopassado.Eracomoseaindaestivessenocolégio de irmãs, numa daquelas grandes festas de im de ano, quandodançavacomosrapazesmais inosedistintosdacapital.Sorriaarespeitode tudo requintava também nas palavras e nos modos, uma docemelancolia que era quase alegre andava dentro dela. "Era o vinho",pensavaEster.Ovinholhesubiafacilmenteàcabeça.PensavaebebiamaisebebiatambémaspalavrasdoDr.Virgílio.

—FoiumafestaemcasadosenadorLago...Umbailecomemorando

exatamente a sua eleição. Que festa, dona Ester! Algo inimaginável! Oambienteeraoquehaviademaisaristocrático.EstavamasPaivas—Esterconhecia as Paivas, haviam sido suas colegas — Mariazinha estavaencantadoradetafetáazul.Pareciaumsonho...

—Elaé linda...—fezEster,e iacertareservaemsuavoz,quenãoescapouaoDr.Virgílio.

—Não,porém,amais lindadocolégionoseutempo... -esclareceuoadvogadoeEsterruborizouse.Bebeumaisvinho.

Virgíliocontinuoudiscorrendo.Falavademúsica,lembrouumavalsapelonome,Esterrecordouamelodia.Horáciointerveio:

—Esteréumapianistademãocheia,hein!AvozdeVirgílionumasúplicadoce:—Então, apóso jantar iremos ter a alegria de ouvi-la.Nãonas vai

negaresseprazer...Ester disse que não, há muito que não tocava, já tinha perdido a

agilidade dos dedos e demais o piano estava que era um horror...desafinado,abandonadoalinaquelefimdemundo...

Mas Virgílio não aceitou as desculpas. E se dirigiu a Horácio e lhepediu que "insistisse junto a dona Ester para que ela abandonasse amodéstiaeenchesseacasadeharmonia:'Horácioinsistiu:

—Deixederodeioetoquepromoçoouvir.Eutambémqueroouvir.A inalmetiumdinheirãonessepiano,omaiorquehavianaBahia,deuumtrabalhão dos diabos trazer ele para aqui e pra que? Um dinheiro postofora.seiscontosderéis...

Repetiu,eraquaseumdesabafo:— Seis contos postos fora... — e olhava Maneca Dantas, este era

capazdecompreenderoqueelesentia...ManecaDantasachouquedeviaapoiar:

—Seiscontosémuitodinheiro...Éumaroça...Dr.Virgíliotinhacompletaimpunidade:— Que são seis contos de réis, seis míseros contos, se são

empregados em dar uma alegria à sua esposa, coronel?... — e levava odedo ao alto, próximo ao rosto do coronel, o dedo de unha bem tratadaondeo rubido anel de advogadobrilhava escandaloso.—O coronel fala,mas garanto que jamais gastou seis contos tão satisfeito como quandocomprouessepiano.Nãoéverdade?

—Bem,quedeicontente,éverdade.Elatocavapianonacasadopai.Eu não quis que ela trouxesse o de lá, um piano pequenininho, chinfrim,muito reles.— fez comamãoenormeumgestodedesprezo.—Comprei

esse.Maselaquasenãotoca.Umaveznavida...Esterouviamuda,umódioiasubindodentrodela.Maioraindaqueo

que sentira na noite do seu casamento quando Horácio rasgou seusvestidos e se lançou sobre seu corpo. Estava ligeiramente tomada pelovinho, embriagada também pelas palavras de Virgílio, e seus olhos eramnovamente os trêfegos e sonhadores olhos da normalista dos anospassados. E viram Horácio transformado num grande porco sujo, igual aum que havia na fazenda e habitava os lamaçais próximos à estrada. EVirgílio surgia como um cavalheiro andante, um mosqueteiro, um condefrancês, mistura de personagens de romances lidos no colégio, todasnobres,audazesebelas.Apesardetudo,apesardoódio—oumesmoporcausa do ódio? — era delicioso aquele jantar. Sorveu mais um copo devinhoeanunciousorrindo:

—Poiseutoco...—tinhafaladoparaVirgílioeentãovoltou-separaHorácio.—Vocêtambémnuncamepediu...—suavozerasuaveemeigaeseuódio se satisfazia porque ela agora compreendia quepodia se vingardele.Faloumais,tinhadesejosde,depois,magoá-lomuito:

—Pensavaatéqueamúsicanão lheagradava...Agora,queseiquevocêgosta,opianonãovaiterdescanso.

Tudo havia mudado para Horácio. Essas não eram palavrascontrafeitas. Essa não era a Ester de antes. Era outra. Que pensava nele,num desejo seu. Sentia uma sensação boa, uma coisa que rompeu asmuitascapascomqueestavacobertooseucoraçãoeolavoudebondade.Talveztivessesidosempre injustocomEster...Nãoahaviacompreendido,elaeradeoutromeio...Achouquedevia lheprometeralgumacoisamuitogrande,muitoboa,queafizessemuitofeliz.Falou:

—Pelasfestas,vamosàBahia...—falavaparaela,somenteparaela,nãoenxergavamaisninguémnamesa.

E a conversa adquiriu novamente sua brilhante normalidade.Conversa gasta quase que somente por Ester e Virgílio, descrições defestas, discussão sobre modas, sobre músicas e romances. Horácioenvolvido na admiração da esposa, Maneca Dantas olhando de olhosastutos.

—GostodeJorgeOhnet.—esclareceuEster.—Choreiquandoli"OGrandeIndustrial".

Dr.Virgíliosefezlevementemelancólico:—Porquelheencontroualgodeautobiográfico?HorácioeManecaDantasnãocompreendiamnadaeaprópriaEster

demorou um pouco em compreender. Mas quando o compreendeu, pôs

umamãosobreorostoenegounervosamente:—Oh!não,não!SuspirodeDr.Virgílio:—Ah!Elaachouquetinhaidodemasiadolonge.—Issonãoquerdizer...Porémelenãoqueriasaber.Estavaradiante,seusolhosbrilhavame

perguntoufinalizandoaconversa:—Zola,jáleuZola?Não, não havia lido, as freiras no colégio não deixavam. Virgílio

achou que, realmente, paramocinhas não estava bem.Mas uma senhoracasada...eletinhao"Germinal"emIlhéus.IamandaràdonaEster.

As negras serviam as in indáveis sobremesas. Ester propôs quetomassem o café na sala. Virgílio levantou-se rapidamente, tomou dacadeira da qual ela se levantava, puxou-a para trás fazendo espaço paraela sair. Horácio olhava com certa longínqua inveja. Maneca Dantasadmirava os modos do advogado. Considerava que a educação era umagrande coisa. E pensou nos ilhos e os imaginou, no futuro, iguais ao Dr.Virgílio.Estersaíadasala,oshomemaseguiram.

Chuviscava no campo, um chuvisco miúdo, atravessado pelaclaridade da lua. As estrelas erammuitas, nenhuma outra luz empanavasua luz celeste. Virgílio chegou até a porta, andou um passo na varanda.Felíciaentravacomabandejadecafé,Esterserviaoaçúcar.Virgíliovoltou,fezaconsideraçãocomosedeclamasseumpoema:

—Sónamatasevêumanoitetãobela...—Estábonita,sim...—apoiouManecaDantasquemexiasuaxícara

decafé.Voltou-separaEster:—Maisumacolherzinha,comadre.Gostodecafébemdoce...Maisumavezatendeuaoadvogado.—Muitobonitaanoitee essa chuvinha ainda dámais graça...— fazia força para acompanhar oritmoqueVirgílioeEsteremprestavamàconversa.Ficoucontenteporqueteveaimpressãodequedisseraumafraseparecidacomasdeles.

—Eodoutor?Poucooumuitoaçúcar?—Pouco, dona Ester... Basta...Muito obrigado... A senhora também

nãoachaqueoprogressomataabeleza?ElaentregouoaçucareiroaFelícia, tardouumminutoa responder.

Estavapensativaeséria.—Achoqueoprogressotambémtemtantabeleza...—Maséquenasgrandescidades, coma iluminação,nemseveem

as estrelas... E um poeta ama as estrelas, dona Ester... As da céu e as da

terra...— Mas há outras noites que não são de estrelas...agora a voz de

Ester era profunda, vinha do coração. — Nas noites de tempestade éhorroroso.

—Deveserterrivelmentebelo...—afrasesubiapelasala,dançavadiantedetodos.Completou:—Éobelohorrendo...

—Talvez...—disseEster.—Maseutenhomedonessasnoites—eoolhavacomumolharsúplice,comoaumamigodelargosanos.

Virgílio viu que ela já não representava e teve pena, imensa pena.Foi nesse momento que pousou os olhos nela com doçura e comverdadeiro interesse. E os pensamentos risonhos e astuciosos de antesdesapareceramsubstituídosporalgomaissérioemaisprofundo.

Horáciosemeteu:—Sabedequeessatolatemmedo,doutor?Dogritodasrãsquando

ascobrasengolemelasnabeiradorio...ODr.Virgílio játinhatambémouvidoaquelegritoetambémaoseu

coraçãoeleconfrangera.Disseapenas:—Eucompreendo...Foiummomentofeliz,osolhosdelaestavampurosedeumaalegria

sã.Agoranãorepresentavam.Foiumsegundosómas foiobastante.NelanãorestounemoódioporHorácio.

Andou para o piano. Maneca Dantas começou a expor a Virgílio oseu negócio. Era um "caxixe" importante, causa demuitos contos de réis.Virgílio esforçava-se para prestar atenção. Horácio aparteava por vezescomsuaexperiência.Virgíliocitouumalei.Osprimeirosacordesvibraramnasala.Oadvogadosorriu:

— Agora vamos ouvir dona Ester. Depois aumentaremos suafazenda.

Maneca Dantas concordou num gesto, Virgílio se aproximou dopiano.Avalsanãocabianasala,saíapelocampoatéamatanosfundosdacasa.Nosofá,ManecaDantascomentou:

— Moço distinto, hein! E que talento! Diz que é até poeta... Comofala...Deadvogadoestamosbemservidos.Temtutanonacabeça.

Horácioestendeuasgrandesmãos,esfregou-asumanaoutra,sorriuseusorrisoparadentro:

—EEster?Queéquevocêmediz, seucompadreQueméque tememIlhéus,emesmonaBahia–repetia—emesmonaBahia,umamulhertãoeducada?...Entendedesses troços todos: francês,música, igurinos,detudo...Temcabeça—batia comodedona testa—nãoé sóboniteza...—

falavacomorgulhocomoumdonofalariadeumapropriedadesua.Suavozrespirava vaidade. E era feliz porque imaginava que Ester fazia músicaparaele, tocavaporqueelepedira.ManecaDantasconcordoubalançandoacabeça."Acomadreeramulhereducada,sim".

Junto ao piano, os olhos enternecidos, Virgílio trauteia a melodia.QuandoEsterterminaevailevantar-se,elelhedáamãoparaajudá-la.Elaicaempé,bempróximaaele.Enquantobatepalmas,aplaudindo,Virgíliomurmuraparaquesóelaoouça:

—Écomoumpassarinhonabocadeumacobra.ManecaDantaspedia,comentusiasmo,outramúsica.Horáciovinha

sechegando,Esterfezumesforçosupremoeprendeuaslágrimas.

8

Ao bordo damata o negroDamião esperava um homemna tocaia.Ao luar via alucinações e sofria.Aobordode outramata, na sala da casagrande, o Dr. Virgílio punha seus conhecimentos da lei a serviço daambição dos coronéis e descobria o amor nos olhos amedrontados deEster. Junto á mata que descambava por detrás do morro, na fazendaSant'Ana daAlegria, a fazendadosBadarós, AntónioVítor espera, os pésen iados na água do rio. O rio corriamanso, pequeno e claro, e nas suaságuas se misturavam as folhas caídas dos cacaueiros e as que caíam dooutro lado, das grandes árvores que os homens não haviam plantado.Aquelas águas limitavam a mata das roças, e António Vítor, enquantoespera,pensaquenão tardaráqueosmachadoseo fogoponhamamataabaixo.Seriatudocacaueiro,orionãomarcariamaisnenhumaseparação.

JucaBadaró falavaemderrubaraquelamatanessemesmoano.Ostrabalhadores se aprontavam para as queimadas, já estavam sendopreparadas asmudas de cacau que encheriamo lugar que amata aindaocupava. António Vítor gostava da mata. Sua cidade de Estância, tãodistante agora até no seu pensamento, icava dentro de um bosque, doisriosa cercavameasárvoresapenetravamnas ruasenaspraças.Ele seacostumara mais com a mata, onde todas as horas eram horas decrepúsculo, que mesmo com as roças de cacau que explodiam no ourovelhodosfrutos,luminososebrilhantes.Vinhaparajuntodamataquando,nos primeiros tempos, terminava o trabalho nas raças. Ali é quedescansava. Ali recordava Estância todavia presente, recordava Ivonedeitadanaponte sobreo rioPiauitinga.Ali sofria adocedorda saudade.

Nos primeiros tempos, que foram tempos duros, a saudade roendo pordentro,otrabalhopesado, imensamentemaispesadoquenomilharalqueele plantara com os irmãos, antes de vir para estas terras do Sul. Nafazendaeraolevantar-seàsquatrodamanhã,prepararacarnesecaparacomeraomeio-diacomopirãode farinha,beberacanecadecaféeestarna roça colhendo cacau às cinco, quando o sol apenas começava a suasubidapelomorrodedetrásdacasa-grande.Depoisosolchegavaaocimodo morro e doía nas costas nuas de Ancóneo Vítor, dos outros também,principalmentedosquehaviamvindocomeleenãoestavamacostumados.

Os pés afundavamnos atoleiros, o visgo do cacaumole se grudavaneles, de quando em vez a chuva vinha sujá-los ainda mais poisatravessavaascopadasroçasechegavacarregadadegravetos,deinsetos,de imundícies de toda classe. Ao meio-dia — conheciam pelo sol —paravamo trabalho.Engoliamaboia,derrubavamuma jacamoledeumajaqueiraqualquereeraasobremesa.Masjáocapatazestavagritandodecima de seu burro que pegassem as foices. E recomeçavam até às seishorasdatardequandoosolabandonavaasroças.Chegavaanoitetristeecheiadecansaço, semmulhercomquemdeitar, semIvoneparaacariciarna ponte que não existia, sem as pescarias de Estância. Falavam nessedinheiro do sul. Uma dinheirama de fazermedo. Ali por aquele trabalhotodo,eramdoismilequinhentosréispordia,empregadosinteiramentenoarmazém da fazenda, um saldo miserável no im do mês, quando haviasaldo. Chegava a noite, trazia a saudade com ela, pensamentos também.António Vítor vinha para perto da mata, metia os pés no rio, cerrava osolhoserecordava.

Osdemais icavampelascasasdebarrobatido,jogadosnosleitosdetábuas, dormindo quebrados de cansaço, outros cantavam saudosastiranas. Gemiam as violas, versos de outras terras, lembranças de ummundo deixado para trás,música de partir corações. António Vítor vinhapara perto da mata, trazia consigo suas recordações. Novamente, pelacentésima vez, possuía Ivone na ponte de Estância. E era sempre pelaprimeira vez. Novamente a tinha nos braços e novamente manchava desangue seu desbotado vestido de lores vermelhas. Sua mão calosa dotrabalhonasroçaseramulherdesuavepele,eraIvoneseentregando.Suamãotinhaaquentura,amaciez,orequebroedenguedocorpodemulher.Crescia junto da mata, virava, no sexo de António Vítor, a vir em seentregando.Ali,nabeiradorio,nosprimeirostempos.Depoisoriolavavatudo, corpo e coração, no banho noturno. Só restava mesmo o visgo decacau mole preso na sola dos pés, cada vez mais grosso, igual a um

estranhosapato.Depois Juca Badaró se afeiçoara a ele. Primeiro porque, quando

derrubavam a mata onde hoje era a roça do Repartimento, ele não atemera como os outros quando chegaram de noite, na tempestade. Foramesmo ele, AntónioVítor, quemderrubara a primeira árvore.Hoje era aroçadoRepartimento,ondeasmudasdecacaucomeçavamavirartroncosdébeis ainda,mas jápróximosáprimeira loração.Depois, nobarulhodeTabocas,AntónioVítorbaixaraumhomem—seuprimeirohomem—parasalvar Juca. É verdade que chorara muito na volta para a fazenda,desesperado,éverdadequepassounoitesenoitesvendoohomemcair,amão no peito, a língua saindo pra fora.Mas isso passara também. Juca otirara do trabalho nas roças para o trabalho muito mais suave de"capanga". Acompanhava Juca Badaró na iscalização do trabalho dafazenda, nas viagens repetidas que ele fazia aos povoados e à cidade,trocara a foice pela repetição. Conhecera as prostitutas de Tabocas, deFerradas, de Palestina, de Ilhéus, tivera doença feia, levara um tiro noombro. Ivone agora era uma sombra distante e vaga. Estância umalembrança quase perdida. Restara o costume de vir pela noite deitar nobordodamata,ospésdentrodorio.

E de esperar ali a Raimunda. Ela vinha pelas latas de água para obanho noturno deDon'AnaBadaró.Descia cantando,masmal enxergavaAntónio Vítor parava o canto e fechava a cara, um ar de aborrecida.Respondiademausmodosaocumprimentodeleeaúnicavezqueelequispegá-la,apertá-lacontrasi,eladeuumjeitonocorpoeatiraraocabranorio, era forte e decidida como um homem. Nem por isso ele deixara devoltartodasasnoites,apenasnuncamaistentouabusardela.Davaasboasnoites, recebia a resposta resmungada, icava assobiando amodinha queela cantavapelo caminho.Elaenchiaa latadequerosenenabeirano rio,eleajudava-aapô-lanacabeça.ERaimundaseperdiaentreoscacaueiros,ospésgrandes,muitomaisnegrosqueorostomulato,afundandonalamadapicada.Ele seatiravan'água.Seestavadistanteodiaemquedormiracommulher numpovoado, possuía antesRaimunda que aparecia nua nasuamão transformadaemsexo.Voltavapelaroçadecacau, ia receberasordensde JucaBadarópara o dia seguinte. Por vezes,Don'Anamandavalhedarumcopodepinga.AntónioVítorouviaospassosdeRaimundanacozinha,suavozquerespondiaaochamadodoDon'Ana.

—Játouindo,madrinha.,Era a ilhada de Don'Ana se bem que fossem as duas da mesma

idade. Nascera no mesmo dia que Don'Ana, ilha da negra Risoleta,

cozinheiradacasa-grande,umanegralinda,deancasroliçasecarnedura.NinguémsabiaquemeraopaideRaimundaquenasceramulataclara,decabelosquaselisos.MasmuitagentemurmuravaquenãoeraoutroqueovelhoMarcelinoBadaró,opaideSinhôedeJuca.EssasmurmuraçõesnãoforammotivoparaquedonaFilomenamandasseacozinheiraembora.Aocontrário, foi Risoleta quem amamentou nos seus grandes seios negros a"sinhazinha"recém-nascida,aprimeiranetadosvelhosBadarós.Don'AnaeRaimunda cresceram juntas nos primeiros tempos, uma em cada braçode Risoleta, uma em cada seio seu. No dia do batizado de Don'Ana, amulatinha Raimunda se batizou também. A negra Risoleta escolhera ospadrinhos.Sinhô,queeraentãoumrapazdepoucomaisdevinteanos,eDon'Ana que tinha apenas meses. O padre não protestou, já então osBadaróseramumapotênciadiantedaqualaleieareligiãoseinclinavam.Raimundacresceunacasa-grande,eraairmãdeleitedeDon'Ana.EcomoDon'Anachegarainesperadamenteparaalegrarafamília,naquasevelhicedosavós, vinteanosdepoisdaúltimameninaBadaróqueencheraa casade dengues, a família toda fazia-lhe as vontades. ERaimunda ganhava assobrasdessecarinho.

Dona Filomena, que era uma mulher religiosa e boa, costumavadizerqueDon'AnahaviatomadoamãedeRaimundaeporissoosBadaróstinhamquedaralgoàmulatinha.Eeraverdade:anegraRisoletanãotinhaolhosparaoutracoisanomundoquenãofossea"sua ilhabranca',asua"sinhazinha", a sua Don'Ana. Por ela, na infância da menina branca,chegaraalevantaravozcontraMarcelinoquandoovelhoBadarótentavacastigar a neta mimada. p desobediente. A negra Risoleta virava feraquando escutava o choro de Don'Ana. Chegava da cozinha, os olhosbrilhando, o rosto inquieto. ForamesmoumadasdiversõesprediletasdeJuca, entãomeninote, fazer a sobrinha chorar para assistir á tempestadede fúria de Risoleta. Esta o chamava de "demônio", não o respeitava,chegaraporvezesatéadizerqueeleera"piorqueumnegro".Nacozinha,diziaásoutrasnegras,enxugandoaslágrimas:

—Estemeninoéumapestinha...Para Don'Ana a cozinha fora sempre o grande lugar do asilo.

Quando fazia uma traquinagem demasiado grande fugia para ali, parajuntodassaiasdesua"mãenegra"ealinemmesmodonaFilomena,nemmesmo o velho Marcelino, nemmesmo Sinhô que era seu pai, a vinhambuscar.Anegrasepreparavacomose fosseparaumabatalha.Raimundafazia pequenos trabalhos caseiros, aprendia a cozinhar, mas na casa-grande lheensinaram tambémcosturaebordado, lheensinarama ler as

primeirasletras,aassinaronomeeafazercontasdesomaredediminuir.OsBadarósacreditavamestarpagandoasuadívida.Risoletamorreracomo nome de Don'Ana na boca, olhando a ilha de criação que lhe dera aalegriadeestaraoseu ladonaquelahora inal.OvelhoMarcelinoBadarójá estava enterrado há dois anos e há um ano falecera a sua ilha, quecasara com um comerciante e fora morrer na Bahia, não tendo seacostumadocomacidade,longedafazenda.Deradeenfraquecerepegaraa tísica.DonaFilomenatirouRaimundadacozinha,a trouxeemde initivopara dentro da casa-grande. E protegeu sempre a mulatinha enquantoviveu. Depois, quando a esposa de Sinhô morreu tísica, icaram ospadrinhos,SinhôeDon'Ana,masaospoucosRaimundafoitendoumavidaigual às dasdemais criadasda casa: lavar, remendar roupa, buscar águanorio,fazerosdoces.SóquenasfestasDon'AnalheregalavaumcortedefazendaparaumvestidomelhoreSinhôlhedavaumpardesapatoseumpouco de dinheiro. Ela não tinha ordenado, para que precisava ela dedinheirosetinhadetudonacasadosBadarós?QuandoSinhô,pelasfestasdeSãoJoãoedeNatal,lhedavadezmil-réis,diziasempre:

—Váguardandoparaoseuenxoval...Éque elemesmonão sedava contadequeRaimundapudesse ter

nenhum desejo. No entanto, desde sua infância, o coração de Raimundavivia cheio de desejos irrealizados. Primeiro foram as bonecas e osbrinquedosquevinhamdaBahiaparaDon'Anaenosquais lheproibiamde tocar. Quantas surras não levara da negra Risoleta por bulir nosbrinquedos da "irmã de criação". Depois fora o desejo de montar comoDon'Ananumcavalobemarreadoepartir a correros campos.Epor imdesejara ter, como ela, algumas daquelas coisas tão lindas, um colar, umpar de argolas, um pente espanhol para os cabelos. Herdara um destes,forabuscá-lonolixoondeDon'Anaojogaracomoinútil,osdentespartidos,restandodoisoutrêsapenas.E,noseupequenoquartoqueumcandeeiroiluminava pelas noites, ela o colocava no cabelo e sorria para si mesma.Talvezfosseesseoseuprimeirosorrisodaqueledia,poisRaimundatinhauma cara séria e zangada, fechada para todos. Juca, que não deixavapassar mulher perto dele, fosse mulher da vida ou mulher casada nacidade, fossemasmulatinhasnaroça,mesmoasnegras,nuncasemeteracom Raimunda, talvez a achasse feia, o nariz chato contrastando com orostoquaseclaro.Erazangada,aprópriaDon'Anaonotavaeemgeral,nafazenda,diziamqueRaimundaera"ruim",nãoeradebomcoração.Parecianão estimar ninguém, vivia sua vida calada, trabalhando como quatro,recebendo, o que lhe davam, com um agradecimentomurmurado. Assim

cresceraesefizeramoça.Maisdeumpretendentelheaparecera,nacertezade

que Sinhô Badaró não deixaria de ajudar aquele que casasse com suaa ilhada,airmãdeleitedeDon'Ana.Oempregadodoarmazém,umloiraçoque viera da Bahia e sabia contas e lia livros, quis casar com ela. Eramagro,e fraco,usavaóculos,Raimundanãoaceitou,chorouquandoSinhôfalounoassunto,dissequenãoenão.Sinhôfezumgestodedesinteressecomosombros:

—Nãoquer,acabou-se...Nãotouobrigando...Jucaaindasemeteu:Mas é um casamentão... Um rapaz branco, instruído... Nunca mais

apareceoutroigual.Nemseioqueeleviunessanegra...Porém Raimunda, suplicou a Sinhô e esse deu o assunto por

encerrado. Sinhô comunicou ao empregado do armazém a recusa deRaimunda, Juca Badaró lhe perguntou o que ele vira de bonito naquelacara fechada da mulata. Também Agostinho, que era capataz numa dasroças dos Badarós, a desejou e falou com ela. Raimunda respondeu demausmodos.Don'Anatinhaumaexplicaçãoparaofato:

— Raimunda nunca há de deixar a gente. Ela tem aquela carafechadamasgostadagente...

Eseenterneciaderepente, lembrando-sedeRisoletaenessesdiasdavasempreumvestidoàmulata,ouumapratadedoismil-réis.Masessasconversas sobre Raimunda eram raras, os Badarós nem sempre tinhamtempodesepreocuparcomofuturoda"irmãdecriação".

António Vítor fazia muito que andava de olho nela. Na fazendamulhereraobjetodeluxoeseucorpojovempediamulher.Nãobastavaoamorfeitocomasrameirasnasviagensaospovoados.Elequeriaumcorpoqueesquentasseodelenas longasnoitesdechuvadosmesesdeinverno,demaioasetembro,aestaçãodaságuas.

Esperava-anobordodamata.Não tardaráqueavozdeRaimundacheguepelapicada,precedendoamulata.Acaradelatalveznãosejaumabeleza,masAntónioVítor temna cabeça é o seu corpo forte, de nádegasgrandes, de seios rijos, de roliças coxas. No céu de crepúsculo a noite seprepara.Oriocorremanso,talvezchuvisquenestanoite.Osgrilosiniciamseucantonamata.Caemfolhas,sobreaságuas.Falavamdessadinheiramado sul. António prometera voltar um dia, rico, bem vestido, de botinasrangedeiras Agora, esses pensamentos já não existem na sua cabeça.Agora ele é um capanga de Juca Badaró, conhecido pela rapidez do seutiro. A lembrança de Estância, de Ivone se entregando na ponte, se

esfumaçounasuamemória.Ossonhostampoucoenchemsuacabeçacomonanoitedebordo.Sóumdesejo:casarcomamulataRaimunda,teremumacasadebarrobatidoparaosdois.CasarcomRaimunda, terumcorpoemquerepousardodiaárduodotrabalho,dasviagenslongaspeloscaminhosdi íceis, da morte de um derrubado por ele. Descansar no corpo dela.Corpo em que repousar sua cabeça sem sonhos. A voz de Raimunda napicada.AntónioVítorlevantaacabeçaeobusto,sepreparaparaajudá-laeencheralatadeágua.Anoiteenvolveamata,corretranquiloorio.

9

Os homens pararam em frente da casa-grande da fazenda dosMacacos.

O nome o icial era outro muito mais bonito: Fazenda Auricídia,homenagem de Maneca Dantas à esposa, gorda e preguiçosa matronacujos únicos interesses na vida eram os ilhos e os doces que ela sabiafazer como ninguém. mas, com grande tristeza do coronel, o nome nãopegara e toda a gente tratava a fazenda por "Macacos", nome da roçainicial, encravada nas matas de Sequeiro Grande entre as grandespropriedades dos Badarós e de Horácio, onde os macacos em bandocorriampelaselva.Sónosdocumentoso iciaisdepossedaterraapareciaonome"Auricídia".EsomenteManecaDantasdizia:"Iá,naAuricídia...'Todososmaisaosereferiremàfazendafalavamdos"Macacos".

Oshomenspararam,descansaramaredeatravessadacomumpau,onde o cadáver efetuava sua última viagem. De dentro da sala maliluminada dona Auricídia perguntou, movendo preguiçosamente asbanhas:

—Quemé?—Édepaz,dona—respondeuumdoshomens.Omeninohaviacorridoatéavarandaevoltoucomanotícia:—Mamãe,édoishomenscomummorto.Ummortonegro...Antes de se alarmar, dona Auricídia, que fora professora corrigiu

mansamente:—Édoisnão,Rui.Sãodoisécomosedevedizer.Movimentou-se para a porta, o ilho ia agarrado nas suas saias. Os

menores jádormiam.Navarandaoshomenshaviamsentadonumbanco,nochãoseabriaaredecomocadáver.

—JesusCristolhedeboanoite...—falouumdeles,eraumvelhode

carapinhabranca.O outro tirou o chapéu furado e cumprimentou. Dona Auricídia

respondeu,focouesperando.Omoçoexplicou:—Nós tá trazendo ele da FazendaBaraúna, trabalhava lá... Tamos

levandoprocemitériodeFerradas.—Porquenãoenterraramnamata?—Nãovêqueeletemtrês ilhasemFerradas?Tamoslevandopara

entregar a elas. Se vosmecê consente a gente descansa um tempinho. Acaminhada é muita, o tio aqui já tá dando o prego... — apontou para ovelho.

—Dequefoiqueelemorreu?—perguntouasenhora.—Febre...—agora erao velhoque respondia. –Essa febrebraba

quedánamata. Tavaderrubandomata, a febrepegou ele... Foi trêsdiassó.Nãoteveremédioqueprestasse.

DonaAuricídiaafastouo ilho, afastou-seelamesmaalgunspassos.Ficourefletindo.Ocadáverdohomemmagro,velhoeletambém,repousavanaredesobreavaranda.

—Levemparaacasadeumtrabalhador.Descansemlá...Aqui,não.É só andar um pouco mais, encontrarão logo as casas. Digam que eumandei.Aqui,não,porcausadosmeninos...

Temia o contágio, aquela febrenão conhecia remédio que servisse.Só muitos anos depois os homens foram saber que era o tifo, endêmicoentãoem todaa zonadocacau.DonaAuricídia icouespiandooshomenslevantaremarede,colocarem-nanosombrosepartirem:

Boanoite,dona...—Boanoite.Olhavaolugarondeocadáverestivera.Eentãoaquelagorduratoda

se movimentou. Gritou pelas negras lá dentro, mandou que trouxessemáguaesabãoe,apesardeserdenoite,lavassemavaranda.Levouconsigoo ilho, lavou-lheasmãosatéacriançaquasechorar.Enaquelanoitenãodormiu, de hora em hora levantava-se para ver se Rui não estava comfebre.EaindaporcimaManecanãoseencontravaemcasa,foracomernafazendadeHorácio...

Os homens chegaram com rede em frente de uma casa detrabalhadores.Ovelhoiacansado,ooutrofalou:

—Ofinadoestápesando,hein,tio?Aquela ideia de levar o morto até Ferradas fora do velha. Eram

amigososdois,eleeoquemorrera.Decidiraentregarocadáveràs ilhaspara que estas o "enterrassem coma cristão", explicava ele. Era uma

viagemdecincoléguaseháhorasqueelesandavamsoboluar,baixaramnovamentearede,omaçoenxugouosuorenquantoovelhogolpeava

comseubastãonaportamalcerrada,de tábuasdesiguais.Uma luzseacendeu,aperguntasaiu:

—Quemé?—Édepaz...—respondeunovamenteovelho.Ainda assimonegroque abriu a porta trazia um revólver namão,

naquelas terras não havia que descuidar. O velho explicou sua história.TerminoudizendoqueforadonaAuricídiaquemosmandara.Umhomemmagroquesurgirapordetrásdonegrocomentou:

—Láelanãoquis... Podiapegarnos ilhos a febre...Maspara aquinãofazmal,nãoé?—eriu.

O velho pensou que o iam mandar mais uma vez para adiante.Começouumaexplicação,masohomemmagrointerrompeu:

—Nãotemnada,meuvelho.Podeentrar.Nagenteafebrenãopegamesmo.Trabalhadortemocourocurtido...

Entraram.Osoutroshomensquedormiamdespertaram.Eramcincoaotodoeacasanãotinhamaisqueumapeça,asparedesdebarro,otetode zinco, o chão de terra. Ali era sala, quarto e cozinha, a latrina era ocampo,as roças, amata.Descansaramomortoemcimadeumdos jirausondeoshomensdormiam.Ficaramtodosemtorno,ovelhotirouumavelado bolso, acendeu na cabeceira do defunto. Já estava queimada pelametade, iluminara o corpo no princípio da noite, iria iluminá-lo quandochegassemtambémnacasadasfilhas.

—Queéqueelasfazem?—perguntouonegro.—TudoéputanasFerradas...—explicouovelho.Astrês?—ohomemmagroseadmirou.—Todastrês,simSinhô...Houve um minuto de silencio. O morto repousava magro, a barba

crescida,pintadadebranco.Ovelhocontinuou:—Umafoicasada...Depoisomaridomorreu...—Eraumhomemvelho,hein?—fezomagroapontandoocadáver.—Tinhaseussessentabemcontados...— Fora os que mamou... — disse um que até então não tinha

intervindonaconversa.Masninguémriu.Ohomemmagrotrouxeagarrafadecachaça.Haviaumcanecoque

passou de mão emmão. Reagiram com o trago. Um dos que morava nacasahaviachegadoparaa fazendanaqueledia.Quissaberque febreeraaqueladequeovelhomorrera.

—Ninguémsabemesmo.Eumafebredamata,pegaum,liquidaemdois tempos.Não há remédio que de jeito... Nemmesmodoutor formado.NemmesmoJeremiasquetratacomerva...

Onegroexplicouparaocearenserecém-chegadoqueJeremiaseraofeiticeiroquemoravanasmatasdeSequeiroGrandesozinho,socadoentreas árvores numa cabana em ruínas. Só num último caso os homens seatreviam a ir até lá. Jeremias se alimentava com raízes e com frutassilvestres. Fechava o corpo dos homens contra bala e contramordida decobra. Na sua cabana as cobras andavam soltas e cada uma tinha seunome como se fosse uma mulher. Dava remédio para males do corpo eparamalesdoamor.Mascomessafebrenemelepodia.

—Me falaram lá noCearámas eunãodei crença... Se falava tantahistóriadessasterrasqueatépareciacoisademilagre...

Otrabalhadormagroquissaberoqueéquediziam:—Coisaboaoucoisaruim?—Boaeruim,maisruimqueboa.Deboasódiziaqueaquierauma

fartura de dinheiro que o fulano enricava logo que desembarcava. Quedinheiroeracalçamentoderua,erapoeiradeestrada...Deruim,quetinhaafebre,osjagunçosascobras...Deruimmuitacoisa...

—Eaindaassimtuveio...Ocearensenãorespondeu,foiovelhoquevinhatrazendoocadáver

quemfalou:— Pode ter a ruindade que tiver, se tem dinheiro o homem não

enxerga nada. Homem é bicho que só vê dinheiro, ica cego e surdoquando vê falar em dinheiro... Por isso é que há tanta desgraça nessasterras...

O homem magro apoiou com a cabeça. Também ele deixara pai emãe,noivaeirmã,paraviratrásdodinheirodessasterrasdeIlhéus.Eosanos se haviam passado e ele continuava a colher cacau nas roças paraManecaDantas.Ovelhocontinuava:

—Temdinheiromuito,masagentenãov...Avelailuminavaacaramagradodefunto.Elepareciaescutaratento

a conversa dos homens em torno dele. A caneca de cachaça passoumaisumavez.Começaramoschuviscos lá fora,onegrofechouaporta.Ovelhoitou longamente o rosto barbado do morto, sua voz era cansada e semesperança:

— Tão vendo o inado? Pois bem: fazia pramais de dez anos quetrabalhava nas Baraúnas pro coronel Teodoro. Não tinha nada, nemmesmo as ilhas... Passou dez anos devendo pro coronel. Agora a febre

levouele,ocoronelnãoquisdarnemumvintémpraajudarasmeninasafazeroenterro...

Omoçoconcluiuahistóriaqueovelhocontava:— Inda disse que fazia muito não mandando a conta que o velho

deviaprasfilhaspagar.Queraparigaganhamuitodinheiro...O homem magro cuspiu com nojo. As orelhas largas do defunto

pareciam escutar. O cearense estava um pouco alarmado. Ele chegaranaquele dia, um capataz de Maneca Dantas o contratara em Ilhéusjuntamente com outros que haviam desembarcado do mesmo navio.Haviam chegado já tarde e tinham sido distribuídos pelas casas dostrabalhadores. O negro esclareceu, enquanto emborcava o caneco decachaça:

—Amanhãtuvaiver...Ovelhoquetraziaodefuntoresumiu:— Nunca vi destino mais ruim que o de trabalhador de roça de

cacau...Ohomemmagroconsiderou:—Oscapangasaindapassammelhor...—virouparaocearense.—

Setutemboapontaria,tutáfeitonavida.Aquisótemdinheiroquemsabematar,osassassinos...

Ocearensearregalouosolhos.Omortooassustavavagamente,eraumprovaconcretadoqueconversavam.

—Quemsabematar?Onegroriu,ohomemmagrofalou:Um cabra certeiro na pontaria tem regalias de rico... Vive pelos

povoados, com asmulheres, temdinheiro no bolso, nunca falta saldo praele.Masquemsóservepraroça...Tuvaiveramanhã...

Como o homem magro era o segundo que falava nesse dia deamanhã, o cearense quis saber o que ia se passar. qualquer um podiaexplicarmasfoimesmoohomemmagroquemfalou:

—Amanhãcedooempregadodoarmazémchamaportuparafazero "saco" da semana. Tu não tem instrumentos pro trabalho, tem quecomprar.Tucompraumafoiceemachado,tucompraumfacão,tucomprauma enxada... E isso tudo vai icar por cem mil-réis. Depois tu comprafarinha, carne, cachaça, café pra semana toda. Tu vai gastar uns dezmil-réis pra comida. No im da semana tu tem quinze mil-réis ganho dotrabalho — o cearense fez as contas, seis dias a dois e quinhentos, econcordou.—Teusaldoédecincomil-réis,mastunãorecebe, icaláparair descontando a dívida dos instrumentos... Tu leva um ano pra pagar os

cemmil-réis, sem ver nunca um tostão. Pode ser que no Natal o coronelmande te emprestar mais dez mil-réis pra tu gastar com as putas nasFerradas...

O homem magro disse aquilo tudo com um ar meio burlão, entrecínico,desanimadoetrágico.Depoispediucachaça.Ocearensetinha icadoemudecido,olhavaomorto.Falou,porfim:

—Cemmil-réisporumfacão,umafoiceeumaenxada?Foiovelhoquemexplicou:—EmIlhéustutiraumfacãoJacarépordozemil-réis.Noarmazém

dasfazendastunãotirapormenosdevinteecinco...— Um ano... — fez o cearense, e estava fazendo cálculos sobre

quando a chuva cairia novamente na sua terra de secas do Ceará. Elepretendia voltar logo que chovesse sobre a terra abrasada e pretendialevardinheiroparapodercomprarumavacaeumbezerro.—Umano.—repetiu,efitouomortoquepareciasorrir.

— Isso tu pensa... Antes de terminar de pagar tu já aumentou adívida...Tu jácomproumaiscalçaecamisadebulgariana...Tu jácomprouremédioqueéumDeusnosacudadecaro,tujácomprouumrevólverqueéoúnicodinheirobemempregadonessaterra...Etununcapagaadívida.Aqui — e o homem magro fez um gesto circular com a mão abarcandotodos eles, os que trabalhavam para os "Macacos" e os dois que vinhamcomomortodas"Baraúnas"aquitudodeve,ninguémtemsaldo.,

Os olhos do cearense estavam amedrontados. A vela se gastavailuminando omorto com sua luz vermelha. Chuviscava lá fora, o velho selevantou:

— Eu era menino no tempo da escravidão... Meu pai foi escravo,minhamãetambém.Masnãoeramaisruimquehoje...Acoisanãomudoufoitudopalavras...

Ocearensetinhadeixadomulhere ilhanoCeará.Vieraparavoltarcom a notícia das primeiras chuvas, carregado de dinheiro ganho no Sul,dinheiro para recomeçar a vida na sua terra. Agora estava commedo. Omortoria,aluzdavelaaumentavaediminuíaseusorriso.Ohomemmagroconcordoucomovelho:

—Nãofazdiferença...Ovelhoapagouavela,guardounobolso.Levantaram lentamentea

rede,eleeomoço.Ohomemmagroabriuaporta.Onegroperguntou:—Asfilhasdele,asputas...—Sim!...—fezovelho.-...ondemora

—NaruadoSapo.Easegundacasa.Depoisovelhovoltou-seprocearense:—Daquinuncaninguémvolta.Ficaamarradonoarmazémdesdeo

diaquechega.Setuqueriremboraváhojemesmo,amanhãjáétarde...Setu quer ir, vem com a gente, assim faz também a caridade de ajudar acarregarofinado.Depoisétarde...

Ocearenseduvidavaainda.Ovelhoeomoçojáestavamcomaredesobreosombros.Ocearenseperguntou:

—Epraondevou?QuevoufazerNinguém soube responder, aquela pergunta não havia ocorrido a

nenhum deles. Nem mesmo o velho, nem mesmo o homem magro quetinhaavozburlonaecínica.Ochuviscocaíasobreomorto.Ovelhodeuboanoiteeagradeceu.Omoçotambém.Ficaramolhandodaporta,onegrosebenzeu em homenagem ao cadáver mas logo pensou nas três ilhas,rameiras as três. "Rua do Sapo", segunda casa... Iria lá quando fosse aFerradas... O cearense olhava os homens que iam sumindo na noite. Derepentedisse:

—Eeuvoutambém...Juntou febrilmente seus trapos, soluçou uma despedida, saiu

correndo.Ohomemmagrofechouaporta:—Epraondevai—Ecomoninguémrespondesseà suapergunta

elemesmorespondeu:—Praoutrafazenda,vaiseromesmoqueaqui.Apagouocandeeiro.

10

Apagou o candeeiro com um sopro. Antes Horácio havia desejadoboasnoites,desdeaporta,aoDr.Virgílioquedormianoquartoemfrente.Avozsonoradoadvogadoresponderadelicadamente:

—Quedurmabem,coronel.NosilenciodoquartoEsterouviueprendeuasmãossobreopeito,

queria prender as batidas do seu coração. Chegavam da sala os roncoscompassadasdeManecaDantas.O compadredormianuma rede armadanasaladevisitas,cederaaodoutoroquartoemquesempresehospedava.Ester, no escuro, espiava os movimentos do marido. Havia nela umasensação de inida: era a certeza da presença de Virgílio no quarto emfrente. Horácio despiu-se no escuro, Ester escutou o ruído das botas aoserem descalçadas. Ele estava sentado na beira da cama e ainda estava

alegre, ainda trazia no peito aquela sensação quase juvenil de felicidadeque o acompanhava desde amesa quando Ester resolvera tocar piano apedido dele. Da beira da cama ouvia a respiração de Ester. Arrancou acamisa e as calças, vestiu o camisolão de pequenas lores vermelhasbordadas no peito. Levantou-se para fechar a porta que comunicava oquartodelescomaqueleondeo ilhodormiaguardadoporFelícia.AmuitocustoEsterconsentiraemtiraracriançadoseuquarto,emdeixá-ladormirsob os cuidados da empregada. E exigira que a porta icasse sempreabertanoseumedoquepelanoiteascobrasdescessemeestrangulassemo menino. Horácio cerrava a porta devagarinho. Ester seguia, seu olhosabertos no escuro, osmovimentos domarido. Sabia que ele a iria tomaressanoitesemprequefechavaaportaentreosdoisquartoseraporqueaqueria possuir. E — era o mais estranho de quanta coisa estranhaacontecera naquela noite — pela primeira vez Éster não sentia aquelaobscura sensação de asco que se renovava todas as vezes queHorácio aprocurava para o amor. Das outras vezes se encolhia na cama,inconscientemente, um frio apercorria toda, seu ventre, seusbraços, seucoração. Sentia seu sexo se fechar numa angústia. Hoje não sente nadadisso.Porque,sebemseusolhosvislumbrassemnaescuridãodoquartoosmovimentosdeHorácio,suacabeçaestánoquartoemfrenteondeVirgíliodorme. Dormirá Talvez não, talvez pense nela, talvez seus olhosatravessemaescuridãoeaporta,o corredoreaoutraportaeprocuremver sob a camisade cambraiao corpodeEster. Estremece ao imaginá-lo.Mas não de horror, é um estremecimento doce que desce pelas suascostas, sobe pelas coxas, morre no sexo numa morte de delícia. Nuncasentiraoquesentehoje.SeucorpomagoadodaspassadasbrutalidadesdeHorácio, seu corpo possuído sempre com amesma violência, se negandosempre com a mesma repulsa, seu corpo que se havia trancado para odesejo, acostumado a receber o adjetivo— "fria"— cuspido porHorácioapós a luta de instantes, seu corpo se abriu hoje como se abriu seucoração.Nãosentenosexoaquelasensaçãodecoisaqueseaperta,queseesconde na casca como um caramujo. A só presença de Virgílio no outroquarto a abre toda, com o só pensar nele, no seu bigode largo e bemcortado, nos seus olhos tão compreensivos, no seu cabelo loiro, sente umfrio no sexo que se banha de morna sensação. Quando ele lhe disseraaquelacomparaçãodopassarinhoedacobra,asuabocaestiverapertodoouvidodeEstermasfoinocoraçãoenosexoqueelaouviu.Cerraosolhospara não ver Horácio que se aproxima. Vê é Virgílio, ouve suas palavrasboas. e ela que pensara que ele fosse bêbado como o Dr. Rui... Sorri.

Horáciopensaqueosorrisoéparaele.Tambémeleestáfeliznessanoite.Ester vê Virgílio, suas mãos cuidadas, seus lábios carnudos, e sente nosexo,coisaqueelanuncasentiu,umdesejodoido.Umavontadedetê-lo,deapertá-lo, de se entregar, de morrer nos braços dele. Na garganta umestrangulamento como se fosse soluçar. Horácio estende as mãos sobreEster. Delicadas e docesmãos de Virgílio, carícias que ele saberá, ela vaidesmaiar, Horácio está por cima dela, Virgílio é aquele por quem elaesperoudesdeosdiaslongínquosdecolégio...Estendeasmãosprocurandoos seus cabelos para acariciá-los, esmaga nos lábios deHorácio os lábiosdesejadosdeVirgílio...Evaimorrer,suavidaescoapelosexoemchamas.

Horácio nunca a encontrara assim. Hoje é outra mulher a suamulher. Tocara música para ele, se entregara com paixão. Parece mortanos seus braços... Aperta-a mais, prepara-se para tê-la novamente. ParaHorácioécomomadrugada,umainesperadaprimavera,éafelicidadequeelejánãoesperava.Sustentasuacabeçaformosa,soamosgolpesnaportada rua. Horácio suspende seu gesto de carinho, ouve de ouvido atento.OuveManecaDantasqueselevanta,osgolpesqueserepetem,atrancadaporta que é aberta, a voz do compadre perguntando quem é. Nas suasmãosacabeçadeEster.Osolhosvãoseabrindodevagar.HoráciosenteospassosdeManecaqueseaproximam,abandonaodocecalordocorpodeEster.E senteuma repentina raivadeManeca, do importunoque chegounessahorafeliz,seusolhossetornampequenos.DocorredorvemavozdeManecaDantas:

—Horácio!CompadreHorácio—Queé?—Venhaaquiumminuto.Écoisaséria...DooutroquartochegaavozdeVirgílio:-Eusoupreciso?Manecaresponde:—Venhatambém,doutor.DoleitosaiavozestranguladadeEster:—Queé,Horácio?Horáciovolta-separaela.Sorri,levaamãoaoseurosto:—Vouver,voltojá.Eutambémvou...E, enquanto ele sai, ela salta da cama, veste uma bata sobre a

camisa.Recorda-sequeassimpodevermaisumavezaVirgílionessanoite.Horáciosaiucomoestava,ocandeeiroacesonumamão,ocamisolãoatéospés,as loresnopeito,pequenasecômicas.Virgílio jáseencontranasala

com Maneca Dantas quando Horácio chega. Reconhece imediatamente oterceirohomem: é Firmoque temuma roça juntodasmatasde SequeiroGrande. Está cansado, se sentou numa cadeira, as botas enlameadas, orostotambémpingandodelama.HorácioouveospassosdeEster,diz:

—Trazumapinga...Ela mal teve tempo de constatar que Virgílio não veste como os

outros um camisolão para dormir. Veste pijama muito elegante, e fumanervosamente.ManecaDantasaproveitaasaídadeEsterparaen iarumascalças sobreo camisolão. Ficamais ridículo ainda, umpedaçodas fraldassaindopelascalças.FirmovoltaaexplicarparaHorácio:

—OsBadarósmandarammeliquidar.ManecaDantasestáridículoeansiosonaquelestrajes.Suapergunta

envolveumprofundoconhecimentodoscapangasdosBadarós:—Ecomoéquevocêtávivoainda?Horácio também espera a resposta. Virgílio o olha , O coronel tem

rugasnatesta,estáenormenocômicocamisolão.Firmoconta:—Onegroseamedrontou,errouapontaria...— Mas era mesmo um homem dos Badarós? – Horácio queria

certeza.—EraonegroDamião...Eerrou?—avozdeManecavinhacheiadeincredulidade.— Errou... Parece que tava bêbado... Saiu correndo pela estrada

comodoido.Aluatavabonita,euvibemacaradonegro...ManecaDantasfaloupausado:— Pois pode mandar acender uma vela ao Senhor do Bon im...

EscapardotirodonegroDamiãoémilagreedosgrandes...Ficaramtodascalados.Esterchegavacomagarrafadecachaçaeos

copos. Serviu. Firmo bebeu e pediu outro. Emborcou-o também de umtrago.VirgílioadmirouanucadeEsterquesecurvaraparaservirManecaDantas.Ocangotebrancoapareciaaospedaçossobocabelosolto.Horácioestavaparado,agoraEsterserviaaele.Virgílioosolhavaeteveumdesejode rir, O coronel era ridículo, parecia um palhaço de circo, com aquelecamisolão bordado, a cara picada de bexiga. Na mesa era um homemtímidoquenão entendia amaior parte doque ele conversava comEster.Agoraerasumamentecômico,Virgíliosesentiudonodaquelamulherqueo acaso jogara ali, nummeio quenão era o dela.O gigantesco fazendeiroparecia-lhe uma coisa frágil e sem importância, incapaz de ser obstáculoaosprojetosquenasciamnocérebrodeVirgílio.AvozdeFirmoo trouxeparaarealidadeambiente:

— E dizer que estou bebendo essa cachacinha... Podia estar naestrada,estirado...

Ester estremeceu, a garrafa tremeu na suamão, Virgílio foi jogadotambém, subitamente, dentro da cena. Estava diante de um homem queescaparadesermorto.Eraaprimeiravezqueeleconstatavaumdaquelestantos acontecimentos dos quais os amigos lhe haviam falado na Bahia,quando ele se preparava para vir para Ilhéus. Mas ainda assim não sedava perfeita conta da importância do fato. Julgava que as rugas deHorácio, o olhar ansioso deManecaDantas, re letiam apenas as emoçõesque lhescausavaavistadeumhomemqueescaparadeserassassinado.No tempo relativamente curto, em que Virgílio estava na zona do cacau,ouvira falar demuita coisamas ainda não se encontrara frente a frentecomumfatoconcreto.ObarulhodasTabocas,entreagentedeHorácioeados Badarós, se dera quando ele voltara à Bahia, a passeio. Quandochegara, restavam os comentários mas ele duvidara de muita coisa. Jáouvira falar nas matas de Sequeiro Grande, já ouvira dizer que tantoHorácio como os Badarós as desejavam, mas nunca dera uma grandeimportânciaatudoaquilo.EdemaisencontravaHorácioigualaum"clown"naquela roupa de dormir, presença cômica que completava uma imagemformadacomaatitudedelenojantarenasaladevisitas.SenãofosseoardeFirmoelenemsedariacontadodramáticodacena.PorissoseadmirouquandoHoráciosevoltouparaManecaDantasedisse:

—Nãohámaisjeito...Elestãoquerendo,vãoter.Virgílio não esperava aquela voz irme e enérgica de Horácio.

Chocava com a imagem que ele formara do coronel. Olhouinterrogativamente,Horáciofalouparaelenumaexplicação:

— Vamos precisar muito do senhor, doutor. Quando eu mandeipediraoDr.Seabraumadvogadoboméquejápreviaqueissoiasedar...A gente tá por baixo na política, não conta com juiz, precisa de umadvogado que entenda das leis. E no Dr. Rui não con io mais. ' Umcachaceiro, brigado com todomundo, com o juiz, com os escrivães... Falabem,masésóoquesabefazer.Eaqui,agoraeprecisoumadvogadoquetenhacabeçaemanha...

Aquela franqueza com que Horácio falava dos advogados, daadvocacia e da justiça, as palavras fortes envoltas em certo desprezo,novamentechocaramVirgílio.A iguradocoronelcomoumpalhaçotorpeecômicoiaruindonaimaginaçãodoadvogado.Perguntou:

Mas,dequesetrata?Eraumgrupoestranho.Estavamtodosdepéemtornode irmoque

tinhaaroupamolhadadochuviscoequeaindaarfavadacorridaacavalo.Horácio, enorme no camisolão branco. Virgílio fumando nervoso. ManecaDantas pálido, sem notar o pedaço de camisa que saia das calças. Ésterhavia sentado também, só tinha olhos para Virgílio. Também ela icarapálida,elasabiaqueiacomeçaralutapelapossedeSequeiroGrande.Mas,mais importante que esse fato, era a presença de Virgílio, era o pulsarnovodoseucoração,eraaalegriainéditadentrodela.QuandoVirgíliofezapergunta,Horáciodisse:

—Vamossentar.VinhaumaautoridadedavozdelequeVirgílionãoconheceraantes.

Como se uma ordem sua não pudesse sequer ser discutida. Virgílio serecordou do Horácio de quem falavam em Tabocas e em Ilhéus, o dasmuitasmortes,odasvelhasbeatasquetinhaodiabopresonumagarrafa.Vacilava entre as duas imagens: umamostrando um homem poderoso eforte, dono e senhor; a outra mostrando um palhaço ignorante edesgraçado, de uma in inita fraqueza. Da sua cadeira Horácio falou, opalhaçofoidesaparecendo.

—Se tratado seguinte: essamatadoSequeiroGrandeé terraboapracacau,amelhordetodazona.Nuncaninguémentrounelapraplantar.Sóquemviveláéummaluco,metidoacurandeiro.Doladodecádamatatoueucomminhapropriedade. Jámetiodentenamataporesse lado.DoladodelátãoosBadaróscomafazendadeles.Elestambémjámeteramodentenamata.Maspoucacoisadeumladoedeoutro.Essamataéum imdomundo,seudoutor,equemtiverelaéohomemmaisricodessasterrasde Ilhéus... Emesmo que ser dono de uma vez de Tabocas, de Ferradas,dostrensedosnavios...

Os outros bebiam as suas palavras,Maneca Dantas apoiava com acabeça. Virgílio começava a compreender. Firmo ia se repondo do seususto.Horáciocontinuou:

—Nafrentedamata,entreeueosBadaróstáocompadreManecaDantas coma fazendadele.Maisarriba taTeodorodasBaraúnas. Só temessas duas fazendas grandes. O mais é roça pequena, como a do Firmo,umas vinte... Tudo mordendo a mata, mas sem coragem de entrar... Fazmuito que eu tenho o plano de derrubar amata de Sequeiro Grande. OsBadarósbemsabe...Semeteporquequer...

Olhou em frente, as últimas palavras soavam como anunciandodesgraçasirremediáveis.ManecaDantasesclareceu:

Elestãodecimanapolítica,porissoseatrevem...Virgílioqueriasaberumacoisa:

—MasqueéqueFirmotemquever?Horáciovoltouafalar:— E que a roça dele está entre a mata e a propriedade dos

Badarós... Faz tempo que eles andavam propondo comprar a roça dele.Ofereceramatémaisdoquevalia.MasFirmoemeuamigomeueleitorhámuitosanos,maconsultou,aconselheiquenãovendesse.EusabiaatençãodosBadarósqueeraentrarpelamata.MasimagineiqueelesmandassemliquidarFirmo...Querdizerqueelestãodecididos...Tãoquerendo...

Vinha uma ameaça na sua voz, os homens abaixaram as cabeças.Horácio riu seu riso para dentro, Virgílio via um gigante de forçainimaginável.Soboimpériodasuavozdesapareciamatéascômicas loresdocamisolão.Fezumgesto,Esterserviuoutrarodadadecachaça.Horáciovirou-separaoDr.Virgílio:

— O senhor acha mesmo, doutor, que o Seabra vai ganhar aseleições?...

—Estoucertodisso...—Tábem...Acreditonosenhor—faloucomoseacabassedetomar

umaresoluçãode initiva.EeracertoporquelevantoueandouparaFirmo:—Nãotemnada,Firmo.Tu,queacha?Etu,compadre?—virava-separaManeca Dantas. — Tem algum dono de roça na beira da mata que nãoestejacomigo?

ExplicouaVirgílio:—Osdonosderoçatudosabequeseeu icarcomasmatasnãovou

botar eles para fora das terras deles... Até dou parte da mata. Se meajudarem.Játemosconversado.Agora,osBadarósqueremétudo,amataeasroçasjunto...Tudo,queremmaisdoquepodemengolir.

OlhouparaManecaeparaFirmoesperandoarespostadaperguntaquefizeraantes.Firmofalouprimeiro:

—Tátudocomvosmecê...ManecaDantastinhaumarestrição:—NãoendossoporTeodorodasBaraúnas.Éhomemmuitodacasa

dosBadarós...Sóvendo...Horácioresolviarapidamente:— Tu, Firmo, vai voltar agorinha mesmo. Mando dois homens pra

lhe garantir... Tu fala com os outros todos: Braz José da Ribeira, com aviúvaMiranda,comColo,comtodoomundo.NãoesqueçacompadreJardequeéumhomemvalente.Digaquevenhatudoalmoçaraquiamanhã.Táodoutor,agentebotatudonopretoenobranco.Ficocomamataatéabeirado rio, omais, o que tá do outro lado, é pra dividir... E tambémas terras

quesetomar...Tácerto?Firmo concordou já se levantando para partir. Virgílio se sentia

tonto, olhava Ester brancamais que branca, pálidamais que pálida, quenãopronunciavaumapalavra.Horácio falava agoraparaManecaDantas,davaordens,eeraosenhor:

—Etu,compadre,vaifalarcomTeodoro.Explicaocasoaele.Seelequiser vir, que venha. Faço um acordo com ele. Se não quiser, que seprepare,porquevaichovertironessasvinteléguasdeterra.

Saiu até o terreiro. Virgílio o seguiu com os olhos prenhes deadmiração.Depoisolhou timidamenteEster, encontrou-adistanteequaseinatingível.LaforaHoráciogritavaparaascasasdostrabalhadores:

—Algemiro!JoséDedinho!JoãoVermelho!Depois foram todos para a varanda. No terreiro os burros eram

selados,oshomenssearmavam.Partiramjuntos,Maneca,Firmoeostrêscapangas, a cavalhada ressoando namadrugada que chegava. O capatazviera também,Horácio estava explicando o caso para ele. Virgílio e Esterentraram na sala. Ela se aproximou, estava lívida, falou em voz rápida,palavrasarrancadasdocoração:

—Melevedaquiparamuitolonge...Ouviram os passos de Horácio antes que Virgílio respondesse. O

coronelentrou,falouparaaesposaeparaoadvogado:—Essamatavaiserminhanemquetenhadelavaraterratodacom

sangue...Seudoutor,seprepare,obarulhovaicomeçar...DescobriuEstercommedo:—Tuvaipara Ilhéus, émelhor.—masestava interessadoeranos

acontecimentos.—Doutor,vosmecêvaivercomoseliquidaunsbandidos.PorqueosBadarósnãosãomaisqueunsbandidos.

TomouVirgíliopelobraço,conduziu-oatéavaranda.Namadrugadaqueseavizinhavaaterrasevestiadeumaluzaindabaçaetriste.Horácioapontouparalonge,umhorizontequemalsevia.

— Nessa direção, seu doutor, estão as matas de Sequeiro Grande.Daquiunstemposvaisertudopédecacau...TãocertocomoeumechamarHoráciodaSilveira...

11

Quando o cachorro uivou no terreiro, Don'Ana Badaró seestremeceu na rede. Não era medo, na cidade, nos povoados e nas

fazendas a gente dizia que os Badarós não sabiam o que eramedo.Masestava inquieta, assim passara toda a tarde, na certeza de que lheocultavam algo, de que, entre o pai e o tio havia um segredo que asmulheres de casa não conheciam. Notara a ausência da Damião e deViriato, perguntara por eles a Juca que respondera que os homens"haviamidoaumrecado.Don'Anaperceberaamentiranavozdotiomasnada dissera. Havia uma gravidade espalhada no ar e ela a sentia e seinquietava.Ouivodocachorrose repetiu, choravaao luarnumaangústiademachosemfêmeaemnoitededesejo.Don'Anaolhouorostodopaique,deolhos semicerrados, esperavaqueela iniciassea leitura. SinhôBadaróestava tranquilo, uma serenidade descia-lhe pelos olhos e pelas barbas,suasmãosgrandesapoiadasnaspernas,todoelesegurançaepaz.SenãofosseJucasemovendoinquietonacadeira,Don'Anatalveznãosentissetãodentrodesiouivodocachorro.

EstavamnasaladevisitaseerachegadaahoradaleituradaBíblia.Aquele era um hábito de muitos anos, vinha desde os tempos da inadadona Lídia, mãe de Don'Ana. Era religiosa e amava buscar na Bíblia apalavraconselheiraparaosnegóciosdomarido.QuandoelamorreraSinhôconservou o hábito e o respeitava religiosamente. Onde quer que eleestivesse,nafazenda,emIlhéus,mesmonaBahiaanegócio,ondequerquefosse, alguémhaviade lerparaeleouvir, cadanoite, trechosesparsosdaBíblia onde ele procurava adivinhar conselhos e profecias para os seusnegócios.DesdequeLídiamorrera,Sinhôse faziacadavezmaisreligioso,misturando agora ao seu catolicismoumpoucode espiritismo emuitodesuperstição.Principalmente lhe era arraigadoaquelehábitoda leituradaBíblia.Asmáslínguas,emIlhéus,pilheriavamsobreoassuntoecontavamnoscafésquecertanoiteSinhôBadaró,depasseionaBahia,resolverairauma casa de prostitutas. E antes de se deitar com a rameira sacara dobolsoavelhaBíbliae izeracomqueela lesseumtrecho.PorcausadessahistóriaJucaBadaróarmaraumbarulhonocafédoZecaTripa,partindoacaradofarmacêuticoCarlosdaSilvaqueacontavaentregargalhadas.

Desde que dona Lídia morrera, Don'Ana passara a ser leitora, nafazendaouemIlhéus,daspáginas jásujaseporvezesrasgadasdovelhoexemplardeBíblia.ExemplarqueSinhôBadarónuncaquiseratrocarporoutro, certodequeaqueleeraoque tinhacapacidademágicadeoguiar.NemmesmoquandooCônegoFreitas,numanoitequedormiunafazenda,lhe feznotarqueaquela eraumaBíblia editadapelosprotestantes equenão icavabemaumcatólico lerum livro"anatemado".SinhôBadarónãoentendeu o adjetivo e não pediu explicações. Respondeu que pouca

diferençafazia,queelesempresederabemcomaquelaeque"Bíblianãoeraalmanaquequesemudassetodoano".OCónegoFreitasnãoencontrouargumentosepreferiucalar,achandoquejáeraumagrandecoisaqueumcoronellesseaBíbliatodasasnoites.TampoucoSinhôBadaróadmitiuqueDon'Ana ordenasse a leitura, como ela o tentou ao substituir Lídia noscuidados da casa. Don'Ana propusera partir da primeira página e lerematéo im.MasSinhôprotestou,eleacreditavaqueaBíbliadeviaserabertaao acaso, para ele era um livromágico, a página aberta casualmente eraaquelaque tinhaoqueensinar.Quandonão se satisfaziamandavaqueailha abrisse noutro trecho qualquer e mais noutro e noutro, até queencontrava uma relação entre a página lida e o negócio que o estavapreocupando.Prestavaumaenormeatençãoàspalavrasmuitasdelasnãoentendia—buscavaosentido,interpretava-asaoseumodo,emfunçãodassuas necessidades. Várias vezes deixara de realizar negócios devido àspalavras deMoisés oudeAbraão. E costumavadizer quenunca se haviadadomal. E ai daquele, parente ou visita, que, chegada a horada leitura,pilheriasse ou protestasse. Sinhô Badaró perdia a calma e tinha umaexplosãode cólera.Nemmesmo Juca seatreviaa reclamar contraaquelehábitoqueeleconsideravasumamentemolesto.Ouviaprocurandoprestaratenção, sedivertindo comos trechosque tratavamdas relações sexuais,era o único que entendia certas palavras cujo sentido real escapava aSinhôeaDon'Ana.

Don'Ana itaopaiserenonasuacadeiraalta.Parece-lheque,comosseusolhossemicerrados,eleolhaoquadrodaparede,aquelequadroqueele trouxera da Bahia quando ela lembrara que a sala precisava de algoqueaalegrasse.Elatambémolhaoquadroesentetodaapazquedescedagravura. Mas logo vê que Juca está nervoso, que não se interessa pelojornalquelê,umjornaldaBahiaatrasadodequinzedias.OcachorrouivounovamenteeJucafalou:

—QuandovierdeIlhéusvoutrazerumacadela.Periandasentindofalta...

Don'Anaachouquea frasesoava falso,que Jucaprocuravaapenasocultarcomoruídodasprópriaspalavrasasuaagitação.Nãoaenganam,existe algo, algo de grave. Onde estarão Damião e Viriato? Muitas noitesassim já passou Don'Ana Badaró, sentindo na casa esse ar perturbado,essa atmosfera de segredo. Por vezes sómuitos dias depois ela ia saberqueumhomemmorreraequeasterrasdosBadaróshaviamaumentado.E icavaterrivelmentemagoadaporlhehaveremescondidoofato,comoseelafosseumamenina.Desviaoolhardotio,aquemninguémrespondeu,e

agora inveja a calma de Olga, a esposa de Juca que faz "crochê" numacadeira ao lado do marido. Olga pouco demorava na fazenda e quando,obrigada por Juca, subia no trem de Ilhéus para passar um mês comDon'Ana, vinha chorandoe se lastimando. Suavida eramos cochichosdeIlhéus, era se fazer demártir perante as velhas beatas e as amigas, o sequeixar dia e noite das aventuras amorosas de Juca. A princípio quiserareagir contra as sucessivas in idelidades do marido. Mandara cabrasameaçar mulheres que se metiam com ele, certa vez mandou raspar acabeça de umamulatinha para quem Juca botara casa. Mas a reação deJucafoiviolenta—asvizinhasdiziamqueeleasurrara—eelapassouasecontentarcomoscomentários,comasqueixasfeitasatodomundo,comoardevítima resignadaquepunhanas festasde igreja.E issoeraa suaprópria vida, nada lhe agradava mais que se queixar, que ouvir asmurmurações e as lamentações das velhas beatas, possivelmente sesentiriadefraudada se Juca se convertessenumesposomodelo.Odiava afazenda onde Sinhô não queria ouvir suas lamúrias, onde Don'Ana,ocupada todo o dia, tinha pouco tempo para se condoer dela. DemaisDon'AnatinhaavisãodevidadosBadarósenãochegavaaencontrarmalnenhumnasaventurasde Jucadesdequeeledavaàesposatudoqueelanecessitava. Assim fora seu pai, assimhaviamde ser sempre os homens,pensava Don'Ana. Além de que Olga, desinteressada de todos osproblemas dos Badarós, inimiga de terra, desconhecendo tudo que serelacionava com o cultivo do cacau, parecia a Don'Ana terrivelmenteestranha à família, distante e perigosa. Don'Ana a sentia como querespirando outra atmosfera que não a que ela, Sinhô e Juca respiravam.Porémnessemomentoela itaOlgacomcerta invejadasuacalma,dasuaindiferença ante omistério que perdura na sala. Don'Ana pressente quealguma coisa demuito sério se está processando. E sente tristeza e raivaporque a afastam do segredo, não lhe dão o lugar que lhe compete nafamíliaBadaró.Edemorao inícioda leitura,seusolhospasseiamderostoemrosto.

Raimundachega,terminadasastarefasdacozinha,sesentanochão,pordetrásdarede,começaacatarcafunénasancasdeDon'Ana.Osdedosda mulata estalam na morte de imaginários piolhos, nem mesmo aquelacarícia suave consegue adormecer a inquietação da moça. Que segredoguardam Sinhô e Juca, seu pai e seu tio Onde se encontrarão Viriato e onegroDamiãoPorqueJucaestátãoinquieto,porqueolhaorelógiotantasvezes?Ouivodocachorrocortaanoitedeagonia.

Sinhôabrelentamenteosolhos,demora-osnafilha:

—Porquenãocomeça,filha?Don'Ana abre a Bíblia, Olga olha com desinteresse, Juca larga o

jornalsobreaspernas.Don'Anacomeçaaler:"Etodosestessaíramcomassuastropas,

umamultidãodegentetãonumerosacomoaareiaquehánaspraiasdomar;eumnúmero

imensodecavalosecarroças."EraahistóriadaslutasdeJosué,eDon'AnaseadmiradeSinhônão

mandarqueelaabranoutrapágina.E,enquantoopaiouvemuitoatentoosversículos, ela procura também penetrar o sentido deles, encontrar aligação que existe entre eles e o segredo que a preocupa. Sinhô estávoltadopara a frente, abarbadescansando sobre aspernas, curvado,nointeressedenãoperderumasópalavra.MaisdeumavezolhouparaJuca.Don'Ana lê vagarosamente, procura ela também sair de um mundo dedúvidas.

ESinhôpedequeelarepitaumversículo,aquelequedizia:"TomoupoisJosuétodaaterradasmontanhasedomeio-dia,eaterra

deGosen,eaplanície,eodistritoocidental,eomontedeIsraeleassuascampinas."

A voz de Don'Ana silenciou, o pai fez um gesto para ela esperar.Estava re letindo, se bem lhe parecesse clara a bendição divina á suafamília e aos seus projetos. Se sentia invadido por uma grandetranquilidadeeporumasegurançaabsoluta.Falou:

—ABíblianãomentenunca.Nuncamedeimalseguindoela.NóssetocapraessasmatasdeSequeiroGrande,essaéavontadedeDeus.Hojeaindatavacomdúvida,agoranãotenhomais.

E, de repente, Don'Ana compreendeu e icou feliz, agora sabia queasmatas de Sequeiro Grande iam ser dos Badarós, que naquelas terrasiamcrescerospésdecacaueque, comoumavezSinhô lheprometera,onome daquela fazenda seria escolhido por ela. Seu rosto se abriu dealegria.

SinhôBadaróse levantou,eramajestoso,pareciaumprofetaantigocomos longos cabelos que começavam a embranquecer e a barba negrarolandosobreopeito.Jucaolhouoirmãomaisvelho:

—Sempretedisse,Sinhô,queagentetinhaqueentrarnessamata.NodiaqueagentetiverelaninguémvaimesmopodercomosBadarós.

Don'Ana abriumais seu riso. Apoiava as palavras do tio. A voz deOlgaveioassustada:

—Vãocomeçardenovocomosbarulhos?SeéassimvoupraIlhéus.

Nãomedoucomessavidadeversematargente.NessemomentoDon'Anaaodiou.Teveumolhardein inito desprezo pela esposa do tio, desprezo e raiva, era uma

pessoa de outro mundo, um mundo inútil e torpe, segundo pensavaDon'Ana.

Orelógiobateuashoras.Sinhôfalouparaafilha:— Vá dormir, Don'Ana, esta na hora. Você também, Olga, que eu

queroconversarcomJuca.TodaalegriadesapareceudorostodeDon'Ana.OlgaeRaimunda já

se levantavam, ela ainda procurava as palavras para pedir a Sinhô paraicar.Masos latidosdo cachorroqueacusava alguémno terreiro izeramcom que todos parassem. Segundos depois Viriato aparecia na porta davaranda,ocachorrooseguia, logoqueoreconhecerapararadelatir. Jucaseadiantouperguntando:

—Eoserviço?Omulatobaixouosolhos,falouapressadamente:— O homem veio pelo atalho, não veio pelo meu lado. Se tivesse

vindoeutinhaderrubadoele...Sinhôperguntou:—Quefoiqueteve?SepassoualgumacoisacomDamião?Falelogo.—Errouapontaria...—Nãoépossível!—Errou?—Jucaseadmira.—Éoque toupensando, simsenhor.Nãoseioquedeunele.Tava

esquisitodesdeque saiudaqui.Não sei oquedeunele. Cachaçanãoera,euhaviadeconhecer.

—Oqueéquetusabe?—perguntouSinhô.Omulatobaixoudenovoosolhos:— Seu Firmo nem foi ferido. Todomundo já sabe Pela redondeza.

TãodizendoqueDamiãomaluqueceu.Ninguémsabequerumotomou...—EFirmo?—quissaberJuca.—Topei comdois homens levandoumdefunto.Diz que seuFirmo

passou no rumo da casa do coronelHorácio. Ia no galope, só parou paradizer que vosmecê tinhamandado liquidar ele mas que Damião errou apontaria.Não quismais conversa, ia comumapressa da disgrama. Topeicomoshomens,játavamuitagenteconversando...

Asmulheres estavam paradas, Don'Ana segurava a Bíblia namão,seguiaaconversacomosolhosávidos.Agoracompreendiatudo.Edavaaoacontecimento toda a sua importância. Sabia que o futuro dos Badarós

estava sendo jogado naquela noite. Sinhô atravessou a sala em passoslargos.Falou:

—Queteriadadononegro?Viriatotentouexplicar:—Parecequedeuomedonele...—Nãoestoulheperguntando...O mulato se encolheu, Juca esfregou as mãos, procurava esconder

seunervosismo:—Agoranão temmais jeito... Émelhor começar antesqueHorácio

comece...Porquevaiserguerradeverdade.Olga suspendeu um gesto com medo do marido. Sinhô sentou-se

novamente. Esteve um minuto silencioso, pensava nos trechos da Bíbliaqueafilhalera.Erabemclaromaselequeriamais:

—Lêmais,Don'Ana.Ela tomoudo livro,abriu-oaoacasoe leumesmodepé.Suasmãos

tremiamumpoucomassuavozestavafirme:"Nãoterásmisericórdiacomele,masfar-lhe-áspagarvidaporvida,

olhoporolho,dentepordente,m,opororpépo.pé."Sinhôsuspendeuacabeça, jánãotinhadúvidas.Fezcomamãoum

gestoparaqueasmulheressaíssem.OlgaeRaimundacomeçaramaandarmasDon'Ananãosemoveu.Jáasduasestavamnocorredoreelaaindaseencontrava de livro na mão, em pé na sala, olhando o pai. Juca estavaansiosoqueelapartissepara conversar livremente comSinhô.Estedissecomvozáspera:

—Játemandeiirdormir,Don'Ana.Queestáesperando?Eentãoelarecitoudememória,semolharsequerparaolivro,olhos

fitosnosdopai:"Nãoteponhascontramimobrigando-me

adeixar-teeair-me;porqueparaondequerquetuforesireieu;eondequerquetuficares,ficareieutambém."

—Issonãoécoisapramulher...—começouJuca.MasSinhôBadaróointerrompeu:—Deixequeela ique.EumaBadaró.Umdiavãoseros ilhosdela,

Juca, que vão colher o cacau das roças de Sequeiro Grande. Pode icar,minhafilha.

Juca e Don'Ana sentaram-se perto dele. E começaram a traçar osplanosda luapelapossedasmatasdeSequeirogrande.Don'AnaBadaróestavaalegreeaalegria faziaaindamais formosasuacabeçamorena,deolhosardentesenegros.

12

Em torno da mata, na noite de ambições, desejos e sonhosdesencadeados, as luzes se acendiam. Luzes de placas de querosene dacasa de Horácio, luzes da casa dos Badarós. Vela que Don'Ana acenderaaos pés da Virgem, no altar da casa grande, para que ela ajudasse osBadarós nos dias que iam vir, vela que iluminava o caminho do defuntoque os homens levavam para entregar às ilhas, em Ferradas. Luzes nafazenda das Baraúnas, onde Juca Badaró e Maneca Dantas chegaramquaseaomesmotempopraconversarcomTeodoro.Luzde ifós,vermelhae fumacenta, nas casas dos trabalhadores que despertavam mais cedopara ouvir a história do negro Damião que havia errado a pontaria esumiraninguémsabiaparaonde.LuznacasadeFirmoondedonaTeresaesperavaomaridocomseucorpobranco,prontoparaoamornacamadejacarandá. Luzes nas casas dos pequenos lavradores despertados pelainesperada chegada de Firmo com os cabras de Horácio, convidando-ospara o almoçonodia seguinte. Em tornodamata brilhavamas luzes daslanternas, das placas, dos candeeiros e dos ifós.Marcavam os limites damatadeSequeiroGrande,aonorteeaosul,alesteeaoeste.

Os homens a cavalo ou a pé cortavam, por vezes, para atalhar aestrada real, pequenos trechosdamata.Eramosque iamde fazendaemfazenda,deroçaemroça,nosconvitesparaasconversaçõesdodiaqueseavizinhava.Emtornodamataaambiçãodoshomensacendialuzes,cortavaas estradas num galope. Mas nem as luzes, nem o passo dos homensacordavaamatadeSequeiroGrandequedormiaseusonodecentenasdeanos pelos galhos e pelos troncos. Repousavam as onças, as cobras e osmacacos. Ainda não se haviam despertado os pássaros para saudar amadrugada. Somente os vaga-lumes, lanternas de assombrações,iluminavam com sua verde luz o verde espesso das árvores. A mata deSequeiroGrandedormia,emtornodelaoshomensávidosdedinheiroedepoder concertavam planos para conquistá-la. E, no coração da mata, nomaisfechadoda loresta,iluminadosomentepelaluzincertaeinconstantedosvaga-lumes,dormeJeremias,ofeiticeiro.

Comoasárvoreseosanimaistambémelenãosedeuaindacontadequeamataestáameaçada,dequeaambiçãodoshomensacercou,dequeos dias das grandes árvores, dos animais ferozes e das assombraçõeschegaramao im.Nasuacabanamiseráveleledormejuntocomasárvoreseosanimais.

Quantos anos terá esse negro Jeremias, de carapinha branca, deolhos que já perderam o brilho, quase cegos, de corpo curvado, seco decarnes,derostoretalhadoderugasdebocasemumsódente,ecujavozéapenasummurmúrioqueénecessárioadivinhar?

Ninguémnãosabenessasvinteléguasdeterraemtornodasmatasde Sequeiro Grande. Para toda gente ele é um ser da mata, tão temívelcomoasonças e as cobras, comoos troncos enredadosde cipós, comoasprópriasassombraçõesqueeledirigeedesencadeia.EleédonoesenhordessamatadeSequeiroGrandequeHorácioeosBadarósdisputam.Desdea ímbria do mar, no porto de Ilhéus, até o mais longínquo povoado nocaminhodosertão,oshomensfalamemJeremias,ofeiticeiro,oquecuraasmoléstias, o que fecha o corpo dos homens para as balas e para asmordidas de cobra, o que dá remédios também, para osmales do amor,aquele que sabe as mandingas que fazem umamulher se agarrar a umhomem que nem visgo de jaca mole. Sua fama anda por cidades epovoadosqueelenuncaviu.Demuitolongevemgenteparaconsultá-lo.

Um dia, muitos anos antes, quando a loresta cobria muito maisterra,quandoseestendiaem todasasdireções,quandooshomensaindanãopensavamemderrubarasárvoresparaplantaraárvoredocacauquetodavia não chegara daAmazónia, Jeremias se acoitou naquelamata. Eraumnegrojovem,fugidodaescravidão.Oscapitães-do-matooperseguiameele entrou pela loresta Onde moravam os índios e não saiu mais dela.Vinhadeumengenhodeaçúcarondeosenhormandarachicotearassuascostasescravas.Durantemuitosanostiveratatuadanasespáduasamarcado chicote. Masmesmo quando ela desapareceu, mesmo quando alguémlhe disse que a abolição dos escravos havia sido decretada, ele não quissair da mata. Fazia muitos anos que chegara, Jeremias havia perdido aconta do tempo, já tinha perdido também a memória dessesacontecimentos.Sónãohaviaperdidoalembrançadosdeusesnegrosqueseus antepassados haviam trazido da África e que ele não quiserasubstituirpelosdeusescatólicosdossenhoresdeengenho.Dentrodamatavivia em companhia de Ogum, de Omolu, de Oxóssi e de Oxolufã, com osíndioshaviaaprendidoosegredodaservasmedicinais.Misturouaosseusdeusesnegrosalgunsdosdeusesindígenaseinvocavaaunseaoutrosnosdiasemquealguémialhepedirconselhoouremédionocoraçãodamata.Vinha muita gente, vinha mesmo gente da cidade, e aos poucos foramabrindo um caminho até a sua cabana, estrada feita pelos passos dosdoentesedosangustiados.

Viu os homens brancos chegarem para perto da mata, assistiu a

outras matas serem derrubadas, viu os índios fugirem para mais longe,assistiuaonascimentodosprimeirospésdecacau,viucomoseformavamas primeiras fazendas. Foi se retirando cada vez mais para o fundo damata e um temor foi se apossando dele: o de que os homens chegassemumdia para derrubar amata de SequeiroGrande. Profetizara desgraçassemcontaparaessedia.Atodosqueovinhamverelediziaqueessamataera moradia dos deuses, cada arvore era sagrada, e que, se os homenspusessemamãonela,osdeusessevingariamsempiedade.

Sealimentade raízeseervas,bebeaáguapurado rioque cortaamata, tem na sua cabana duas cobras mansas que assombram osvisitantes. E nem mesmo os coronéis mais temidos, nem mesmo SinhôBadaró que e chefe político e homem respeitado, Horácio, sobre quemcontamtantashistórias,nemmesmoTeodorodasBaraúnasque temumafamaterríveldemalvado,nemmesmoBrasilinoqueésímbolodevalentia,ninguém é tão temido nessas terras de São Jorge dos Ilhéus como ofeiticeiro Jeremias.Delesãoas forçassobrenaturais,aquelasquedesviamo curso das balas, que transformam em água inofensiva o veneno maisperigosodacobramaismortíferaqueéacascavel.

Na sua cabana dorme Jeremias, o feiticeiro. Mas seus ouvidosacostumados a todos os ruídos da loresta percebem, mesmo no sonopassosprecipitadosqueseaproximam.Abreosolhoscansados, levantaacabeçaquerepousanaterra.Procuraenxergarnamadrugadaqueapenasseavizinha,ergueobustomagro,vestidodefarrapos.Ospassosestãocadavezmaispróximos,alguémcorrepelapicadaqueconduzàcabana.Alguémquevemembuscaderemédiooudeconselhoequevemcomodesesperono coração. Jeremias já se acostumou a conhecer a angústia dos homenspela rapidez com que atravessam a mata. Esse vem desesperado, vemcorrendo pela picada, deve trazer o peito pesado de dor. O feiticeiro seacocora no chão, de entre os galhos chega uma luz dúbia que iluminafracamenteacobraquesearrastapelacabana.Jeremiasespera.Essequevemnão traz luzque ilumineocaminho, seusofrimentoé su icienteparaguiá-lo.Ofeiticeiromordepalavrasininteligíveis.

E, subitamente, o negro Damião se arroga na cabana, ajoelha nochão,beijaasmãosdeJeremias:

— Pai Jeremias, me sucedeu uma desgraça... Nem tenho voz pracontar,nemseicomodizer...PaiJeremias,eutouperdido.

O negro Damião treme todo, seu corpo enorme parece um frágilbambubatidopeloventonabeiradorio. Jeremiaspousasobrea testadonegroassuasmãosdescarnadas:

—Filho,nãohádesgraçasemcura.Tucontapraeu,negrovelhovaidarremédio...

Sua voz é fracamas suas palavras tem uma força de convicção. OnegroDamiãoseaproximamais,arrastandoosjoelhospelaterra:

—Meu pai, não sei como se deu... Nunca se deu isso com o negroDamião. Desde que vosmecê me fechou o corpo pras balas que nuncaperdium tiro, nuncamemeteumedo terdederrubarumdesinfeliz.Nãoseicomosedeu,paiJeremias,foicoisadefeitiço.

Jeremias espera a história em silencio. Suasmãos sobre a testa deDamiãosãoseuúnicogesto.Acobraagoraparoudeandar,seenrodilhounoquenteondeofeitiçodormia.Damiãotremeaocontinuarcomumavozqueoraéprecipitada,oraédemoradanabuscadaspalavras:

—SinhôBadarómandoueu ir liquidarohomem.Era seuFirmo, oque tem a roça dele bem aqui juntinho. Fui tocaiar no atalho e veioassombração,meupai,veioassombração,eraamulherdeleadonaTeresa,emeperturbouoentendimento...

Fica esperando. Seu coração está pequeno, são as emoções queenchemseupeito,emoçõesnovasedesencontradas.

Jeremiasdiz:—Conta,meufilho.—Tavatocaiandoohomem,apareceuamulher,andavadebarriga,

dizqueo ilhoiamorrer,queonegroDamiãoiamatartodostrês...Foimeamolecendo, foi me pegando, foi botando coisa na minha cabeça, tirou aforçademinhamão,tirouapontariademeuOlho.Coisadefeitiço,meupai,negroDamião errou o tiro... Que vai dizer agora SinhôBadaró? Ele é umhomem bom, eu atraiçoei ele... Não matei o homem, foi coisa de feitiço,botarammandinga,meupai!

Jeremiasestácomocorpoduroeosolhosparados,seusolhosquasecegos. Também ele compreende que, por detrás da histórias do negroDamião, está uma história muito mais importante, que por detrás dodestinodonegroestáodetodaamatadeSequeiroGrande:

—PraqueeraqueSinhôqueriafazerotrabalhoemFirmo,filho?— Seu Firmo não quis vender a roça, como Sinhô podia entrar na

mata, nessamata,meupai?E eu atraiçoei ele, nãoderrubei o homem, osolhosdamulhertirouacoragemdomeupeito.Eujuroquevi,meupai,nãoémentiradonegronão...

Jeremiasseergue.Destaveznãoprecisoudebordãoparasustentarem pé seu corpo centenário. Deu dois passos para a porta da cabana.Agoraseusolhosquasecegosviamperfeitamentevistaamataemtodoseu

esplendor.Eaviadesdeosdiasmaislongínquosdopassadoatéestanoitequemarcavaoseu im.Sabiaqueoshomensaiampenetrar,iamderrubara loresta,matarosanimais,plantarcacaunaterraondehaviasidoamatade Sequeiro Grande. Enxergou o fogo das queimadas se estorcendo noscipós, lambendoostroncos,ouviuomiadodasonçasacossadas,oguinchodosmacacos,osilvodascobrassequeimando.Viuoshomensdemachadoe facõesacabandocomorestoqueo fogodeixara,pelando tudo,pondoaterranua,arrancandoatéasraízesmaisprofundasdostroncos.NãoviaonegroDamiãoquetraíraseuchefeechoravaagoraasuatraição.Viaeraamata devastada, derrubada e queimada, via os cacaueiros nascendo, eestavapossuídodeumódioimenso.Suavoznãosaiunummurmúriocomosempre,nãosedirigiatampoucoaonegroDamiãoquetremiaechoravanaesperadaspalavrasquealijariamosofrimentoparalonge.AspalavrasdeJeremias eram para os seus deuses, os deuses que tinham vindo daslorestasdaÁfrica,Ogum,Oxóssi, Iansã,Oxolufã,Omolu, e tambémaExu,que é o diabo. Clamava por eles para que desencadeassem a sua cólerasobreaquelesqueiamperturbarapazdasuamoradia.Edisse:

—Oolhodapiedadesecoueelestáolhandopramatacomoolhodaruindade. Agora eles vai entrar namatamas antes vaimorrer homem emulher, os menino e até os bicho de pena. Vai morrer até não ter maisburacoondeenterrar,atéosurubunãodarmaisabastodetantacarniça,atéaterratávermelhadesanguequevirerionasestradaeneleseafogueosparente,osvizinhoeasamizadedeles, sem faltarnenhum.Vãoentrarnamatamas épisando carnede gente, pisandodefunto. Cadapédepauqueelesderrubevai serumhomemderrubado,eosurubuvai ser tantoquevaiesconderosol.Carnevaiserestrumedepédecacau,cadamudavaiserregadacomsanguedeles,delestudo,tudo,semfaltarnenhum.

Gritoumais uma vez o nomedos seus deuses queridos. Gritou porExu também, entregando-lhe sua vingança, sua voz atravessando amata,despertando as aves, osmacacos, as cobras e as onças. Gritoumais umavez,eraumapragaardente:

—Cadafilhovaiplantarseucacaueiroemribadosanguedopai...Depois olhou ito para a madrugada que se abria em trinados de

pássaros sobre amata de Sequeiro Grande. Seu corpo foi cedendo, tinhasidoimensooesforço.Foicedendo,seusolhoscegaramdetodo,aspernasse dobraram e ele caiu sobre a terra, os pés tocaram no negro Damiãotransidodemedo.Nãosaiudasuabocanemumsuspiro,nemumlamento.No estertor da morte, Jeremias procurava apenas repetir sua praga,torcida de ódio sua boca agonizante.Nas árvores, os pássaros gorjeavam

um canto matinal. A luz da madrugada iluminava a mata de SequeiroGrande.

GestaçãodeCidades

1

Eraumavez três irmãs:Maria, Lúcia,Violeta, unidasnas correrias,unidas nas gargalhadas. Lúcia, a das negras tranças; Violeta, a dos olhosmortos;Maria,amaismoçadastrês.Eraumaveztrêsirmãs,unidasnoseudestino.

Cortaramas trançasdeLúcia,cresceramseusseiosredondos, suascoxascomocolunas,morenas,cordecanela.Veioopatrãoea levou.Leitodecedroepenas,travesseiro,cobertores.Eraumaveztrêsirmãs.

Violeta abriu os olhos, seus seios erampontudos, grandes nádegasem lor, ondas no caminhar. Veio o feitor e a levou. Cama de ferro e decrina,lençóiseaVirgemMaria.Eraumaveztrêsirmãs.

Maria,amaismoçadastrês,deseiosbempequeninos,deventrelisoemacio.Veioopatrão,nãoaquis.Veioofeitor,nãoalevou.PorúltimoveioPedro, trabalhador da fazenda. Cama de couro de vaca, sem lençol, semcobertor,nemdecedro,nemdepenas.Mariacomseuamor.

Era uma vez três irmãs: Maria, Lúcia, Violeta, unidas nasgargalhadas,unidasnascorrerias.Lúciacomoseupatrão,Violetacomseufeitor e Maria com seu amor. Era uma vez três irmãs, diversas no seudestino.

Cresceram as tranças de Lúcia, caíram seus seios redondos, suascoxas como colunas, marcadas de roxas marcas. Num auto pela estradacadêopatrãoquese foiLevouacamadecedro, travesseiros, cobertores.Eraumaveztrêsirmãs.

Fechou os olhos Violeta com medo de olhar em torno; seus seiosbambos de pele, um ilho pra amamentar. No seu cavalo alazão, o feitorpartiuumdia,nuncamaishádevoltar.Camadeferrosefoi.Eraumaveztrêsirmãs.

Maria, a maismoça das três, foi com seu homem pro campo, prasplantações de cacau. Voltou do campo Maria, era a mais velha das trêsPedropartiuumdia,nãoerapatrãonemfeitor,partiunumpobrecaixão,deixouacamadecouroeMariasemseuamor.Eraumaveztrêsirmãs.

CadêastrançasdeLúcia,osseiosdeVioleta,cadêoamordeMaria?Era uma vez três irmãs numa casa de putas pobres. Unidas no

sofrimento, unidas no desespero, Maria, Lúcia, Violeta, unidas no seu

destino.

2

Na porta da casa de barro, sem pintura e sem caiação, os trêshomenspararam.O jovemeo cearense levavama redecomocadáver,ovelhodescansava,apoiadonobordão.Naportadacasa icaramumminutoparados. Eramanhãzinha e na rua de rameiras não haviamovimento. Ojovemdisse:

—Eseelativerdormindocommacho?Ovelhosuspendeuosbraços:—Agentetemmesmoqueacordar.Bateram palmas mas ninguém respondeu de dentro da casa. O

silencio ia pela rua a fora. Uma rua de canto no povoado de Ferradas.Casaspequenas,debarrobatido,algumascobertasdepalha,duasoutrêsde telhas, amaioria de zinco.Ali viviamas rameiras, ali os trabalhadoresdasfazendasvinhamnosdiasdefestaembuscadoamor.Ovelhobateunaporta com o bordão. Bateu uma vez e outra. A inal alguém gritou lá dedentro:

—Quemé?Quediaboéquequer?—eraumavozdemulhermaldespertada.

Logoumhomemcompletou:— Vá adiante... Aqui tá tudo cheio. — e riu uma gargalhada

satisfeita.—Tãocommacho...—comentouojovem.Elenãoviacomoentregar

ocadáveràsfilhasseelasestivessemdormindocomhomens.Ovelhorefletiuummomento:—Nãotemjeito...Agentetemmesmoqueentregar...Ocearenseinterveionaconversa:—Nãoeramelhoresperar?—Eoqueéqueagentefazcomele?—ovelhoapontavaOcadáver.

—Játásemcovahámuitotempo.Opobreprecisadescansar...Egritouparadentro:—Lúcia!Violeta!Lúcia!—Queéquequer?—eraumavozdehomemqueperguntava.Ovelhochamoupelaterceirafilha:—Maria!Oh!Maria!Na porta da casa vizinha apareceu umamulher velha e sonolenta.

Vinha reclamar contra o ruído mas ao ver o cadáver parou e apenasperguntou:

—Quemé?—Eopaidelas...—respondeuocearenseapontandoparaacasa.—Foimortematada?—quissaberamulher.—Foidefebre...Amulhersaiudaporta,seaproximoudogrupo.Examinouocadáver

comardenojo:—Quecoisa.Ovelhoperguntou:—Elastãoemcasa?Ninguématende...— Tavam de farra na noite passada. Era aniversário de Juquinha

quetemumrabichocomVioleta.Tiveramdeferraatédemadrugada.Porissonãoacordam.

Juntouasuavozádovelho:—Violeta!Violeta!—Queé?Quediaboéquequer?Amulherseesganiçounumgrito.—Éteupai!—Quem?—avozchegavadedentrodacasanumasurpresa.—TeupaiHouve um silencio logo cortado pelo movimento de gente que

andava na casa. A porta se abriu e apareceu a cabeça de Violeta. Viu ogrupo, esticou o pescoço, reconheceu o cadáver do pai. Deu um grito, Oruídodentrodacasaaumentou.

Elogosemovimentouaruatoda.Saíammulheresdetodasascasas,mais lentamente vieram vindo homens que pernoitavam com algumasdelas. A maior parte das rameiras vinha em trajes menores, algumastraziam apenas uma camisa sobre o corpo. Cercavam o cadáver,murmuravamcomentários:

—Foiafebre...—Ninguémpodecomela.—Seráquenãopegamais?—Dizquepegaatépeloar...—Émelhorenterrarlogo.—Faziaanosquenãoviaasfilhas...Tinharaivadelasserperdidas...—DizquenemvinhaaFerradasdevergonha...Mulheres de caras machucadas, mulatas, negras, uma que outra

branca.Naspernasenosbraços,porvezesnosrostos,marcasdeferidas.

Havia no ar um cheiro de álcool misturado com perfume barato. Umamulata cuja cabeleira despenteada subia enorme para o alto andou atéjuntodocadáver:

—Umavezdormicomele...FoiemTabocas...Houveumsilencioemtornodela.Violetaaindaparavanaportasem

coragemdeseaproximar.Efoiamulataqueordenou:—Levemelepradentro.Lúcia e Maria iam chegando. Lúcia chorava: "meu pai, meu pai".

Mariavinhadevagar,seusolhosmedrosos.Unshomensapareceramatrás.Umamulhercomentou,rindo:

—Juquinha,teusogromorreu...Ovelhopediu:—Respeitemomorto...Outramulherxingouaquefalara:—Tuémesmoumaputasuja...Levantaramarede, levaramparadentro.Entrou todomundoatrás

do cadáver. Alguns homens ainda terminavam de abotoar as calças, asmulheresiammesmocomoestavam,vestidaspelametade.Todaspareciamter amesma idade e amesma cor, uma cor de doença. Era um resto degenteperdidono imdomundo.E,comonãohaviasalanacasa,eramcincoquartos pequenos ocupados por cinco mulheres, deitaram o morto nacamadeVioleta, que era no quarto da frente.O velho acendeu o toco develaqueestavaquase todogasto.Pordetrásdacamahaviaumagravuradeumsanto,SenhordoBon im.Umapáginaderevistamostrava,pregadana parede, uma mulher loira e nua. Lúcia soluçava, Maria atendia aocadáver, Violeta fora em busca de outra vela. A gente se espalhou pelocorredor. Juquinhafoi ládentro, trouxeumagarrafadecachaça,começouaserviraoshomensquehaviamtrazidoocadáver.Mariatirouoviolãoqueestavaaoladodacama,juntoàcabeçadomorto.

O velho falou pro cearense, apontando Maria que passava com oviolão.

—Conhecielaquandoeramenina.Eraumalindeza.Depoisfoiumamoçabonitacomoque...QuandocasoucomPedro.Hojenemparece.

—Aindatemunstraços...—Essavidaderaparigacomeabelezademulheremdoisdias...OjovemficouolhandoMariacominteresse.Algumasmulheres se retiravampara sevestir.Antesdepartir,um

homem ofereceu seus préstimos a Lúcia. Violeta fazia com Juquinhacálculosdemoradossobreocaixãoeoenterro.Eracaro.Entraramparao

quarto onde estavam, com o cadáver, Lúcia e Maria. Ficaram no quartodiscutindo. Juquinha era como se fosse da família. Fazia contas. Não erapossívelcomprarumcaixão.Jáolugarnocemitérioeramuitocaro:

— O jeito é enterrar mesmo na rede... — disse Lúcia. — A gentecobrecomumlençol.

Violeta,queagora,apósosgritosiniciais,estavaserena,falou:—Tambémnãoseiporquenãoenterraramdeumaveznaestrada...

Elenuncaligoupragente...—Tunãotemmesmocoração...—atalhouMaria.—Nãoseiporque

tugritouquandoviuele.Sódefita.Eleeraumhomembom.Violetaiaretrucar,Mariacontinuou:— Ele tinha era vergonha da gente ser mulher da vida... Tinha

sentimento...Nãoeraquenãogostassedagente...Nocorredor,ovelhoquetrouxeraocadávercontavaparaasvisitas

comoohomemmorrera"aquelafebredetrêsdiasliquidandocomaforçadele:

— Não teve remédio que servisse... Ficou uma conta braba demedicaçãonoarmazémdasBaraúnas...Nãoadiantou.

No quarto, Lúcia, que era muito religiosa, propôs chamarem FreiBentopararezarasorações.Juquinhaduvidouqueofradeviesse:

—Elenãovememcasademulher-dama.— Quem foi que disse? — perguntou Violeta. – Quando Isaura

morreueleveio...Sóquecobracaro.E não acrescentou nenhum comentário, ela não queria que a

tomassempormainimigadopai.FoiJuquinhaquemaapoiou:—Sóvempormuitodinheiro.Pormenosdevintemilréisnãoháde

vir.Lúciaiadesistindodoseuprojeto:—Seéassimnãosechama...Olhou o defunto, sua cara magra, verdosa, parecendo sorrir na

a lição da morte. E deu em Lúcia uma agonia, uma tristeza do pai seenterrarsemorações,balbuciounumacrisedechoro:

—Vaiseenterrarsemoração,coitado!Não fezmalaninguém,eraumhomembom...Evaiseenterrarsemserencomendado.Nuncapensei...Meupai...

Violeta tomou do braço dela, o melhor gesto de carinho queconhecia.

—Agentemesmoreza...Euaindamelembrodeumaoração...Mas amulata que havia certa vez dormido com omorto, e que do

corredorouviaodiálogo,tirouvintemil-réisdameiae,entrandonoquarto,entregouaLúcia:

—Nãodeixeelesemoração...Foi isso que deu ideia a Juquinha de fazer uma subscrição. Saiu

entre os presentes recolhendodinheiro.Umhomemque não tinha o quedarseofereceuparairchamarFreiBentoepartiu.Eraasuamaneiradecolaborar.

Lúcialembrouenxugandoaslágrimas:—Éprecisodarcaféaoshomensquetrouxeramele...Maria partiu para os fundos da casa. Quando chamou o velho, o

jovem e o cearense, todos a acompanharam para a cozinha. No quartoicaram apenas Violeta e, a mulata que dera os vinte mil-réis. Ela nuncatinhavisto, repousandonapazdamorte,umhomemcomquemhouvessedormido.Estavaimpressionadaeoconsideravacomoummortoseu,comoumparentepróximo.

Nacozinha,emtornodocafé,ovelhocontouparamudaraconversa:—SabequeontemosBadarósmandouliquidarseuFirmo?Houveuminteressegeral:—Oquetámedizendo?—Mataramele?—Otironãopegou.Édeadmirar...FoionegroDamião.Umhomemassobiousuaadmiração.Outrofalou:—OnegroDamiãoerrandotiro?Éofimdomundo...Ovelhosesentiaorgulhosodo interessedespertado.Meteuaunha

nodente,comoseforaumpalito,arrancandoumafelpadeaipim.Econtou:— Seu Firmo passou pela gente, ia numa pressa dos diabos, ia

tocandopracasadocoronelHorácio.Dizqueacoisavaipegarfogo.Haviamesquecidoodefuntoecercavamovelho,algunssedebruçavamsobreapequenamesadacozinhaparanãoperderumapalavra.Assomavamcabeçassobreosqueestavamna

frente,olhosabertosdecuriosidade.Ovelhoexplicouoquetodossabiam:—ÉporcausadamatadeSequeiroGrande...—Acoisavaicomeçar.Ovelhopediusilencioerelatou:— Já tá começando... Mais adiante a gente se encontrou com seu

Firmo que vinha de volta com dois cabras do coronel Horácio. VinhatambémocoronelManecaDantasque tomoupeloatalhoprasBaraúnas...Iatudonogalope...

Juquinha,queerahomemdosBadarós,interveio:

— Coronel Horácio tá pensando que Teodoro vai fazer parte comele. Parece menino que se engana com chupeta. Não vê que coronelTeodoroéunhaecarnecomosBadarós...

Lúciainterrompeu:— É miserável, isso sim. Um bandido daqueles. Ta com quem der

maisvantagempraele...Umamulherriu:—Tuéquebemsabe,foiamásiadele,foielequetedescabaçou.Lúciaergueuobusto,osolhoscomraiva:—Aquiloéapiormisériadomundo.Nãoháhomemtãodesgraçado.—Masévalente...—falouumhomem.— Valente pro lado de mulher — era a voz de Lúcia, — quando

quercomeruma icamaismansoqueumpassarinho.Toume lembrandocomigo. Vinha pra meu lado, era um presente todo dia, um corte defazenda,umasandália,um lençobordado.Epromessade fazermedo.Meprometeu

casaemIlhéus,meprometeuvestido,atéaqueleanelãodebrilhantequeusanodedomindinho.Prometeutudoatéqueeufuinaconversaedeipra ele... Depois, promessa foi um dia... Me largou foi na rua demulher-damaesemabênçãodemeupai!...

Estavam calados, o cearense olhava alarmado, Lúcia espiou todos,viuqueaindaestavamesperandomais:

—Epensaquefoisó?Quandometinhacomidoenãoqueriamais,játinhasecansado,botouoolhoemVioleta...SenãofosseAnanias,queeraocapataz,quejátinhapassadoantesejuntadoaspernascomela.SónãofezmaisporquetinhamedodeAnanias.

Ovelhofalou:—Negrotemfilhaémesmopracamadebranco...Lúciaaindatinhaoquecontar:—EquandomorreuPedro,quetinhacasadocomMaria,namesma

noite do enterro, o coronel apareceu na casa dela com a conversa deoferecer seus préstimos... E não respeitou nem a dor da pobre, foi aimesmo,nacamaqueaindatavaquentedocorpodomarido...Aquiloépiorqueadesgraça...

Houvesilencio.Ojovemquetrouxeraocadáver,desdequechegaraolhavaMariacomolhosdedesejo.Senãofossediadenojoteriapropostodormir com ela. Fazia dois meses que ele não sabia o que era mulher.Desdequeentrara,queosrestosdebelezadeMarialhehaviamchamadoa atenção. E de toda a conversa, só aquele caso do coronel Teodoro

possuindoelanodiadoenterrodomaridointeressaraaojovem.OvelhoqueperderaimportânciacomainterrupçãodeLúcia,puxou

denovoaconversaparaosacontecimentosdanoite:—Jagunçoagoravaivalerouro...Secomeçarosbarulhosquemtiver

pontariavaienricar.Podebotarroça.—EutouapostandonosBadarós—disseJuquinha.—Elestãopor

cimanapolítica.Vãoganharcomcerteza.SinhôeJucasãodoismachos.—NinguémpodecomocoronelHorácio...—falououtro.Umhomemsaiu.Juquinhacomentou:—Chico já vai se apresentar... Não há barulho que não semeta. É

homemdocoronelHorácio...Algumasvisitassaíramtambémnaânsiadeespalharasnotíciasque

o velho trazia. E se distribuíram pelas poucas ruas de ferradas, indo deconhecidoaconhecido.Ocearenseseadmiravadaquelaterra:

—Nessaterrasósefalaemmorte...Ovelhosentenciou:—Morteaquiémercadoriabarata.Eagoravaisermesmodegraça.

Tusaiuemtempo.—Táfugindo?—perguntouumamulher,—Touindoembora.Juquinhariu:—Logoagoraqueacoisavaiseporboa?Mulheres já vestidas voltavam a entrar na casa. Uma trazia lores,

murchas lores que um amante ocasional lhe dera dois dias antes, e asdepositounospésdocadáver.Chegavamhomenstambém,queriamsaberdas notícias que o velho trouxera. Pelo povoado circulavam, aumentadas.DiziamquehaviachegadoocadáverdeumcabraqueacompanhavaFirmoemorreracomotirodestinadoaopatrão.QueFirmoescaparapormilagredo tiro do negro Damião. Outros diziam que fora o cadáver do próprioFirmoquechegara.

FreiBentoentrouemcasadasmulheres.Umaqueaindaestavaemcamisa saiu correndo para se vestir direito. Atrás de Frei Bento vinha osacristão.Ofradesaudoudaporta,comsuavozestrangeira:

—Deusestejaconvosco.Entroupelocorredor,antesde tudoquissaberdasnotícias.Depois

dovelhoterrepetidotodaahistórianumavozhumilde,o fradesedirigiupara o quarto, parou junto ao cadáver. Violeta explicou, com vozenvergonhada, as di iculdades de dinheiro. Depois fez contas com osacristãodeu anotade vintemil-réis que a outra oferecera emais umas

pratas.Ofradeiniciouasorações.Homensemulheresrepetiamemcoro:—Orapronobis.Lúcia chorava baixinho, as três irmãs estavam juntas, apertadas

umanaoutra.OjovemolhavaMaria.Seráqueelanãoaceitariadormircomelenessemesmodia,depoisdoenterro?NãojádormiraelacomocoronelTeodorodepoisdoenterrodePedro,que fora seumarido.Repetia comocoromaquinalmente:

—Oraipronobis.Ofradedesfiavaasoraçõesdaladainha.Daportaalguémgritou:—LávemJucaBadaró.Correramtodosparaaruaonde,numgalopeque levantavapoeira,

Juca passava acompanhado por António Vítor e mais dois cabras, acaminho de Tabocas. Haviam corrido todos, até o sacristão, para vê-lospassar. Frei Bento espiou pela janela, a cabeça esticada por cima docadáver, sem parar a oração. Só as três irmãs e o jovem que desejavaMaria icaramcomofradeaoladodocadáver. JucaBadaróeoscabras jáiam no im do povoado. Passavam em frente ao grande armazém deHorácio, ondeeradepositadoo seu cacau seco, ederamuns tirospro ar.Oshomensemulheresforamvoltando.Asoraçõesdedefuntosseperdiamemmeioaoscomentários.OjovemiaseaproximandodeMaria.

3

Muitos anos depois quando alguém atravessava esse povoado deFerradasemcompanhiadeumvelhoqueconheciaashistóriasdaterradocacau,eraquasecertoovelhocomentarapontandoascasaseasruascujalamadesaparecerasobocalçamentodepedras:

— Isso aqui já foi coito dos piores bandidos dessa terra. MuitosanguejácorreuemFerradas.Nocomeçodocacau...

O povoado de Ferradas era feudo de Horácio. Estava encravadoentreasfazendasdele.DurantealgumtempoFerradasmarcaraoslimitesda terra do cacau. Quando os homens iniciaram no Rio-do-Braço aplantação da nova lavoura, ninguémpensava que ela ia terminar com osengenhos de açúcar, os alambiques de cachaça e as roças de café queexistiam em redor do Rio-do-Braço, de Banco-da-Vitória, de água-Branca,os trêspovoadosdabeiradorioCachoeiraque iadarnoportode Ilhéus.Mas o cacau não só liquidou os alambiques, os pequenos engenhos e asroças de café, como andoumata adentro. E no seu caminho nasceram as

casas do povoado de Tabocas e mais longe as casas do povoado deFerradas, quando os homens de Horácio haviam conquistado a mata damargem esquerda do rio. Ferradas foi, durante algum tempo, o povoadomais distante de Ilhéus. Dali partiam os conquistadores de novas terras.Por vezes, rompendo amata, chegavam viajantes de Itapira, da Barra doRiodeContas, queeraooutro ladodas terrasdo cacau.Ferradas foiumcentro de comércio, pequeno emovimentado. Iria parar seu crescimentocomaconquistadamatadeSequeiroGrande,noslimitesdaqualnasceriaopovoadodePirangi,umacidadefeitaemdoisanos.Eanosdepois,comoandar rápido da lavoura do cacau, nasceria Baforé, já no caminho dosertão,quelogotrocariaseunomepelomaiseufônicodeGuaraci.Mas,nostempos da conquista, Ferradas era importante, talvez mesmo maisimportantequeTabocas.Falava-sequeaestradade ferrochegariaaté lá.Era um projeto muito discutido nas vendas e na farmácia. Ditavam-seprazos, falava-se no progresso que isso traria a Ferradas.Mas a estradanuncaveio.AconteciaqueFerradaspoliticamenteeradeHorácio.Mandavaele e mais ninguém. E como ele era seabrista, estava na oposição, ogoverno nunca aprovara o projeto dos ingleses de criarem um ramal daestradaatéFerradas.EquandoSeabrasubiuaogovernoeHorácioestevede cima já se encontravamuitomais interessado em levar a estrada atéSequeiro Grande junto ao qual nascia Pirangi. Ferradas foi uma etapa,naqueles anos fervia de gente, comerciava, era conhecida das grandescasas exportadoras da Bahia, estava no roteiro de todos as caixeiros-viajantes. Estes chegavam no lombo dos cavalos, as malas de amostrastrazidas por uma tropa de burros, e durante alguns dias exibiam suasroupasde linhobrancoentrea roupacaquisdosgrapiúnas.Oscaixeiros-viajantes namoravam as moças solteiras do povoado, bailavam quandohavia bailes, bebiam cerveja quente reclamando contra a falta de gelo,faziam grandes negócios. E na cidade da Bahia, na volta das viagens,contavam nos cabarés as histórias bravias daquele povoado deaventureirosejagunços,ondehaviaapenasumapensão,ondealamaeraocalçamentoda rua,masondequalquerhomemdepédescalço levavaummaçodedinheironobolso.Comentavam:

—Nuncavitantanotadequinhentasmil-réiscomoemFerradas.Era a nota mais alta que havia naquele tempo. Em Ferradas

ninguém tinha troco, níqueis quase não existiam. Contavam outrasanedotastolas,comotodasasanedotasdoscaixeiros-viajantes.

—QuandoalguémchegáemFerradas,ChicoMartins,queéodonodapensão,põeaçúcarnacamaondeohóspedevaidormir.

Oqueouviaahistóriaseadmirava:—Açúcar?Paraquê?—Paradarformigaeasformigascomeremospercevejos.A varíola e o tifo eram endêmicos no povoado e a casamelhor de

Ferradasnãoestavapropriamentenassuasruas.Estavamaisparadentrodamata,eraolazaretoondeinternavamosbexigosos.Diziamquenenhumbexigosovoltaradelá.Eracuidadoporumpretovelhoquetiveraabexiganegra e se salvara. Ninguém entrava no pedaço de mata onde estava olazareto.Infundiaterroremtodaapopulação.

FerradasnasceraemtornodoarmazémdecacauqueHorácio izeraconstruirali.Eleprecisavadeumdepósitoondejuntarocacaujásecodassuas diversas fazendas. Ao lado do armazém foram surgindo casas, empouco tempo se abriu uma rua na lama, dois ou três becos a cortaram,chegaram as primeiras prostitutas e os primeiros comerciantes. Um sírioabriu uma venda, dois barbeiros se estabeleceram vindos de Tabocas,passouahaver feiraaossábados,Horáciomandavaabaterdoisboisparavender a carne. Tropeiros, que vinham conduzindo tropa de cacau secodasfazendasmaisdistantes,pernoitavamemFerradas,osburrosvigiadosporcausadosladrõesdecacau.

Mas Ferradas começou a ser mesmo muito falada quando danomeação dos subdelegados. O prefeito de Ilhéus, a instâncias de JucaBadaró, nomeara um subdelegado de polícia para Ferradas. Era umamaneiradeferirHorácio,desemeternasterrasdele.Disseramqueaquilojá era um povoado e não importava que estivesse em terras de Horácio.Era necessário que a justiça se implantasse ali e se pusesse cobro aosassassinatoseroubosquesesucediam.Odelegadochegouporumatarde.Vinhacomtrêssoldadosdepolícia,anêmicosetristes.Chegarammontadosepelanoitevoltaramapéenus,apósteremtomadoumasurratremenda.O jornal governista de Ilhéus falou no assunto atacandoHorácio, o jornaldaoposiçãoperguntouporquenomeavamumsubdelegado eno entantonãocalçavamnemumarua,nãopunhamnemumcandeeirodeiluminaçãonas esquinas? As benfeitorias que Ferradas possuía eram feitas pelocoronel Horácio da Silveira. Se, o município queria intervir na vida dalocalidadequeentãocontribuísse tambémcomalgumprogressoparaela.Ferradas vivia em paz, não precisava de polícia, precisava era decalçamento, de luz e de água encanada. Mas não adiantaram osargumentos do jornal da oposição que respondia aos interesses deHorácio.Oprefeito,sempreatiçadoporJuca,nomeououtrodelegado.esteeraconhecidocomovalente, eraVicenteGarangau,que foramuito tempo

jagunçodosBadarós.Chegoucomdezsoldados,conversandomuito,queiafazer e acontecer. Logo no dia seguinte prendeu um trabalhador deHorácio que armara uma baderna numa casa de raparigas. Horáciomandouumrecadopraelesoltarohomem.ElemandoudizerqueHorácioviesse soltar. Horácio veiomesmo, soltou o homem, Vicente Garangau foimortonocaminhodosMacacosquandoprocuravaseescondernafazendadeManecaDantas.Arrancaram-lheapeledopeito,asorelhaseosovosemandaramtudodepresenteaoprefeitode Ilhéus.Desdeesse temponãohaviasubdelegadoemFerradaspormaisqueJucaBadaróprocurasseumhomemquequisesseocargo.

Horácio izera construir uma capela e conseguiu um frade queviesseparaali.FreiBentopareciamaisumconquistadordeterraqueumsacerdote de Cristo. Sua paixão era o colégio que as freiras estavamconstruindo em Ilhéus com todas as di iculdades, e todo o dinheiro queconseguia arrebanhar em Ferradas enviava para as freiras, para a suaobra. Por isso não era simpatizado no povoado. Esperavam que ele sepreocupasse mais com Ferradas, que pensasse em levantar uma igrejamelhor que a de Tabocas para substituir a capela. Mas Frei Bento sópensava no colégio das freiras que se iniciaramonumental nomorro daConquista, na cidade de Ilhéus. Fora um projeto dele, custara-lhe muitoconvencer ao arcebispo da Bahia, para quemandasse as freiras. E se asobras se haviam iniciado devia-se a Frei Bento que formou comissões desenhoras em Ilhéus. E ele, se aceitara aquele lugar de capelão emFerradas,foracomo itodearranjardinheiroaliparaasobrasdocolégio.Metia-lhe medo a indiferença dos coronéis pela educação das ilhas.Pensavam muito nos ilhos, em fazer deles médicos, advogados ouengenheiros,astrêspro issõesquehaviamsubstituídoanobreza,masnasilhas não pensavam, bastava que aprendessem a ler e a cozinhar. EmFerradasnãoperdoavamaFreiBentoodesinteressepelopovoado.Diziamqueeledormiacomacozinheira,umamulatinhaquevierada fazendadeHorácio. E, quando ela pariu, apesar de que todo mundo sabia que omeninoerafilhodeVirgulino,oempregadodosírio,todosachavamqueelese parecia comFrei Bento. Frei Bento sabia dos comentários, encolhia osombros,saíaàcatadedinheiroparaocolégio.Tinhaumsecretodesprezopor aquela gente toda que ele considerava irremediavelmente perdida,assassinos, ladrões, homens sem lei, sem respeito a Deus. Segundo FreiBento não havia um só morador de Ferradas que não houvesse hábastantetempoconquistadoaeternidadedoinferno.Eodizianossermõesdepoucosassistentesnasmissasdedomingo.

Essaopiniãodo fradeeramaisoumenosgeneralizadapelas terrasdo cacau onde Ferradas era sinônimo de morte violenta. Mais que ocatolicismorepresentadopelofradecomseudesinteressepelapovoação,oespiritismomedrava.NacasadeEufrosina,umamédiumquecomeçavaacriar fama, os "crentes" se reuniam para ouvir os parentes e os amigosmortos. Eufrosina tremia na cadeira, começava a falar com a línguaembolada, um dos presentes reconhecia a voz de um defunto conhecido.Contavamque,hámuitotempo,osmortos,principalmenteoespíritodeumíndioqueeraoguiadeEufrosinavinhaanunciandoosbarulhosporcausada mata de Sequeiro Grande. Aquelas profecias eram comentadas eninguém era cercado de tanto respeito em Ferradas como a mulataEufrosina que atravessava a suamagreza pelas ruas enlameadas. Com osucesso das "sessões", Eufrosina iniciou também uns tratamento demoléstias pelo espiritismo, com relativo sucesso. Foi só então que o Dr.JesséFreitas,queeramédicoemTabocasequevinhaumavezporsemanaa Ferradas para atender aos doentes do povoado, que era chamadotambém nas noites de tiroteio, uniu a sua campanha à de Frei Bento,contraEufrosina.Elalheestavatirandoaclientela,osdoentesdefebreiamcada vez mais à médium que ao médico. Frei Bento chegou a falar comHorácio. Mas Horácio não ligou. Dizem que foi por isso que Frei Bentoinventou aquela história sobreHorácio e as sessões espíritas. Frei Bentotinha — segundo Ferradas — uma língua venenosa. E desta vez foramesmo ele quem espalhara a história. Dizia esta que, em certa sessãoespírita em casa de Eufrosina, chamaram o espírito de Mundinho deAlmeida, umdosprimeiros conquistadoresde terra, omais terrível delesmorto muitos anos antes, mas cuja fama de malvadez ainda perdurava.Falava-senelecomosímbolodehomemruim.

Eufrosinaempregou-se todaemchamaroespíritodeMundinhodeAlmeida. Não havia jeito dele vir. Foi uma luta tremenda, a médium serebentando num esforço enorme de tremedeiras e transes. Por im, aocabodemaisdeumahoradetrabalho,osassistentesjácansadosdetantaconcentração, Mundinho de Almeida chegou, muito cansado e muitoapressado. Que dissessem logo o que queriam, ele tinha que voltarrapidamente.Amédiumperguntoucomdoçura:

—Mas,porquetantapressa,irmão?— Ah! no inferno a gente está muito ocupado. Todo mundo. —

responderaoespíritodemausmodos,epelosmausmodososmaisvelhosafirmaramqueeramesmoMundinhodeAlmeida.

— O que é que estão fazendo? — quis saber Eufrosina, voz da

curiosidadegeral.— Tamos juntando lenha o dia todo. Trabalha todo mundo, os

pecadoreosdiabo.—Praquetantalenha,irmão?—TamosfazendoafogueiraprodiaquevierHorácio...EramassimashistóriasdopovoadodeFerradas, feudodeHorácio

coitodebandidos.Dalipartiramparaasmatasosdesbravadoresdeterra.Eraummundoprimitivoebárbarocujaúnicaambiçãoeradinheiro.Cadadia chegava gente desconhecida em busca de fortuna. De Ferradas,partiamasnovasestradasrecém-abertasdaterradocacau.DeFerradas,os homens de Horácio iam partir para dentro das matas de SequeiroGrande.NaquelediaFerradasviviadasnotíciasqueovelhotrouxeracomocadáver.JucaBadarópassaraporalinaidaparaTabocas.Navoltajánãopoderia vir por Ferradas, teria que procurar outro caminho. De manhãpara a tarde Ferradas se pôs empé de guerra. Chegaram jagunços paraguardar o armazém de Horácio. Nas vendas, os homens bebiam maiscachaçaquenormalmente.Noprincípiodanoite,Horáciochegou.

Chegou comuma comitiva grande, uns vinte cavalos, uma tropadeburros que conduzia as bagagens. Se dirigiam a Tabocas, onde, no diaseguinte, Ester tomaria o trempara Ilhéus. Ela vinhamontada ámaneiradaquele tempo, sentada de banda no selim que tinha cabeção de pratacomodeprataerao cabodo rebenquequeela trazianamão.A seu ladomarchava Virgílio num cavalo tordilho. Mais atrás, ao lado de Horáciopesadona suamontaria, vinha, baixo e troncudo, o rosto cortadopor umlongotalhodefacão,compadreBraz,donodeumaroçajuntodasmatasdeSequeiro Grande, respeitado como ele só na zona do cacau. Trazia umarepetiçãona frentedaselaesobreeladescansavaamãoqueseguravaarédea. E vinham cabras e tropeiros, repetição no ombro, o revólver nocinto.FechandoamarchacavalgavaManecaDantasquehavia fracassadona sua missão ante o coronel Teodoro Martins, o proprietário dasBaraúnas. Este icara comosBadarós.Vinham todosnumgrupo cerrado,levantando poeira na estrada de barro vermelho. Os tropeiros gritavampelosburrosde carga, aquilopareciamaisumpequeno troçodeexércitoinvadindo um povoado. Entraram num galope. Logo no começo da rua,Horácio passou na frente de todos e riscou o solo com as patas do seucavalo ao parar defronte da casa de Farhat, o sírio, onde iam pernoitar.Assim com o cavalo levantado sobre as patas traseiras, levantado eletambém da sela, o chão com as marcas do risco das patas do animal, orebenque numa mão, a outra sustentando pela rédea o equilíbrio do

cavalo,Horácio parecia uma estátua equestre de umantigo guerreiro.Oscabras e os tropeiros se espalharam pelo povoado que fervia decomentários.NessanoitepoucagentedormiuemFerradas.Eracomoumanoitedeacampamentoantesdamanhãdabatalha.

4

Comseuslongoschicotesqueestalavamaotocarosolo,ostropeirosatravessavam as ruas enlameadas de Tabocas. Gritavam, para os burrosnãoentrarempelosbecosepelasruasnovasqueseabriam:

—Eh!Diamante!Dianho!Prafrente,burrodadesgraça.Na frente da tropa chocalhando de guizos, com um peitoral

enfeitado, ia o burro que melhor conhecia o caminho, a "madrinha datropa". Os coronéis requintavam no enfeite dos peitorais das "madrinhasdastropas",eraumaprovadasuafortunaedaseupoderio.

OgritodostropeirosatravessavadiaenoiteopovoadodeTabocas,seelevandosobretodasasvozesetodososruídos:

— Xô, Piranha! Toca pra frente, Borboleta! Mula empacadeira dosdiabos...

E os longos chicotes estalavamno ar e no solo, enquanto as tropasdeburrosrevolviamalamadasruasnoseupassoseguroetardio.Deumaporta qualquer um conhecido pilheriava com o tropeiro na pilhériamaisgastadeTabocas:

—Comovai,mulherdetropeiro?—Vouvertuamãedaquiapouquinho.Por vezes entravam boiadas que vinham do sertão e que, ou

paravamemTabocas,vendidasaosabatedores,ouseguiamnocaminhodeIlhéus.Osboismugiamnasruas,osvaqueirosvestidosdecouro,nosseuspequenos cavalos de tanta agilidade, se misturavam aos tropeiros nasvendas onde bebiam cachaça ou nas casas das rameiras onde buscavamum carinho de mulher. Cavaleiros atravessavam a rua no galope doscavalos, o revólver no cinto. As crianças que brincavam na lama seafastavamrápidas, abrindo caminho.Emil vezespordia a lamadas ruasera revolvida, cacau e mais cacau se depositava nos armazéns enormes.AssimeraTabocas.

Primeironãotevenome,quatrooucincocasasapenasàmargemdorio.Depois foi opovoadodeTabocas, as casas se construindoumasatrásdasoutras,asruasseabrindosemsimetriaaopassodastropasdeburros

quetraziamcacauseco.AestradadeferroavançoudeIlhéusatéalie,emtorno dela, nasceramnovas casas. E eis que não eram só casas de barrobatido, sem pintura, de janelas de tábuas, casas levantadas ás pressas,casas mais para pouso que mesmo para moradia como as de Ferradas,Palestina eMutuns.EmTabocas se levantaramcasasde tijolos e tambémcasasdepedraecal, comtelhados,vermelhos, com janelasdevidro,umapartedaruacentraltinhasidocalçadadepedras.Éverdadequeasoutrasruaseramumpurolamaçal,revolvidodiariamentepelaspatasdosburrosque chegavamde toda a zona do cacau, carregados com sacos de quatroarrobas. As ruas se abriam em armazéns e armazéns onde o cacau eradepositado. Algumas casas exportadoras já tinham ilial emTabocas e alicompravam o cacau aos fazendeiros. E se bem não tivesse sido aindainstalada uma ilial doBanco doBrasil, havia um representante bancárioque evitava a muitos coronéis fazerem a viagem de trem a Ilhéus paradepositar e retirar dinheiro. No meio de uma larga praça plantada decapim,haviasidoconstruídaa igrejadeSão José,padroeiroda localidade.Quase em frente, num dos poucos sobrados de Tabocas, estava a LojaMaçônicaquereunianoseioamaioriadosfazendeirosequedavabailesemantinhaumaescola.

Dooutro ladodorio jáse levantavamváriascasasecomeçava-seafalar em construir uma ponte que ligasse os dois pedaços da cidade. Oshabitantes de Tabocas tinham uma grande reivindicação: que o povoadofosse elevado à categoria de cidade e fosse sedede governo e de justiça,comseuprefeito,seujuiz,seupromotor,seudelegadodepolícia.Alguémjápropusera até o nome que devia ter o novo município e a nova cidade:Itabuna, que em língua guarani quer dizer "pedra preta". Era umahomenagemàsgrandespedrasquesurgiamnasmargensenomeiodorioesobreasquaisas lavadeiraspassavamodianoseutrabalho.MascomoTabocas respondia politicamente aHorácio, sendo ele omaior fazendeirodas proximidades, o governo do Estado não atendia ao apelo dosmoradores.OsBadarósdiziamqueeraumplanopolíticodeHorácioparadominar ainda mais aquela zona. Tabocas continuava um povoado domunicípio de São Jorge dos Ilhéus. Mas já muita gente quando escreviacartas, não as datava mais de Tabocas e, sim de Itabuna. E quandoperguntavam a ummorador dali, que estivesse de passeio em Ilhéus, deondeeleera,ohomemrespondiacheiodeorgulho:

—SoudacidadedeItabuna.Havia um subdelegado, era a maior autoridade. Isso de nome,

porque em verdade, amaior autoridade era Horácio. O subdelegado era

um ex-cabo do exército, pequeno, magro e valente, que se mantinha aliapesar de todas as ameaças dos cabras de Horácio. Fora hábil também,procurava não abusar da sua autoridade, e só se envolvia num barulhoquandooujáasferidaseramgravesoualguémhaviacaídomorto.Horáciose dava com ele, e, mais de uma vez, havia apoiado algumas atitudes docabomesmocontrajagunçosseus.QuandoHoráciochegavaemTabocas,ocaboEsmeraldo iasemprevisitá-lo, trocardoisdedosdeprosacomele.Esempre falava na possibilidade de uma reconciliação com os Badarós.Horácioria,seurisoparadentro,batianoombrodocabo:

—Tuéumhomemdireito,Esmeraldo.PorquetutaservindoaessesBadarós é que eu não entendo. No dia que tu quiser, tem um amigo àsordens.

Mas Esmeraldo sentia por SinhôBadaró uma veneração que vinhade longe,dedias remotosquandohaviamosdois varado juntos asmatasda terra do cacau. Nessas terras se dizia que os homens de Sinhô eramiéisporamizade.Quemso ligavaaelenãooabandonavanunca.QuenãoeracomoHorácio,homemdetrairosseusamigos.

EmTabocasquemeraamigoeeleitordeHoráciomantinhasempreumaatitudedehostilidadeemrelaçãoaosamigoseeleitoresdosBadarós.Nas eleições havia barulhos, tiros e mortes. Horácio ganhava sempre esempreperdiaporqueasurnaseramfraudadasemIlhéus.Votavamvivosemortos,muitosvotavamsobaameaçadoscabras.NessesdiasTabocasseenchia de jagunços que guardavamas casas dos chefes políticos locais; adoDr. Jessé, queera eternamenteo candidatodeHorácio, adeLeopoldoAzevedo, chefedos governistas, a doDr. PedroMata, agora tambémadoDr. Virgílio, o novo advogado. Havia uma farmácia para cada partido enenhumdoente que votasse nos Badarós se tratava com oDr. Jessé. EracomoDr.Pedro.Osdoismédicosmantinhamrelaçõespessoais,masdiziamhorroresumdooutro.Dr. Pedrodizia queoDr. Jessénão ligavapara osenfermos,muitomaispreocupadocomapolíticaecomasuaroçadecacau.Dr. Jessé a irmava. e a população fazia coro, que o Dr. Pedro nãorespeitava as enfermas, queumhomemcasadooupai de famílianão lhepodia entregar sua mulher ou sua ilha para um exame geral. Haviatambém um dentista para cada um dos partidos. Todo o povoado estavadivididonosdoispartidospolíticosetrocavadesaforospesadosnosjornaisde Ilhéus.Horácio já encomendara asmáquinaspara fundar emTabocasumsemanárioqueDr.Virgíliodirigiria.

Só os advogados eram muitos, seis ou sete naquele povoado,ganhando dinheiro todos com os "caxixes" escandalosos. Mais que em

Ilhéus, era em Tabocas que o "caxixe" medrava. Homens que há anospossuíam terras e plantações as perdiam de um dia para outro devido aum"caxixe"bemfeito.Nãohaviacoronelqueseanimasseafazernegóciossemantes consultarumbomadvogado, se resguardar completamentedapossibilidade do "caxixe" futuro. Um negro de Tabocas, Claudionor,fazendeiro que colhia suas mil arrobas de cacau, izera certa vez um"caxixe"que icara célebree fora citadomesmopelos jornaisdaBahia.Avitima fora o coronel Misael, cuja fortuna já era meio lendária aindanaquele tempo, fazendeiro demuitasmil arrobas, acionista das obras doporto e da estrada de ferro, dono de umbanco em Ilhéus. Era toda umaforça econômica, tinha um advogado por genro. Pois ainda assim foralogrado pelo negro Claudionor. Na quietude da sua fazenda, Claudionorestudarao"caxixe"eorealizaracomaajudadoDr.Rui.

UmdiaapareceuparaocoronelMisaelelhepediusetentacontosderéis emprestados, para comprar uma roça. Misael emprestou com jurosaltoseprazocurto:seismeses.TambémocoronelMisael tinhaseuplano,que era icar com a fazenda de Claudionor quando este não pagasse.Claudionor era analfabeto e assinou em cruz os documentos dereconhecimentodedívida.Voltoupara a sua fazendae, napassagemporItabuna,contratouumprofessordeprimeirasletras.Levou-oparaaroçaecomele aprendeu a ler e a assinar o nome. Seismeses depois, quando adívida venceu, Claudionor apenas negou que devesse. Que nunca tomaradinheiroalgumaMisael,queeratudoumatrampadocoronel.Eamelhorprova — argumentava o Dr. Rui, seu advogado — era que Claudionorsabia ler perfeitamente e assinava o nome. E o coronel Misael perdeusetentacontosderéis,ClaudionoraumentousuasterraseajudouásfestasdeSãoJosénaqueleano.

Em verdade não se podia dizer que fossem apenas seis ou seteadvogados. Estes, eram os que moravam em Tabocas. Mas os quehabitavam em Ilhéus trabalhavam também no povoado, e os de Tabocastrabalhavam na cidade. Eram apenas três horas emeia de trem, um diahavia de ser tão somente quarenta e cinco minutos pela estrada derodagemquehaviadeserconstruídacomoprogredirdazona,

Emmeio aos "caxixes", às lutas políticas às intrigas e ás festas daIgrejaoudaMaçonaria,viviaTabocas,queantesnãotiveranomeeagorapensavaemsechamar Itabuna.Muitasvezeso sanguedehomenscaídosnosbarulhos semisturava á lamadas ruas.Osburros revolviam tudonoseu passo lento. Por vezes, quando oDr. Jessé chegava com suamala deferros, custava encontrar a ferida, porque a lama cobria o corpo do

homem.Mas,aindaassim,afamadeTabocascorriamundo,sefalavadessepovoadoaténosertão,ecerto jornaldaBahia jáochamarade"centrodecivilizaçãoedeprogresso'.

5

Margot estendeu a mão, apontou o trecho de rua que se via pelajanelaaberta,queriaindicartodoopovoadodeTabocas:

—Istoéaúltimaterradomundo...Éumcemitério.Virgílio a puxou para si,Margot deixou a cadeira commá vontade,

veiosesentarnaspernasdele:—Vocêéumagatinhamalacostumada.Elaselevantounumrepente,falouzangada:—E só o que você sabedizer. Eu é que sou culpada.Quando você

veiosemeternessaterranãofaltouquemlheabrisseosolhos.Melembrode Juvenal dizendo que você devia era ir proRio, fazer carreira. Não seiporquevocêaceitouvirporótaquis.

Virgíliochegouaabrirabocaparafalar.Mas icoucomogestopelametade, encontrando que não valia a pena. Se fosse um mês antes, eleperderia,semdúvida,umtemoenormeemexplicarparaaamantequealiestava o seu futuro, que se a oposição vencesse as eleições, como tudoindicavaquevenceria,eleseriacandidatoadeputadoporaquelazonaqueeraamaisprósperadoEstado.QueocaminhodoRiodeJaneiroeramuitomais fácil através das estradas do cacau, que através do mar, numtransatlântico. Que Tabocas era terra de dinheiro e que ele, em poucosmeses, havia ganho ali o que não ganharia em anos de advocacia numacapital. Já lhe explicara issomais de uma vez, sempre queMargot sentiasaudadesdas festas,dos cabarés,dos teatrosdaBahia.De certamaneiraele compreendia o sacri ício que a amante estava fazendo. Aquele casocomeçara quando ele era ainda quartanista. Conhecera Margot numapensão de mulheres, dormira com ela algumas vezes, não tardou que amulherseenxodozasseporele.Equandoeleesteveapiquedeabandonarosestudos,devidoàmortedopaiquedeixaramalosnegóciosda família,ela viera lhe oferecer o que possuía e o que ganhava cada noite. Aquelegesto o comovera e, como um chefe político oposicionista lhe conseguiraumempregonasecretariadopartidoeumlugarnaredaçãodojornal,elepudera icar com Margot só para si. Passou a pagar o quarto dela napensão,dormia lá todasasnoites, saíamesmocomelaparaos teatros.Só

nãoviviapublicamentecomaamanteporqueissoseriaumescândaloquepoderia prejudicar sua carreira. Mas foi no quarto de Margot que, comJuvenal eoutros colegas, concebeu todaa campanhaacadêmicaque fariadeleooradordaturmaejuntoaelaescreveuodiscursodeformatura.

E quando, aconselhado pelo chefe político aceitou o lugar deadvogadodopartidoemTabocasperdeuhorasparaconvencerMargotdequedeviaircomele.Elanãoqueria,achavademenosasfestas,avidaeomovimento da Bahia. Sempre acreditara que Virgílio, logo depois deformado,rumariaparaoRiodeJaneiro.TambémVirgíliopensavaomesmonosseusdiasdeacadêmico.Masoschefespolíticossouberamconvence-lode que, se queria fazer carreira, devia perder uns anos naquelas terrasnovas do cacau. E veio, apesar deMargot ter declarado que estava tudoterminado entre eles. Fora uma noite dolorosa aquela última noite na"Pensão Americana". Ela chorava, abraçada a ele, e o acusava deabandoná-la. Ele dizia que era ela quemo abandonava, não gostavadele.Margottinhamedo:

— Você vai pra lá, vai casar com uma tabaroa rica qualquer, melarganaquelasbrenhas.Nãovounão...

—Vocênãogostaédemim.Segostasseiamesmo.Sepossuíramemmeio à agoniadaquelanoitequepensavamser a

últimaquepassavamjuntos.Eserequintaramnoamor,querendocadaumconservardooutroamelhorlembrança.

Ele veio sozinho, mas poucas semanas se passaram e ela chegouinesperadamente, escandalizando Ilhéus com seus vestidos da últimamoda, com seus chapéus largos, com o rosto pintado. E a noite doreencontroencheuasruasdeIlhéusdesuspiroseaisdeamor.VieracomeleparaTabocasenosprimeiros tempossecomportarabem,parecia teresquecido a vida brilhante e alegre da Bahia, parecia até uma senhoracasada, cuidando da roupa dele, dirigindo a comida na cozinha, todaentregue a ele, descuidando um pouco da elegância, deixando os cabeloscaíremsobreosombrossemreclamarcontraa faltadecabeleireirosquelhefizessemoscomplicadospenteadosdeentão.

Não viviam juntos, que Virgílio não podia escandalizar o povoadopreconceituoso. ele era advogado de um partido político, tinharesponsabilidades. Ela vivia numa casa bonita com a amante de umcomerciante local. Nessa casa Virgílio passava uma grande parte do dia,porvezesrecebialámesmoalgumconstituintemaisapressado,lácomiaedormia. lá redigia os considerandos dos casos que tinha de defenderperanteajustiça,emIlhéus.

Margot parecia feliz, os vestidos de grandes babados dormiamesquecidosnosarmários,quasenãofalavanaBahia.Masaospoucosfoisecansando.Aospoucosfoisedandocontadequeeramaislargodoqueelapensava, o tempo que ele devia passar ali. Demais ele, em geral, evitavalevá-la a Ilhéus nas suas repetidas viagens, para eludir os comentáriosmaliciosos.Equandoela ia, eranoutro tremena cidadepoucoovia.E, oqueerapior, o viramaisdeumavezde conversa commoças casadoiras,ilhas de fazendeiros ricos. Nesses dias o mundo vinha abaixo, Margotabriaabocaemescândalosqueabalavama rua, e,nemVirgílio lhedizerqueaquiloeranecessárioparaa suacarreira,nem issoa comovia.Saíambrigadoseelalhelançavaemrostoosacri ícioqueestavafazendoporele,socadaalinaquelasbrenhas,quandopodiaestarnaBahia,vivendonobomenomelhor, porque não faltava comerciante rico ou políticomontado navida, que quisesse botar casa para ela. Muitos a haviam convidado, eladeixaratudoparaviratrásdele,feitoumatola.

—BemqueCléomediziaquenãoviesse...Queeraessaapagaquevocêiamedar...

As brigas terminavam sempre no abrir de uma garrafa dechampanhaenoestalardosbeijos,nanoitedeamordelirante.Masrestavadepois,cadavezmaiordentrodeMargot,asaudadedavidaboadaBahiaeacertezadequeVirgílionãosairiamaisdaquelasterras.Eotempoentreasbrigasiadiminuindo,agorasesucediamcomespaçodepoucosdias,porqualquermotivo.Elasequeixavadafaltadecostureiras,dequealiestavabotandoseucabeloaperder,dequeestavaengordando,dequenemsabiamaisdançar,detantotempoquenãodançava.

Nessa tarde a coisa fora mais séria. ele anunciara que ia a Ilhéusonde se demoraria uns quinze dias ou mais. Margot pulou de contente.Ilhéus a inal era uma cidade, se podia dançar no cabaré de Nhozinho,havia algumasmulheres com quem era possível conversar, não eram sóaquelas raparigas imundas de Tabocas, vindas na suamaioria das roças,de loradas pelos coronéis ou pelos capatazes e que caíam na vida nopovoado.Mesmoamulherqueviviacomela,aamantedocomerciante,eraumamulataquenemsabialer,decorpobonitoederisoidiota,queo ilhode um fazendeiro desfrutara e que o comerciante tirara da rua do Poçoqueeraa ruademulheres fáceis.Em Ilhéus,haviamulheresquevinhamdaBahiaedoRecife,haviamesmomulhereschegadasdoRiodeJaneiro,ecom elas era possível conversar sobre vestidos e penteados. Margot sealvoroçou toda quando Virgílio anunciou a ida a Ilhéus e a demora nacidade. Correu para ele, o enlaçou pelo pescoço, beijou-o repetidas vezes

naboca:—Quebom!Quebom!Masaalegrianãodurouporqueelelheavisouquenãopodialevá-la.

Antes mesmo de que ele explicasse por que não a levava, ela já gritavaentresoluçoselágrimas:

—Vocêtemévergonhademim...OutemalgumaoutraemIlhéus.Écapazdeestarmetidocomalgumasem-vergonha.Mas iquesabendoqueeu quebro a cara dela, que faço um escândalo que todo o mundo vaisaber...Vocênãosabequemsoueu,aindanãomeviuzangada...

Virgílio deixou que ela gritasse e só quando ela parou, apenas aslágrimascorriamdosolhoseossoluçossaíamdopeito,équeelecomeçoua explicar, com uma voz que procurava fazer a mais carinhosa possível,por que não a levava. Ia a negócios sérios, não teria tempo para cuidardela, será que ela não sabia ainda que as coisas estavam se pondo feiasentreHorácioeosBadarósporcausadamatadeSequeiroGrande?Elafezcomacabeçaquesim,quesabia.Masnãovianaquilomotivoparaelenãoa levar. E, quanto ao tempo, não tinha importância. Ele não havia detrabalhar a noite toda e era pela noite que a acompanhava ao cabaréquandoestavamemIlhéus.

Virgílio icou procurando argumentos. Sentia que ela tinha razão equeasdescon iançasquevinhamnovozdela,nasacusaçõesvagasdequeexistiaoutramulher,quevinhamnesseolharentreraivosoemedrosoqueela punha ao itá-lo, eram certas. Ele nãoqueria levá-la porque ia não sótratardosinteressesdeHorácio,comopensavaempoder,nessesdias,tertodoo tempoparaEster.Esternão lhe saíadacabeça.Aindanãodeixaradeouvir,diaenoite,aquelepedidode

socorroqueelamurmurara,quandoomaridoestavanavaranda:—"Meleveembora...Pralongedaqui...Virgílio sabia que se Margot fosse a Ilhéus não tardaria a ouvir

algum comentário maledicente. E seria um inferno, ela era capaz de umescândalo que inclusive envolvesse Ester. E Virgílio não sabia colocarjuntas,nummesmopé,EstereMargot.Esta foraaamantedos temposdeestudante,quesãotemposdeloucuras.Estereraoamordescobertoentreasmatas,aquelequechegaumdiaeémaisfortequeomundo.Nãoqueriaque ela fosse, estava decidido. Mas não a queria ferir também, ele nãosabia magoar uma mulher. Procurava como um desesperado umargumento decisivo. E acreditou encontrá-lo quando disse a Margot quenão queria deixá-la em Ilhéus sem poder cuidar dela, tinha ciúme dosoutros, a casa de Machadão, onde ela pousava sempre, era a casa de

mulheres mais frequentada pelos coronéis de maior fortuna. Era porciúmesquenãoalevava.Disse,dandoàsuavozamaiorforçadeconvicçãoque conseguiu. Margot sorriu por entre as lágrimas. Virgílio se sentiuvitorioso.Eesperavapoderdaroassuntoporterminado,quandoelaveio,sentou-senoseucoloefalou:

—Tá com ciúme da tua gatinha? Por que? Você bem sabe que eunem ligopraspropostas queme fazem. Se eume soquei aqui foi por tuacausa,porquehaviadeteenganar?

Beijou-omuito,agorapedia:—Leva tuagatinha,meunegro, eu juroquenão saio. Só comvocê

parairnocabaré.Nãosaiodoquarto,nãoconversocomhomemnenhum.Quandovocênãotivertempoeupassoodiatrancada.

Virgíliosentiuqueestavacedendo.Mudoudetáctica:— Também não sei o que é que você acha de tão horroroso em

Tabocasquenãopodepassardezdiasaquisozinha...SóquerestarmetidaemIlhéus...

Elalevantou-se,foiquandoapontouarua:—Eumcemitério...Faloudenovonoerrodeletersemetidoali,sacri icandoseufuturo

eavidadela.Virgíliopensouemexplicar.Mascompreendeuquenãovaliamaisapena,naquelahoraviuqueseucasocomMargothaviachegadoaoim. Desde que conhecera Ester que não tinha olhos para outra mulher.Mesmona cama, comMargot, não era omesmo amante de outras noites,sensual, apaixonado pelo corpo dela. Já olhava com certa indiferença osseusencantos,ascoxasroliças,osseusseiosdevirgem,as invençõesqueelasabiaparatornaraindamaissaborosaahoradoamor.Agora,seupeitoera só desejo, mas desejo de Ester dela toda seus pensamentos e seucorpo, seu coraçãoe seu sexo.Por isso icoudeboca semiabertanaquelegestodequemiacomeçaradizerqualquercoisa.Margotesperava.Ecomoele não falasse, apenas levantasse a mão como a dizer que não valia apena,elavoltouàcarga:

—Tumetratacomoumaescrava.SetocapraIlhéus,melargaaqui.Depois vem com essa história de ciúme. Conversa iada. Eu é que soumesmo besta. Mas agora não vou ser mais. Agora quando vier um comconversaprameulado,querendomelevarpraIlhéusepraBahia,euvoudartrela.

Virgílioseirritou:—Pormim,minhafilha,podedar.Pensaqueeuvoumorrer?Elaseenfureceu:

—Eu aqui bancando a tola. Não falta homem atrás de mim... JucaBadaró vive pelo beiço me mandando recado... E eu feito besta por tuacausae tuoquequeré se tocarpra Ilhéus,atráscomcertezadealgumatabaroaricapracasarpelodinheirodela...

Virgílioselevantou,osolhoscheiosderaiva:—Calaaboca...— Pois não calo. Deve ser isso mesmo. Tu quer é enganar uma

tabaroinhaqualquer,agarrarodinheirodela.Virgíliovirouascostasdamão,bateucomelanabocadamulher.O

sangue correu do beiço partido, Margot olhou assustada. Quis dizer umdesaforomasapenasrompeuemsoluços:

—Tunãogostamaisdemim...Tununcatinhametocado...Elesecomoveutambém.Eseadmiradoseugestobruto.Sentiaque

oclimadaquela terraestavapenetrandonele também,estavaamodi icá-lo. Já não era omesmo homem que chegarameses antes da Bahia, todogentil, incapaz de pensar embater numamulher. Também sobre ele, sercivilizadodeoutraterra,pesavaoclimadaterradocacau.Baixouacabeçaenvergonhado. Olhava a mão com tristeza. Andou para Margot, tirou olenço,limpouagotadesangue:

—Meperdoe,minha ilha. Perdi a cabeça, é tanto negócio emquepensar queme põe nervoso... E também você falando emme deixar, emJucaBadaró,emircomoutro...Foisemquerer...

Elasoluçava,eleprometeu:—Nãochoremais,eulhelevoaIlhéus...Margot suspendeu a cabeça, já sorria. Pensava que ele lhe batera

por ciúmes. Se sentia aindamais dele. Virgílio era seu homem. Se apoiounele, estava pequena e terna, todametida no peito dele. E se encheu dedesejoeoarrastouconsigoparaoquarto.

6

Osgritosdosalfaiates alcançaramoDr. Jesséque já ianaesquina:—Doutor!DoutorJessé!Chegueaqui!

Estavamosquatroalfaiatesnaportada"TesouradeParis",amelhoralfaiatariadeTabocas,propriedadedeTonicoBorgesque,nestemomento,seguravaasmetadesdeumacalçanumamãoenaoutraaagulhaealinha.A "Tesoura de Paris" era não somente a melhor alfaiataria de Tabocascomotambém,nodizerdetodos,oquartel-generaldasmáslínguaslocais.

Alisecomentavamtodosos fatos,alisesabiade todososacontecimentos,sesabiaatéoquesecomianascasasparticulares.Naquelediaa"Tesourade Paris" estava alvoroçada com as notícias chegadas de Ferradas narabada da comitiva de Horácio. Por isso Tonico Borges reclamava aosberrosapresençaesclarecedoradoDr.Jessé.

Equandoelechegou,gordo,baixoeapressado,ochapéunoaltodacabeça,osóculosquerendocairpelonariz,asbotasmuitossujasde lama,perguntando o que queriam, um dos alfaiates correu com uma cadeiraparaelesesentar:

—Estejaagosto,doutor.Omédicosentou-se,depositounochãodeladrilhosasuamaletade

ferros.Maleta que era célebre no povoado porque dentro dela omédicolevava as mais diversas coisas: desde o bisturi até grão de cacau seco,desde injeções até frutas maduras, desde vidros de remédios até osrecibos a cobrar das casas que possuía para aluguel. Tonico Borges, quehaviaidoaosfundosdacasa,chegoucomumgrandeabacatemaduroqueofereceuaoDr.Jessé:

—Guardeiissoprosenhor,doutor.Jessé agradeceu, meteu o abacate entre as inúmeras coisas que

abarrotavam a maleta. Os alfaiates cercaram o médico. Puxaram ascadeiras para perto da dele, dali dominavam toda a rua. Dr. Jessé seadiantou:

—Quehádenovo?—Osenhoréquempodecontar,doutor—riuTonicoBorges.—O

senhoréquembemsabe...—Deque?—Tãodizendoporaíquea coisavai se esquentarentreo coronel

HorácioeosBadarós.—adiantououtroalfaiate.—QueJucaBadaróandarecrutandogente...—completouTonico.—Issonãoénovidade,eujásabia—falouomédico.—Mastemumacoisaqueosenhornãosabe.Possogarantir.—Vamosaver...— Que Juca Badaró já tem um agrónomo contratado para fazer a

mediçãodasmatasdeSequeiroGrande...—Oqueestámedizendo?Quemlhedisse?Tonicofezumgestocheiodemistério:—Os ilhosdaCandinha, seudoutor...Oqueéquenãosesabeem

Tabocas?Aqui,quandonãosetemoquefalar,seinventa...MasJesséqueriasaber:

—Falandosério...Quemdisse?TonicoBorgesbaixouavoz:— Foi o Azevedo da loja de ferragens. Foi lá que Juca redigiu o

telegramachamandoohomem.—Issoeunãosabia...VoumandarumrecadoprocompadreHorácio

hojemesmo.Osalfaiatesseolharam:acoisaestavafeia.Tonicocontinuou:—DizqueocoronelHoráciomandoudonaEsterpra Ilhéuspraela

não correr perigo na fazenda... Que ele vai entrar pela mata ainda essasemana...QuejáfezumcontratocomBraz,comFirmo,comJosédaRibeiraecomJardepradivisãodamata...Eleficacommetadeedivide

aoutrametadecomosqueajudarele.Éverdade,doutor?Omédicoquisnegar.—Pramiménovidade...—Doutor...—TonicoBorgesentornouosolhos.–Poisseatésesabe

quefoioDr.Virgílioquemredigiuocontrato,queestáseladoetudo...AhIque Maneca Dantas também faz parte. Todo mundo já sabe, doutor, ésegredoemsacofurado...

Dr. Jesséacabouporconfessareconfessoutambémqueatéeleiriaterumpedaçodamata.TonicoBorgespilheriou:

— Então até o senhor vai pegar no pau furado, hein, doutor? JácomprouseuColttrintaeoito?OuquerumparabélumSequer lhevendoumembomestado...

Dr.Jessériutambém:—Jáestoumuitovelhoparacomeçarcarreiradevalente...Riram todos, a covardia do Dr. Jessé era proverbial. E o que

espantava era ele ser, apesar disto, um homem respeitado nas terras docacau. A única coisa que realmente desmoralizava alguém por completo,naquela zona, deFerradas a Ilhéus, era a covardia.Homemcom famadecovarde era homem sem futuro nessas estradas e nesses povoados. Sealguma virtude era exigida a um homem para tentar a vida no sul daBahia,naépocadaconquistadaterra,essavirtudeeraacoragempessoal.Comoseaventuraralguémentrejagunçoseconquistadoresdeterra,entreadvogados sem escrúpulos e assassinos sem remorsos, se não levasseconsigoadespreocupaçãodavidaedamorte?

Homem que apanhava sem reagir, que fugia de barulho, que nãotinhaumahistóriadevalentiaparacontar,nãoeralevadoasérioentreosgrapiúnas.Dr.Jesséeraaúnicaexceção.MédicoemTabocas,vereadoremIlhéus,eleitoporHorácio,sendoumdoschefespolíticosdaoposição,foraa

única pessoa que se sustentara no conceito público apesar de todos osaberem medroso. A covardia do Dr. Jessé era proverbial e quandoqueriammediradeoutro,amedidaerasempreomédico:

—EquasetãomedrosoquantoodoutorJessé...Ouentão:—EtãocovardequenemparentedodoutorJessé.Não era, como podia parecer, um boato lançado pelos inimigos

políticos domédico. Os seus próprios correligionários não contavam comeleparaashorasdebarulho.Emesmoelescomentavampelosbotequinsepelas casas de rameiras as histórias que comprovavam a covardia dodoutorJessé.

NumbarulhodeproporçõesquehouveraemTabocasentreagentedeHorácioeagentedosBadarós,porexemplo,secontavaqueoDr.Jesséhavia enveredado por uma casa demulheres da vida` e fora encontradoescondido debaixo da cama. De outra feita, ele discursava durante um"meeting"depropagandaeleitoral,doaltodeumatribunaimprovisadanoportodeIlhéus.Foraduranteaúltimacampanhaeleitoralpararenovaçãodo Senado e da Câmara de Deputados. Viera daBahia, como candidato adeputado da oposição por aquela zona, um rapaz que começava suacarreirapolítica, ilhodeumex-governadordoEstado.Orapazvierafazersua propaganda com muito medo. Lhe haviam contado brabezas dessaterra e ele temia receber um tiro ou uma punhalada. Horácio mandoucabrasparaIlhéusparagarantirocomício.Oscabrascercaramatribuna,os revólveres nos cintos, prontos para tudo. Os homens dos Badarós sehaviamdistribuídoentreamultidãocuriosadeouviromoçodaBahiaquetinha fama de bom orador. Primeiro falou o Dr. Rui, meio bêbedo comosempre,emeteuopaunogovernofederal.DepoisdiscursouoDr.Jessé,aquem cabia fazer a apresentação, do candidato, aos eleitores. E por imchegou a vez do visitante, Este andou mais para frente da tribuna, umapequenatribunaimprovisadacomtábuasdecaixõesvelhos,quebalançavasob o peso dos oradores. Tossiu para chamar a atenção, o silencio eracompleto,começou:

—Senhoras,senhoresesenhoritas...Eu...Não pode dizer mais nada. Como não havia senhoras nem

senhoritas,umgaiatogritou.—Senhoritaéamãe.Riram,outrospediramsilencio.Ooradorfalouem"máeducação".Os

cabrasdosBadarósseaproveitaramdozum-zumparacomeçarotiroteio,logo respondido pelos homens de Horácio. Dizem que então, quando o

moçocandidatoquissemeterdebaixoda tribunapara fugiràsbalasquesecruzavam, jáencontrarao lugarocupadopelodoutor Jessé,quenãosólhefezlugar,comolhedisse:

— Se o senhor não quer icar desmoralizado volte para seu lugar.Aqui só eu tenho o direito de me esconder porque sou covarde detradição...

E,comoorapaznãoconcordasseequisesse,àforça,semetersobatribuna,embolaramosdoisnadisputadoesconderijo.Segundoconstaestafoi a única vez que doutor Jessé brigou. E algumas pessoas que estavampróximas, e puderam apreciar a briga, a narravam sempre como a coisamaiscômicaaquehaviamassistido,direitinhoumabrigademulheres,umarranhandoacaradooutro.

TonicoBorgespuxouacadeira,acercou-semaisaomédico:—Sabequemchegadehojeparaamanhã?—Quemé?—OcoronelTeodoro...Dizque tá juntandohomemna fazendapra

entraraqui...Dr.Jesséseassustou:—Teodoro?Oqueéquevemfazer?Toniconãosabia:—Sóseiquevemcommuitojagunço...Oquevemfazernãosei.Mas

étercoragem,hein,doutor?Outroalfaiatecompletou:—OlhequeentraremTabocas,comtantagentedocoronelHorácio

aqui... E depois de ter dado uma resposta daquelas... Como foi mesmo,Tonico?

Tonicosabiadememória:—DizqueelerespondeuaocoronelManeca:"DigaaHorácioqueeu

nãomejuntocomgentedalaiadele,quenãotratocomtropeiro".ComentavamarespostaqueTeodoroderaaManecaDantasquando

esteoforaconvidaremnomedeHorácioparasealiaremnaconquistadamatadeSequeiroGrande.Dr.Jesséseadmirou:

—Tambémvocêssabemtudo...Aquisecortaavidadetodomundo,nãoescapaninguém...

Umdosalfaiatesriu:—Poisseéadiversãodaterra,doutor...TonicoBorgesqueria saber sehavia algumaordemdeHorácio em

relaçãoaTeodoro,seelechegasseaentraremTabocas:— Não sei... Não sei nada... — e o médico pegou a maleta e se

levantouapressado.Pareciaterselembradoderepentedealgourgenteafazer.

TonicoBorges,antesqueelesaísse,lançouoúltimoboato:— Dizque, doutor, o doutor Virgílio tá se derretendo pro lado de

donaEster.Jesséficousério,respondeujácomopénaporta:—Sevocêquerumconselhodeumhomemquevivenessazonavai

fazervinteanos,ouça:falemaldetudo,dasmulheresdetodomundo,falemaldetodaagente,falemalmesmodeHorácio,masnuncafaledamulherdele. Porque se ele chegar a saber eu não dou um real pela sua vida. Éconselhodeamigo...

E arribou, deixando Tonico Borges branco, pálido de medo.Comentouparaosoutros:

—SeráqueelecontaaocoronelHorácio?E,apesardosoutroshaveremachadoquenão,queDr.Jesséeraum

homembom,Toniconãodescansouenquantonãopodeiraoconsultóriodomédicoalherogarquenão"contassenadaaocoronel,queaquelahistórialheforacontadapelamulherqueviviacomMargotequetinhaassistidoaumadiscussãoentreVirgílioeaamanteporcausadeumaoutrazinha,queelapensavaquefossedonaEster".

— Isso é uma terra desgraçada, doutor, se fala de todomundo—concluiu. — Não escapa ninguém... Mas minha boca agora tá fechada acadeado.Nãodounemumpio.Sótinhafaladomesmoaosenhor.

Dr.Jesséosossegou:— Vá descansado, Tonico. Por mim Horácio não vai saber nada...

Agora,omelhorquevocêfazésecalar.Anãoserqueestejaquerendosesuicidar...

Abriu a porta, Tonico saiu, entrou umamulher. Dr. Jessé custou aencontrar, na confusão da maleta, o aparelho para auscultar o peito dadoente.

Nasaladeesperadoconsultóriohomensemulheresconversavam.Umamulherqueestavacomumacriançapelamão,aoverTonicoBorges,largouasuacadeira,seaproximoudoalfaiate.Vinhasorrindo:

—Comovai,seuTonico?—Vouindo,donaZefina.Easenhora?Elanemrespondeu.Queriacontar.—Osenhorjásoubedoescândalo?—Queescândalo?— Que o coronel Totonho do Riacho Doce largou a família pra ir

atrásdeumarapariga,umasirigaitadaBahia?Embarcoucomela,notrem,navistadetodomundo...

TonicoBorgesfezumgestodeenfado.—Issoévelho,donaZe ina.Agoragarantoqueasenhoranãosabe

édanovidade...Amulherseabriuemcuriosidade,esticouocorpotodo.nervosa:—Qual,seuTonico?Tonico Borges duvidou ummomento. Dona Ze ina esperava numa

ânsia:—Contelogo...Eleespioupara todosos lados,puxouamulhermaispara longeda

sala,baixouavoz.—TãodizendoporaíqueodoutorVirgílio...Sussurrouorestonoouvidodavelha.Estaexplodiuemexclamações

desurpresa:—Serápossível?Quemhaviadedizer,hein?TonicoBorgespediu:—Eunãolhedissenada,hein...Sóconteiporserasenhora...—Ora,seuTonico,osenhorsabequeaminhabocaéumcofre...Mas

quemhaviadedizer,hein?Pareciaumamulherdireita...Tonico Borges desapareceu na porta. Dona Ze ina voltou à sala,

examinoucomosolhososclientesqueesperavam.Nãohavianinguémquevalesseapena.Entãodecidiudeixarainjeçãodonetoparaodiaseguinte.Deuboastardesaosdemais,dissequeestava icandotardeeelanãopodiaesperarmais,tinhahoramarcadanodentista.Saiuarrastandoacriança.Oboatoqueimava-lhealíngua,iaalegrecomosetivesseganhoumbilhetedeloteria.Tocou-sea todapressaparaacasadasAventinas, trêssolteironasquemoravampertodaigrejadeSãoJosé.

7

Dr. Jesséexaminavaohomem,bateu-lhemaquinalmentenopeitoenas costas, encostou o ouvido,mandou que ele dissesse trinta e três. Emverdadeestavamuito longedali,opensamentoemoutrascoisas.Naquelediaoconsultóriohaviaestadocheio.Erasempreassim...Quandoele tinhapressaoconsultórioseenchiadegentequenão tinhanada,quevinhasópara tomar-lhe tempo. Mandou que o homem se vestisse, rabiscou umareceita:

—Mande preparar na Farmácia São José... Lá, vão lhe fazer maisbarato...— isso não era verdade, porém a Farmácia São José era de umcorreligionáriopolítico,enquantoquea`Primavera"eradeumeleitordosBadarós.

—Nadadegrave,doutor?— Nada. Esse catarro é mesmo das chuvas na mata. Tome esse

remédio,vaificarbom.Voltecomquinzedias.—Nãovoupodernão,seudoutor.Nãovêqueéumcustopodersair

daroçapradarumpuloaqui?Trabalhomuitolonge...Dr.Jesséqueriaencurtaraconversa:—Bem,venhaquandopuder...Vocênãotemnadadesério.Ohomempagou,omédicoempurrou-oatéaporta.Aindaatendeua

outro, um trabalhador velho, pés descalços, camisa de bulgariana, quevinhaembuscadeumremédioparaamulherque"tinhaumafebrequeiaevinha, todososmesesderrubavaapobrenacama".Enquantoohomemcontava a sua história comprida, Dr. Jessé pensava no que ouvira naalfaiataria.Duasnotíciasdesagradáveis:primeiroaqueladapróximavindade Teodoro a Tabocas. Que diabo ele viria fazer? Devia descon iar queTabocasnãoerabomlugarparaasaúdedele.MasTeodoroerahomemdecoragem, amigo de fazer estripulias. Se vinha a Tabocas, era com certezapara fazer alguma coisa malfeita. Dr. Jessé precisava mandar avisar aHorácio,queestavaemIlhéus.Opioréqueotremjáhaviasaído,sópodiamandar o recado no dia seguinte. Em todo caso falaria comoDr. Virgílionesse mesmo dia. E então se lembrou da segunda notícia: estavamcomentando no povoado que o Dr. Virgílio se derretia para o lado decomadreEster(elaeHorácioerampadrinhosdeum ilhodoDr.Jessé,quetinhanove,umaescadinhade crianças, cadaumamais velhaqueaoutraumano).Dr.Jessépensavanocaso.RelembravaEsterpassaraquatrodiasemTabocas, enquanto esperavaqueHorácio resolvesseunsnegócios e apudesse acompanhar a Ilhéus. E durante esses quatro dias Virgílio haviaaparecido muito em casa do médico onde o coronel estava hospedado.Ficava um tempo enorme na sala conversando comEster e riam os dois.Elemesmo,Jessé,pegaraascriadascomentando.OdiaboforaaquelafestanacasadeResende,umcomerciantecujamulheraniversariava.Oferecerauma mesa de doces, e como havia piano na casa e moças que tocavam,tinham improvisado um arrasta-pé. Em Tabocas mulher casada nãodançava. Mesmo em Ilhéus, quando alguma mais moderna dançava eracom omarido. Daí o escândalo quando Ester saiu dançando comVirgílio.Dr. Jessé se lembrava queVirgílio pedira. Licença aHorácio para dançar

com ela e o coronel dera, orgulhoso de ver a esposa brilhar.Mas o povonão sabia disso e comentava. Esse era um assunto feio. Tão feio oumaisqueodavindadeTeodoro.Dr.Jessécoçaacabeça.AhseHoráciochegassea saber dessas murmurações... A coisa ia ser braba... O cliente que játerminara de contar as di iculdades de suamulher e que esperava emsilencioodiagnósticodomédico,falou:

—Vosmicênãoachaqueémaleita,seudoutor?Dr. Jessé o olhou espantado. Tinha se esquecido dele inteiramente.

Fezcomqueohomemrepetisseunsdetalhes,estevedeacordo:—Éimpaludismo,sim.Receitou quinino. Recomendou a farmácia São José mas seu

pensamento já estava de novo nas complicações da vida de Tabocas. Asmás línguas — e quem não era má língua em Tabocas? — estavamtomandocontadavidadeEster.Maunegócio.Paraaquelagentenãohaviamulher casadaque fossehonesta.EnãohavianadaqueTabocasgozassetanto como um escândalo ou um tragédia passional. E ainda por cima anotíciadequeTeodoroiaentrarnopovoado.Quediabovinhafazer?

Dr. Jessé vestiu o paletó. Visitou dois ou três doentes, em todas ascasaso comentárioobrigatórioeramosbarulhosqueseavizinhavamporcausadamatadeSequeiroGrande.Todosqueriamnotícias,omédicoeraíntimodeHorácio, era quembempodia saber.Depois Jessé foi aoGrupoEscolar. Ele o dirigia desde um governo anterior, quando o seu partidoestava por cima. Nunca fora demitido seria um escândalo demasiadogrande, já que ele izera construir o prédio novo do Grupo e era muitoapoiado pelas professoras. Entrou pelo pátio, atravessou uma sala.Esqueceu tanto a Ester como a Teodoro. Esqueceu também a mata deSequeiroGrande.AgoraestavapensandoeranafestaqueoGrupoEscolarpreparavaparacomemoraro"DiadaÁrvore",daíadoisdias.Osmeninosquecorriampelopátioseatrapalhavamnaspernascurtasdomédico.elesegurou dois ou três, mandou que procurassem a subdiretora e aprofessoradeportuguês.Atravessoumaisumasaladeaula,osmeninosselevantaramásuapassagem.Fezsinalparaquesesentassem,saiunoutrasala.Asubdiretoraeumasquantasprofessorasjáoesperavam.

Sentou-se,pôsochapéueamaletaemcimadeumamesa.Puxouolençoelimpouosuorqueescorrianorostogordo.

—Oprogramajáestáfeito...—informouasubdiretora.—Vamosver...—Primeirotemosasessãoaqui.Discurso...— O Dr. Virgílio não pode falar porque vai amanhã pra Ilhéus a

negóciodocoronelHorácio...FalamesmoEstanislau...—Estanislaueraumprofessor particular, orador obrigatório de quanta festa havia emFerradas. Em cada discurso repetia, sobre qualquer acontecimento, osmesmos tropos de retórica e as mesmas imagens. Havia em Ferradasquemsoubessedecoro"discursodeEstanislau".

— Que pena... — lastimou uma professora magrinha que eraadmiradoradoDr.Virgílio.—Odoutorfalatãobemeétãobonito...

Asoutrasriram.Dr.Jessélimpavaosuor:—Queéqueeupossofazer?Asubdiretoracontinuouseuinforme:— Pois bem: primeiro, sessão solene no Grupo. Discurso do

professorEstanislau(corrigiuonomenopapelquelia).Depoisdeclamaçãopelos alunos. Por último cantarão todos em coro o "Hino da Arvore". Emseguida formatura e marcha até a praça da Matriz. Aí, plantio de umcacaueiro,discursododoutorJesséFreitasepoesiadaprofessoraIrene.

Omédicoesfregouasmãos:—Muitobem,muitobem.Abriu amaleta, extraiu dela umas folhas de papel almaço cortadas

pela metade, ao comprido. Era o seu discurso. Começou a ler para asprofessoras. Aos poucos foi se entusiasmando, se levantou, lia agora comtodososgestos,avozforteeeloquente.Ameninadasejuntounaportadasalae, apesardos repetidos "psius"da subdiretora,nãomanteve silencio.AoDr. Jessé pouco importava. Estava embriagado pelo seu discurso e liacomênfase:

"Aárvore é umpresente deDeusaos homens. É nosso irmão vegetal,quenosdásuasombrafresca,suafrutagostosa,suamadeiratãoútilparaaconstruçãodemóveis eoutrosobjetosde conforto.Com troncosdeárvoresforamconstruídasascaravelasquedescobriramonossoidolatradoBrasil.Ascriançasdevemamarerespeitarasárvores."

—Muitolindo...Muitolindo...—aplaudiuasubdiretora.Asprofessorascomentavam:—Umabeleza...—Vaifazersucesso.Dr. Jessésuavapor todososporos.Passouo lençonacara,deuum

berrocomosmeninosqueaindasedemoravamnaportaequesaíramemdisparada.Sentou-sedenovo:

— Tá bom, hein? E escrevi de repente, ontem de noite. Esses diaspassadosnãopudeporqueocompadreeacomadreestavamemcasa,eutinhaquefazersala...

— Dizem que para dona Ester não era preciso – falou umaprofessora.—QueodoutorVirgíliofaziaodiatodo...

— Também se fala de tudo...— protestou a professora magra.—Terraatrasadaéassimmesmo...—elavieradaBahiaenãoseacostumavacomTabocas.

Outraprofessoraqueeragrapiúna,sesentiuofendida:— Pode ser atrasada para quem quer chamar descaração de

progresso.Seéprogresso icarnoportãoatédezhorasdanoiteagarradacomrapazes,entãograçasaDeus,Tabocasémuitoatrasadamesmo.

EraumaalusãoaumnamorodaprofessoracomumrapaztambémdaBahia, empregadodeuma casa exportadora, namoro escandalosoquetodaTabocascomentava.Aprofessorinhareagiu:

— Isso é comigo? Pois bem, namoro como quero, ique sabendo. Enão dou ousadia pra ninguém. A vida é minha, pra que se metem?Conversoatéahoraquebemquiser...Pre iro issoa icar solteironacomovocê...Nãonascipravitalina.

Dr.Jessésemeteu:— Calma, calma... Tem coisas de que se fala com razão, mas tem

coisas que exageram sem motivo. Então só porque um moço visita umasenhora casada e lhe empresta uns livros pra ler, já é pra se fazerescândalo?Issoéatraso,sim...

Todas concordaram que era atraso. Aliás, segundo a subdiretora,nãosedizianadademais.Sósenotaraa insistênciadoadvogadoem icarquase o dia inteiro na casa do médico, conversando na sala com donaEster. A professora que protestara quando a outra falou do atraso deTabocas acrescentou que "esse doutor Virgílio não respeitava mesmo asfamílias de Tabocas. Tinha uma mulher da vida habitando numa rua defamílias e era um escândalo toda a vez que se despediam. Ficavam aosbeijinhosnaportadarua,todaagentevendo".Asprofessorasrirammuitoexcitadas.OpróprioDr. Jessépediudetalhes.Aprofessoramoralista quemoravapertodeMargot,seestendeu:

—Euma imoralidade.Agenteatépeca, comoeu jádisseaopadreTomé. Peca sem querer. Peca com os olhos e os ouvidos. Pois a tal demulhercheganaportavestidacomumabatameioabertanafrente,quasenua,eseagarranopescoçododoutorVirgílioe icamquenemcachorroasebeijaremeadizeremcoisas.

—Que é que dizem?— quis. saber a baiana, seu corpomagro semovendo em gestos nervosos, os olhos num espasmo ao ouvir aqueladescrição.—Queéquedizem?

Aprofessorasevingou:—Enãoéatrasocontar?—Deixedesertola...Oquedizem?— É "meu cachorrinho" pra cá, "minha gatinha" pra lá... "Meu

cãozinho de luxo", — abaixou a voz, cobriu o rosto com vergonha domédico—"minhaeguinhapuladora".

—Oque?—fezasubdiretoraruborizada.—Assimmesmo...Umaimoralidade.—Enumaruadefamílias...—reclamououtro.—Pois é. Aomeio-dia vematé gente de outras ruas pra assistir. É

umteatro.—disse,resumindotudo.Dr.Jessébateucomamãonatesta,serecordando:— O teatro... Hoje é dia de ensaio e eu nemme lembrava... Tenho

quecomermaiscedo,senãovaiatrasartudo.Saiu quase correndo pelo Grupo Escolar, agora já deserto de

crianças, o silencio pelos pátios e pelas salas de aulas. Só a voz dasprofessoras comentando a vida do Dr. Virgílio ainda se prolongava até aportadarua:

—...umaindecência...Dr. Jessécomeuàspressas,respondeuàperguntadaesposasobre

a saúde de Ribeirinho, um cliente amigo, puxou as orelhas de um dosilhos, se tocou para a casa de Lauro onde ia ensinar o "Grupo deAmadores Taboquenses que tinha uma representação marcada parabreve. Já circulava pelo povoado e até por Ferradas um volanteanunciando:

SÁBADO,10DEJUNHOTEATROSÃOJOSÉ

SERALEVADAACENAAIMPORTANTEPEÇAEM4ATOS,INTITULADAVAMPIROSSOCIAIS

AGUARDEMPROGRAMASPELOGRUPODEAMADORESTABOQUENSES.

SUCESSO!SUCESSO!SUCESSO!Haviaapolítica,haviaafamília,haviaamedicina,haviaasroçaseas

casas para alugar, havia o Grupo Escolar, havia tudo isso com que sepreocupar, mas a grande paixão real do Dr. Jessé era o "Grupo deAmadores Taboquenses". Levara anos ideando a sua fundação. Sempresurgiramdi iculdades. Primeiro teve que vencer, com encarniçada luta, arecusadasmoçaslocaisatomarempartenumarepresentaçãoteatral.Esó

avenceraporquechegaraaTabocas,vindadoRio,ondeestudava,a ilhadeumcomerciante rico. Esta éque animara amais algumas a "deixaremde besteiras" e a entrarempara o Grupo deAmadores.Mas ainda assimDr.Jessétiveraqueconseguirautorizaçãodospaisenãoforafácil.Quandoconseguiaerasempreacompanhadadofinalcomentáriomaterno:

—Sódeixoporqueéosenhorquempede,doutor...Outrasrecusavamperemptoriamente:—Essenegóciodeteatronãoéparamoçadireita.Mas,a inalogruposeformara,erepresentaraaprimeirapeça,um

drama escrito pelo professor Estanislau: "A queda da Bastilha". Foi umsucessoenorme.Asmãesdasartistasnãocabiamemsideorgulho.Houveatéalgumasquebrigaramnadiscussãosobrequaldas ilhasrepresentaramelhor. E Dr. Jessé começou a ensaiar outra peça, essa sua, de caráterhistórico-nacional,sobrePedroII.Foirepresentadaembene íciodasobrasda Matriz, quando esta ainda se estava construindo. Apesar de que arepresentaçãotevequelamentarumincidentesurgido`entredoisartistasemcena,foitambémumêxitoquesolidificoudefinitivamenteoprestígiodo"GrupodeAmadoresTaboquenses".OgrupopassaraaserumorgulhodeTabocas,ecadavezqueumhabitantedopovoadoiaaIlhéus,nãodeixavade falar nos Amadores para ferir os habitantes da cidade que, se bemtivesseumbomTeatro,nãotinhanenhumgrupodeartistas.Osonhoatualdo Dr. Jessé era levar o grupo a Ilhéus, para ali uma representação.Contava com o sucesso de "Vampiros Sociais", peça que ele tambémescrevera, para convencer as mães de permitirem que as suas ilhasfossemrepresentarnacidadevizinha.

Ensaiou largas horas. Fazia as moças e os rapazes repetirem osgestos longos, a voz tremula, a declaração afetada. Aplaudia a um,reclamavacomoutro,suavapelorostotodoeestavafeliz.

Só quando saiu do ensaio se lembrou novamente da mata deSequeiroGrande,deTeodoro,deEster,dodoutorVirgílio.Pegouamaletaondeosoriginaisdapeçasemisturavamcommedicamentosecorreuparaa casa do advogado. Mas este estava em casa de Margot e Dr. Jessé setocouparalá.

Osinodaigrejabateuasnovehoraseasruasestavamdesertas.Os"amadores" se recolhiam, as mães acompanhando as ilhas. Um bêbedofalava sozinho numa esquina. Num botequim, homens discutiam política.Maisqueoslampiõesdequerosene,aluacheiailuminavaarua.

DoutorVirgílio estavaempijama.AvozdeMargotvinhadoquartoquerendosaberquemera.Dr. Jessédescansouamaletanumacadeirada

sala:— Consta que o Coronel Teodoro vem aí. O senhor avise ao

compadreHorácio.Ninguémsabeoqueéqueelequeraqui...—Fazerarruaçanacerta...—Eháumacoisagrave.—Diga.— Dizem que Juca Badaró mandou chamar um agrónomo para

mediramatadeSequeiroGrandeetirarumtítulodepropriedade...DoutorVirgílioriu,satisfeitodesimesmo:— Pra que é que eu sou advogado, doutor? A mata já está

registrada, com medição e tudo, no cartório de Venâncio, comopropriedade do coronel Horácio, de Braz, de Maneca Dantas, da viúvaMerenda,deFirmo,deJardee...—lamentouavoz—doDr.JesséFreitas.Osenhortemqueirláamanhãassinar.

Explicouo"caxixe",acaradomédicoseabriunumsorriso:—Parabéns,doutor.Essaédemestre...Virgíliosorriumodesto:—Custoudois contosde réis convencero escrivão.Omais foi fácil

Vamosveragoraoqueelesfazem.Vãochegartarde...Dr. Jessé icouummomentosilencioso.Eraumgolpedemãocheia.

HorácioseadiantaraaosBadarós,agoraeralegalmentedonodamata.EleeosseusamigosentreosquaisoDr.Jessé.Esfregouasmãosgordas,umanaoutra:

—Trabalhobemfeito...Nãoháoutroadvogadoaquicomoosenhor...E,comessa,vousaindo,voudeixarosdois—apontavaparaoquartoondeMargotesperava—sozinhos...Issonãosãohorasdeconversar...Boanoite,doutor.

QuandochegaravinhapensandoemtocaraVirgílionoscomentáriosqueandaraouvindosobreeleeEster.Pensavaemlheaconselharmesmoa, em Ilhéus, nãoprocurarmuito a casadeHorácio.Na cidade as línguaseram tãomaliciosas quanto no povoado.Mas agora não dizia nada, tinhamedodeofenderoadvogado,deomagoar.Ehoje,pornadadessemundo,Jessé queria magoar o Dr. Virgílio que dera um golpe tão sério nosBadarós.

Virgíliooacompanhouatéaporta.Dr. Jessédesceuruaabaixo,nãoencontrava ninguém no seu caminho a quem dar a notícia, alguém decon iança.LegalmenteosBadarósestavamperdidos.Oqueéquepodiamfazeragora?Chegouatéobotequim.Espioudaporta.Umdoshomensquebebiaperguntou:

—Procuraalguém,doutor?Ali tampouco havia quem merecesse tomar conhecimento de

tamanhanotícia.Respondeucomumapergunta:—SabeondeandaTonicoBorges?—Já foidormir—informouum.—Encontrei fazpoucocomele, ia

prósladosdacasadarapariga...Dr. Jessé fez uma careta de contrariedade. Tinha que guardar a

grandenotíciaatéodiaseguinte.Continuouaandar,comseupassoligeiroe curto de homem gordo. Mas, antes de chegar a casa, ainda parou ummomentoparareconhecerdequemeraocacautrazidoporumatropadeunsquinzeburrosqueentravapovoadoadentro,numchocalhardeguizos,avozdotropeirodespertandoosvizinhos.

—Xô,burrodesgraçado!Tocaprafrente,Canivete.

8

Ohomemchegouafobadonalojadeferragens:—SeuAzevedo!SeuAzevedo!Oempregadoatendeu:—SeuAzevedoestáládentro,seuInácio.Ohomementroulojaadentro.SeuAzevedofaziacontasrepassando

asfolhasdeumgrandelivro.Voltou-se:—Queéquehá,Inácio?—Osenhoraindanãosabe?—Digalogo,homem...Coisaséria?Ináciotomoufolego.Vieraquasecorrendo.—Acabeidesaberagorinhamesmo.Vosmecênão imagina,vaicair

decostas.Seu Azevedo largou o lápis, o papel e o livro de vendas a crédito.

Esperoucomimpaciência.—Éomaior"caxixe"quejávifalar.DoutorVirgíliomolhouasmãos

de Venâncio e registrou no cartório dele um título de propriedade dasmatas de Sequeiro Grande em nome do coronel Horácio emais cinco ouseis:Braz,Dr.Jessé,coronelManeca,nãoseimaisquem.

SeuAzevedoselevantounacadeira:—Eamedição?Quemfez?Nãovaleesseregistro....— Tá tudo legal, seu Azevedo. Tudo legalzinho, sem faltar uma

vírgula. O moço é um advogado bamba. Arranjou tudo direitinho. A

mediçãojáhavia,umavelhaquetinhasidomandadatirarfazmuitotempopelo inadoMundinhodeAlmeidaquandoandouabrindoroçapraaqueleslados.NuncachegouaseregistrarporqueocoronelMundinhoesticouascanelas.MasVenânciotinhaodocumentodamedição...

—Nãosabiadisso...—NãosealembraqueocoronelMundinhoatémandoubuscarum

agrónomo na Bahia pra fazer a medição e veio um barbudo, cachaceirocomoelesó?

—Agorasim,melembro.—PoisdoutorVirgíliodesencavouamedição,orestofoi fácil, foisó

fazer uma rasura nos nomes e registrar tudo no cartório. Diz que por aíqueVenânciorecebeudezcontospelotrabalho.

SeuAzevedosabiadarvaloráinformação:—Inácio,muitoobrigado,esseéumfavorqueeunãovouesquecer.

Você é umamigodireito. Agoramesmovou comunicar a SinhôBadaró. Eeleéreconhecido,vocêsabe...

Ináciosorriu:—DigaaocoronelSinhôqueeutouàdisposiçãodele.Pramimnão

háoutrochefenessazona.Eusoubedoacontecido,vimdireitinhoaqui...Se despediu, seu Azevedo icou um momento matutando. Depois

tomoudapena, se debruçou sobre amesa, escreveu com sua letra di ícilumacartaaSinhôBadaró.Mandouoempregadochamarumhomem.Estechegouminutos depois. Era ummulato escuro, descalçomas de esporas,umrevólversaindoporbaixodopaletórasgado:

—Asordens,seuAzevedo...—Militão,vocêvaimontarnomeucavaloetocaràtodaprafazenda

dos Badarós, entregar essa carta a Sinhô. De minha parte. E de todaurgência.

—VouporFerradas,seuAzevedo?—PorFerradas,émuitomaisperto.—DizqueháordensdocoronelHoráciodenãodeixarhomensdos

Badaróspassarlá...—Issoéconversa.Ouéquevocêtácommedo?Vosmecêjámeviucommedo?Sóqueriasaber...— Pois então. Sinhô vai lhe recompensar bem pois é uma notícia

importante...O homem recebeu a carta. Antes de sair em busca do cavalo,

perguntou:—Temresposta?

—Não.—Entoncesatémaisver,seuAzevedo.—Boaviagem,Militão.Daportaohomemvoltouacabeça:—SeuAzevedo?-Oqueé?— Se eu icar na estrada, por Ferradas, vosmecê olhe por minha

mulheremeusfilhos.

9

Don'AnaBadarónavarandadafazendaconversacomohomemqueacabaradedesmontar:

—FoiaIlhéus,Militão.Sóvoltadaquiatrêsdias.—EseuJuca?—Tambémnãoestá...Écoisaurgente?— Penso que é, sinhá dona. Seu Azevedo mandou que eu tocasse

semparar,quecruzasseporFerradasporsermaisperto...EFerradas táempédeguerra...

—Comovocêfez?—Corteipordetrásdolazareto,ninguémmeviu...Don'Anasedecidiu,abriuacarta,decifrouasgaratujas—Serácoisaurgente?— Acho que é, sinhá Don'Ana. Seu Azevedo me disse que era de

muitaimportânciaedemuitapressa.Atémemandounocavalodele.Don'Anasedecidiu,abriuacarta,decifrouasgaratujasdeAzevedo.

Seurostosefechou:—Bandidos!Iaentrandocomacartanamão.Maslembrou-sedoportador:—Militão,senteaquinavaranda.Voulhemandarumapinga.Gritou:—Raimunda!Raimunda—Oqueé,madrinha?—SirvaumacachaçaaseuMilitãoaquinavaranda...Entrou para a sala, andou de um lado para outro, parecia um dos

irmãos Badarós quando estes pensavam ou discutiam. Terminou porsentarnacadeiraaltadeSinhô,orostofechadonapreocupaçãodanotícia.O pai e o tio estavam em Ilhéus e esse era um recado que não podiaesperar.Quedeviafazer?Mandaracartapropai?SóchegariaaIlhéusno

dia seguinte, tudo se demoraria. De repente lembrou-se, levantou, voltouparaavaranda.Militãobebiaseucálicedecachaça.

—Támuitocansado.Militão?—Não,sinhá.Foiumacorridinha.Oitoléguaspequenas.—EntãovocêvaimontardenovoedarumpulonasBaraúnas.Vai

levar um recado meu pro coronel Teodoro. Diga a ele que venha aquiconversarcomigoimediatamente.Evocêvoltecomele.

—Asordens,sinháDon'Ana.—Queelevenhalogoquepossa.Queécoisaséria...Militãomontou.Acariciouocavalo,sedespediu:—Boatarde,sinhá...Ela icoudavarandaolhandoohomemquepartia.Estava tomando

responsabilidades.QuediriaSinhôquandosoubesse?Voltoua lera cartade seu Azevedo e concluiu que tinha feito bem em mandar chamarTeodoro. Murmuroumais uma vez:— Bandidos. E esse advogadozinho...Mereceumtiro...

Ogatoveioeseenroscounassuaspernas.Don`Anabaixouamãoeo acariciou suavemente. Seu rosto não tinha nenhuma dureza, era umpoucomelancólico,osfundosolhosnegros,abocadelábiossensuais.Vistaassimnavaranda,Don'AnaBadarópareciaumatímidameninadocampo.

10

NoGrupoEscolartudoandoumuitobem.Dr.Jessétinhaconseguidoque alguns comerciantes fechassem suas lojas e armazéns paracomemorar o "Dia da Árvore". No Grupo Escolar, onde o professorEstanislau lera seu discurso e uns meninos declamaram, havia poucaassistência além das professoras e das crianças, mas a Praça da Matrizestava cheia. No Grupo, Dr. Jessé presidiu a sessão, os meninos lheofereceram um ramalhete de lores. Marcharam para a Praça onde jáesperavamosdoiscolégiosparticularesda localidade:odeEstanislaueodedonaGuilhermina,professoracélebrepelarudezacomquetratavaseusdiscípulos. Dr. Jessé marchava na frente do Grupo, empunhando seuramalhetedeflores.

APraçaestavarepletadegente.Mulherescomosvestidosdefestas,moças que espiavam os namorados, alguns comerciantes, os empregadosdas casas que haviam fechado naquele dia. Todos queriam aproveitar ainesperadadiversão surgidano ritmo triste da vidadeTabocas.OGrupoformou defronte dos colégios particulares. O professor Estanislau, que

tinhaumavelhadiferençacomdonaGuilhermina, seaproximoudos seusalunospara lhes impor silencio.Desejavaque eles se comportassempelomenostãobemcomoosdarival,queestavamsériosecaladossoboolhardebruxadamestra. Juntoaumburacorecentementeaberto,emmeiodaPraça,haviamcolocadoumcacaueironovo,depoucomaisdeumano.Eraa árvore para ser plantada na solenidade. O subdelegado viajara, osBadarós o haviam chamado a Ilhéus, e por isso a força policial — oitosoldados – não comparecera. Mas a "Euterpe 3 de Maio" — que forafardada com dinheiro de Horácio — estava presente com seusinstrumentosmusicais. E foi a ela que coube iniciar o ato, tocando o hinonacional. Os homens tiraram os chapéus, fez-se silêncio. Os meninos dostrês colégios cantaram a letra. O sol queimava de tão quente. Algunsabriamguarda-sóisparaseresguardar.

Quandoamúsica terminou,Dr. Jessé chegoubemparao centrodapraça e começou seu discurso. De todos os lados pediam silencio. Asprofessorasiamentreosalunosreclamandoordememenosbarulho.Masnão obtinham grandes resultados. Só havia mesmo silencio entre osdiscípulosdedonaGuilhermina,quesemantinharígida,asmãoscruzadasna frente,metida num vestido branco, engomado e duro. Quase ninguémconseguiaouviroqueoDr.Jessédiziaepouca

gente o conseguia ver, pois como não haviam armado tribuna, elediscursavamesmonochão.Aindaassim,quandoeleterminou,aplaudirammuito. Alguns cavalheiros vieram cumprimentá-lo. Ele apertava as mãos,que lhe eramestendidas,modesto e comovido. Foi o primeiro a reclamarsilencioparaquepudesseouvirapoesiadaprofessora Irene.Avoz fracadaprofessoraseesganiçounosversos:

"Benditaasementequefecundaaterra."Os meninos chamavam os vendedores de queimados quase aos

gritos. Riam, conversavam, discutiam, trocavam pontapés. As professorasprometiamcastigosparaodiaseguinte.AprofessoraIrenesuspendiaumbraçobaixavaesuspendiaooutro:

"Árvorebenditaquedásombraefruta...."O tropel dos cavalos aumentou e eles irromperam na Praça da

Matriz. Era o coronel Teodoro das Baraúnas, à frente de doze homensarmados.Entraramdandounstirosparaoar,oscavalospisandoocapimda Praça. Teodoro atravessou entre os colégios, os meninos corriam,corriamas

mulhereseoshomens.Paroubemem frenteaogrupo reunidoemtorno à árvore. A professora Irene engoliu o verso que ia dizer, ainda

estavacomobraçolevantado.Teodorotinhaorevólvernamão:—Quefuáéesse?TãoplantandoumaroçaaquinaPraça?Jessé explicou a comemoração em palavras tremulas. Teodoro riu,

pareceuconcordar:—Entãoplantemlogo.Querover...Apontou o revólver, os cabras chegaram mais para perto,

seguravamasrepetições.Jesséemaisdoishomensplantaramocacaueiro.ÉverdadequeacerimôniafoimuitodiversadaqueoDr.Jesséimaginara.Nãotiveramesmosolenidadenenhuma,apenasempurraram,àspressas,ocacaueirodentrodoburaco,cobriram-nocomaterraqueseacumulavaaolado.RestavapoucagentenaPraça,amaioriacorrera.

—Jáestá?—perguntouTeodoro.—Já.—Agoravouorvalharele...—riuTeodoro.E,decimamesmodocavalo,abriuabraguilha,puxouosexo,urinou

em cima do cacaueiro. Mas não acertava direito, a urina respingava emtodo mundo. A professora Irene tapou os olhos com a mão. Antes deacabar,Teodorodeuumjeitocom:mão,orestodaurinacaiuemcimadoDr. Jessé.Depoischamoupelosseushomens,saíramnumgalopepelaruacentral. Os assistentes que não tinham podido fugir icaram sem gestos,olhandounsparaosoutros.Umaprofessora limpavaorostoondecaíramunspingosdeurina.Outraseassombrava:

-—Ora,jáseviu?Teodoroatravessouaruadandotiros.Ao inal,fazendoesquinacom

umbeco, icavaocartóriodeVenâncio.Alipararam,saltaramdoscavalos,Venâncio e os empregados só tiveram tempo de escapulir pelos fundos.Teodoro chamou um dos seus homens, que chegou com uma garrafa,começouaderramarquerosenenochãoenasestantespejadasdepapéis.Quandoterminou,jogouagarrafaaoacaso.

—Metefogo....ordenouTeodoro.Ocabrariscouumfósforo,achamaandoupelochão, seelevoupor

uma estante, encontrou uma folha de papel, engordou nos documentosarquivadosno cartório. Teodoro saiu como cabra, agora os seushomensguardavamaesquina,esperandoqueofogotomassecorpo.Teodorovestiaumpaletóbranco sobre a calçadebrim cáqui, tinhaum solitário enormeno dedomínimo. Na rua ia juntando gente. Teodoro ordenou aos cabrasque montassem. Com as patas dos cavalos espalhavam os curiosos maispróximos.Na rua iam aparecendo homens deHorácio, armados. Teodorodobrou a esquina com seus capangas, procurando a estrada de Mutuns.

Quando eles partiram, a gente encheu a rua, Venâncio apareceuarrancandooscabelos,oshomensdeHoráciocorreramcomasarmas.Daesquina atiraram, os cabras de Teodoro respondiam. Estes iam abrindocaminho entre o povo que chegava, correndo pelo beco para ver oincêndio. Antes que Teodoro se perdesse no começo da estrada, um dosseushomenscaiubaleado.Ocavalocontinuouacorrersemcavaleiro,juntocomo resto da comitiva. Os homens deHorácio andarampara o ferido eterminaramcomeleafacão.

Omar

1

O homem de colete azul não respondeu. Ficava miudinho com oenormecoleteazuldesabandosobreascalçasdebrimpardo,maispardasaindadasujeira.

Ia uma noite lírica lá fora. A poesia da noite chegava até o balcãosebosodavendaatravésdumpedaçodeluarquecaiasobreaspedrasdarua, as estrelas entrevistas pelas portas abertas, o longínquo som de umviolãoquealguémtocavaaomesmotempoqueumavozdemulher,mornavoz soturna, cantava certamúsica sobre amores perdidos numa distantemocidade. Talvez mais que o luar e que as estrelas, que o cheiropecaminoso dos jasmineiros no sobrado próximo, que as luzes do navioiluminado, talvezmaisquetudo isso,avozmornadamulher,quecantavana noite, perturbou os corações cansados dos homens que dormiam,sentadosemcaixotesouencostadosnobalcão.

Odeanelãofalsorepetiuapergunta,jáqueohomemdecoleteazulnãorespondia:

—Evocê,seulesma,nuncateveumamulher...?Masfoioloiroquemfalou:— Ora, uma mulher. Dezenas de mulheres em todos os portos.

Mulherébichoquenãofaltaparamarinheiro.Eu,pormim,tiveásdúzias...—faziaumgestocomasmãos,abrindoefechandoosdedos.

Aprostitutacuspiuporentreosdentespodres,olhoucominteresseoloiromarinheiro:

—Coraçãodemarinheiroé comoasondasdomarquevãoevem.Bemqueconheci JosédeSanta.Umdia foi emboraseucaladonumnavioquenemeradele...

—Ora—continuouomarinheiro—ummarítimonãopodeancorarmesmo em carne de mulher nenhuma. Um dia vai embora, a doca icavazia, vem outro e atraca.Mulher,meu bem, é bichomais traiçoeiro quetemporaldevento.

Agoraumpedaçode luar forcejavaentrarpelaporta, iluminandoochãodetábuasgrossas.Odeanelãofalsocutucouocoletedooutrocomafacadepartircarneseca:

—Fala, lesma.Nãoéverdadequeédireitinhoumalesma?Vocêsjá

viramalguémtãoparecidocomumalesma?Tujátevemulher?A prostituta riu ás gargalhadas, passou o braço pelo pescoço do

marinheiro loiro e riram juntos então. O de colete azul bebeu o resto dacachaça que estava no copo, limpou a boca com a manga do paletó econtou:

—Daívocêsnãosabemondefoi,foimuitolongedaqui,noutroporto,noutra terra bem maior. Foi num botequim, me lembro o nome: "NovoMundo".

Odeanelãopediumaiscachaçadandoummurronamesa.— Eu conhecia a amiga dela, estavam as duas mais um rapaz, eu

tomava um trago com um companheiro e tava se conversando dasruindades da vida. Diz que não há paixão de primeiro olhar, bem que émentira...

Aprostitutaapoioucomacabeçaeapertouumpoucomaisobraçofortedomarinheiroloiro.Avozdamulherquecantavaencheudesúbitoacenasujadavenda:

"Partiuparanuncamaisvoltar..."Ficaramouvindo.Odeanelãosorviaacachaçaempequenostragos

como se fosse um licor caro, enquanto esperava, o rosto ansioso, que ohomemdocoleteazulcontinuasse.

— Que importa? — disse este e limpou a boca com a manga dopaletó.

—Aluaestágrandeebonita.Hámuitotemponãovejoelaassim—sussurrouaprostitutasechegandomaisparaoloiro.

—Conta!Contaoresto...—pediuodeanelãofalso.— Pois foi. Como eu tinha falado, tava sentado com um amigo

virando um trago. E ele tava se queixando da vida, a patroa dele andavacomumasmazelas,oarameapertado,muitocurto.Tavatriste,eutambémjátavaficandotriste,foiquandoelaentrou.Vinhacomoutra,eujádisse?

— Disse, sim — exclamou o marinheiro loiro que começava a seinteressarpelahistória. Tambémo espanhol, donoda venda, se encostouno balcão para ouvir. A voz damulher que cantava vinha em surdina dofundomisterioso da noite. O de colete azul agradeceu, com um gesto, aomarinheiroloiroecontinuou:

—Poisfoi.Vinhacomaoutraeumfulano.Aoutraeuconhecia,medava com ela desde outros tempos. Mas, gentes!, quase não via aconhecida,sóviamesmoela.

— Era morena? — perguntou o do anelão falso que tinha uma

quedapelasmorenas.— Morena? Não. Não era morena, nem loira também, mas, é

engraçado,pareciaumaestrangeira,gentedeoutraterra.—Seicomoé...—falouoloiroqueeramarinheirodeumcargueiro

quevaravamarlargo.Odecoleteazulagradeceucomumoutrogesto.A prostituta murmurou, muito chegada aomarinheiro:— Tu sabe

tudo...—sorriu.—Vêcomoaluaestá...Grande,grandeetãoamarela.—Comoessemoçodisse...—odecoleteazulapontouomarinheiro

comobeiço.—Pareciaembarcadiçadeumnaviovindode longe.Nãoseimesmocomochegueiperto.Parecequefoioamigoqueestavacomigoquese chegou para falar com a outra. Daí, a outra disse quem nós era, icouconversandocomagente...Oquefoiqueconversoujuroquenãosei.Sóvielaeelanãofalou,sóqueria,unsdentesbrancos,brancos,quenemareiadapraia...Vaiomeuamigofalava,contavaastristezasdele.Aoutrafalavatambém, penso que consolava. Verdade, não sei. Ela e o fulano tavamcaladosmaselaria—sorriulembrandoesorrindofalou—eriadepressa,tãodepressanuncavininguémrir.Osolhosdela...—parouserecordando.—Nãoseicomoeramosolhosdela...—abanavaasmãos.–Maspareciaamulher de uma história que o negro Astério contava a bordo do naviosueco,aquelequeafundounabarradosCoqueiros...

Odeanelãofalsopassouopénaréstiadeluar,cuspiu,perguntou:— E o porreta que tava com ela era dono dessa embarcação tão

maneira?— Sei lá... Não tinha porte não... Parecia mais amigo, sei lá. Só sei

mesmoqueelaria,ria,osdentesbrancos,orostobranco,osolhos...Agorametiaosdedospelosbolsosdocoleteazul, sem jeitoparaas

mãosatéqueresolveuemborcarocopodecachaça.—Edepois?—quissaberodeanelão.— Pagaram, foram embora os três. Também fui embora, voltei ao

botequim tantas vezes... Uma vez vi ela de novo. Vinha de longe, tinhacerteza.Demuitolonge,nãoeradaquelaterra.

—Tãobonitaalua...—dissearameiraeomarinheiroreparouqueelatinhaosolhostristes.Elaqueriadizeroutracoisamasnãoencontrouaspalavras.

—Delonge,quemsabesedofundodomar?Sóseimesmoqueveioefoiembora.Esómesmooquesei.Elanemreparouemmim.Masatéhojeme lembro do jeito dela rir, dos dentes, da brancura dela. E o vestido—quasegritoudealegriaaorecordardonovodetalhe-,ovestidodemangasabertas...

Emborcouo copo, esticouobeiço,nãoestavamais alegre.Avozdamulherquecantavananoitelíricaiasubindodevagarinho:

"Partiuparanuncamaisvoltar..."—Edepois?—perguntounovamenteodeanelãofalso.Odecoleteazulnãorespondeueaprostitutanãosabiaseeleestava

olhandoparaa luaouparaalgumacoisaqueelanãovia, la,maisalémdalua, e das estrelas, mais além do céu, mais além da noite tão tranquila.Tambémnuncasoubeporquelhedeuaquelavontadedechorar.Eantes

queaslágrimasviessem,partiucomoloiromarinheiroparaafestadanoitedeluar.

O espanhol se encostou no balcão para ouvir as aventuras do deanelãofalso,masodecoleteazulagoraestavadenovoindiferente, itandoa luaamarelanocéu.Odeanelãoparouahistóriadeumacabrocha,quecontavacomgrandesgestos,virou-separaoespanhol,apontouodecoleteazul:

—Nãoparecedireitinhoumalesma?

2

Nanoite de conversas no cais, a cidade de Ilhéus dormia seu sonoinquieto, cortado de boatos que chegavam de Ferradas, de Tabocas e deSequeiro Grande. Começara a luta entre os Badarós e Horácio. Os doissemanários que se publicavam na cidade trocavam descomposturasviolentas,cadaqualfaziaoelogiodosseuschefes,arrastavanolodoavidadoschefescontrários.Omelhorjornalistaeraaquelequesabiaxingarcommaisviolência.Nãoserespeitavanada,nemafamília,nemavidaprivada.

Manuel Oliveira, o diretor do "O Comércio", o jornal dos Badarós,estavaperuandoo jogodepôquer, sentadopordetrásde Juca.Osoutrosparceiros eramo coronel Ferreirinha, TeodorodasBaraúnas, e o capitãoJoão Magalhães. Fora Ferreirinha, que o conhecia desde que haviamviajadojuntosdaBahiaparaIlhéus,queapresentaraocapitãoaJuca.

—Ummoçoeducado...—dissera.—Muitorico,viajapordesfastio...Capitãoreformado.Deengenharia...

Juca Badaró tinha vindo por um assunto da mata de SequeiroGrande. É que o Dr. Roberto, o agrónomo, não estava em Ilhéus, haviaviajadoparaaBahia,eJucatinhapressaemfazeramediçãodamataparapoder registrar a propriedade. Quando ouviu falar que havia umengenheiro na cidade pensou que o problema estava resolvido.

Ferreirinhafezasapresentações.Jucafoilogopropondo:— Capitão, muito prazer em conhece-lo. Tenho um negócio pro

senhorganhardinheiro...João Magalhães se interessou, talvez aquela fosse a oportunidade

queele tantoprocurava.Vierapara Ilhéusembuscadedinheiro,masdedinheiro grande, não apenas do que lhe deixavam as mesas de pôquerProcurousergentilcomJuca:

— O prazer é todomeu. Aliás, eu já conheço o senhor. Viemos daBahia no mesmo navio... Apenas não houve ocasião de sermosapresentados...

— Issomesmo...— recordouFerreirinha. –Você tambémvinhanonavio,Juca.Sóquetavamuitoocupadocomumadona'quevinhatambém...—bateucomamãonabarrigadeJucaeriu.

Juca lamentou que não se houvessem conhecido antes e entrou noassuntoquelheinteressava:

—Capitão,oquesepassaéoseguinte:nossafazendafazdivisacomumamata que não e de ninguém,mas émais da gente que de qualquerpessoa, porque nós é quem primeiro entrou nela. A mata de SequeiroGrande.Agoranósquerderrubarelapraplantarcacau.Vemdaí,umchefede jagunço que tem aqui, um tal de Horácio da Silveira, quis fazer umtrabalho sujo: arranjou uma medição velha e registrou a mata no nomedele e de uns amigos dele... Mas não teve nada porque a gente desfez o"caxixe"emdoistempos.

— Ouvi falar... Incêndio num cartório, não foi? Trabalho corajoso,bem feito. Fiquei admirado... — o capitão João Magalhães acompanhavasuas palavras de gestos expressivos. — Foi o senhor? Se foi, meusparabéns.Gostodehomensdecididos.

—Não.FoiocompadreTeodoro,donodasBaraúnas.Eumhomemdebrioedecoragem.

—Tásevendo...—Agoranóstamosprocurandoumengenheiroagrônomoprafazer

amediçãodamata.Mas,pordesgraça,oDr.Robertoviajoueéoúnicoqueháaquiquesirva.Osoutrosdoissãounscovardes,nãoquiseramsemeter.Então,sepassouqueeuouviqueosenhoréengenheiroevimconsultarseosenhorquerfazeramedição.Agentepagabem.EquantoàvingançadeHorácio,nãotenhamedo,agentelhegarante.

OcapitãoJoãoMagalhãesriusuperior:—Ora,peloamordeDeus...Falardemedoamim?Sabeemquantas

revoluçõesjátomeiparte,coronel?Maisdeumadúzia...Agoranãoseiése

eu posso, legalmente,— frisava o termo— fazer amedição. Eu não souengenheiroagrónomo.Souengenheiromilitar.Nãoseisetemvalor.

—Antesdevir lhefalareuconsulteimeuadvogadoeeledissequesim,queosenhorpodia.Queosengenheirosmilitarespodemexercer...

—Nãoestoutãocertoassim.Demais,meutítulonãoéregistradonaBahia.SónoRio.Ocartórionãovaiaceitarmediçãominha...

— Isso não tem importância... A gente arranja com o escrivão. Porissonão...

João Magalhães ainda duvidava. Não era nem militar nemengenheiro, sabia bem era jogar qualquer espécie de jogo, sabia eratrabalharcomumbaralhoe tambémganharacon iançadosdemais.Masdesejavaumaoportunidademaior,desejavafazerumdinheirogrande,nãoviver na dependência eterna das mesas de jogo, um dia com muito, nooutro sem um tostão. A inal, que perigo corria? Os Badarós estavam porcimanapolítica, todasaspossibilidadesdeganhara lutaeramdeles,eseeles a ganhassem, a propriedade damata de Sequeiro Grande não serianuncadiscutida.E,mesmoqueviessema saberqueamediçãoera ilegal,feita por um charlatão, ele já estava longe, gozando noutras terras odinheiro recebido. Valia a pena arriscar. Enquanto pensava, olhava JucaBadaró que diante dele, impaciente, batia com o rebenque na bota. JoãoMagalhãesfalou:

— A verdade é que eu sou de fora e não queria me meter emencrencasdaqui...Sebemaverdadeéquesimpatizomuitocomacausadosenhor e do seu irmão. Principalmente depois do incêndio do cartório.Essesatosdecoragemmeconquistam...Enfim...

—Pagamosbem,capitão.Osenhornãovaisearrepender.—Nãoestoufalandoemdinheiro...Sefizeréporsimpatia.— Mas é que a gente tem que acertar isso também. Negócio é

negócio,apesardofavoragenteficardevendosempre...—Issoéverdade...—Quantoosenhorpedepelotrabalho?Vaiterquepassarunsoito

diasnafazenda.— E os instrumentos? — perguntou João Magalhães para ganhar

tempoepodercalcularquantopodiapedir.–OsmeusficaramnoRio...—Nãotemnada.ConsigoosdoDr.Robertocomamulherdele.— Se é assim... — pensou. — Bem, eu não venho aqui para

trabalhar, venho a passeio... Deixe ver: oito dias na fazenda, vou ter queperderonaviodequarta-feira...faloudiretamenteparaJuca.—EuiaparaaBahiaquarta-feira—voltou amurmurar.—Talveznão alcancemais o

negóciodemadeirasnoRioa tempode fechá-lo...Umtranstorno...En im...—falouparaJucanovamentequeesperavanervoso,amiudandoosgolpesdorebenquenabota.—Vintecontos,creioquenãoémuito...

—Émuitodinheiro...—fezJucaBadaró.—DaquiaoitodiaschegaDr.Robertoefazoserviçoportrêscontos...

JoãoMagalhãesfezumgestocomorostoexpressandosuacompletaindiferença,comoadizerqueentãoesperassem.

—Emuitodinheiro...—repetiuJucaBadaró.— Veja: três contos lhe cobra o agrónomo. Mas ele tem o título

registradonaBahia,vivedisso,sóvoltadaquiaoitodias,sevoltar.Euvouarriscar minha carreira pro issional, posso até ser processado e perdermeu título e até minha patente... Demais estou a passeio, vou perder onavio e talvez um grande negócio de centenas de contos... Se ico émaisporsimpatiaquepelodinheiro...

—Reconheço isso, capitão.Masémuitodinheiro.Seo senhorquerdezcontos,étratofeita,vamosamanhãmesmo...

JoãoMagalhãespropôsumacordo:—Quinzecontos.— Seu capitão, eu não sou sírio nemmascate. Posso pagar os dez

contoseépelapressaqueeupago. Seo senhorquer,pode receberhojemesmoeamanhãagenteembarca...

Joãoviuquenãoadiantavadiscutir:—Bem,jáquevoufazerofavor,façocompleto.Estácerto.— Vou lhe icar devendo a vida toda, capitão. Eu e meu irmão. O

senhorpodecontarcomagenteproquequiser.Antesdesedespedirperguntou:—Querreceberagoramesmo?Sequer,vamosatéemcasa...—Ora,porquemmetoma.Quandoosenhorquiserpagar...Nãohá

pressa...—Entãopodíamosnosencontrarhojeànoite...—Osenhorjogapôquer?Ferreirinhaaplaudiuentusiasmado:—Boaideia...Faremosumamesinhanocabaré.—Tá certo— disse Juca.— Lhe levo o dinheiro lá... E depois vou

ganharelenojogoeficadegraçaamedição.JoãoMagalhãespilherioutambém:— Eu é que vou ganhar mais dez pacotes e cobrar os vinte que

queria...Venhaforrado,seuJucaBadaró...—Faltaumparceiro—avisouFerreirinha.

—EulevoTeodoro—resolveuJuca.E agora estavam ali, na sala dos fundos do cabaré de Nhozinho,

jogandoaquelepôquerJucaBadarócadavezgostavamaisdoCapitão.Eraum tipo dos dele, conversador, experiente em mulheres, contador deanedotas picantes, vivido. O jogo se dividia entre os dois. Teodoro eFerreirinhaperdiam,Teodoroperdiamuitodinheiro.GanhavaJucaalgum,JoãoMagalhãesganhavamuito.Ocacifeeraalto,ManuelOliveirafoiàsalade danças chamar Astrogildo, um outro fazendeiro, para vir apreciar otamanhodasapostas.Ficaramosdoisperuando:

—Seus160mais320.—diziaTeodoro.— Já está perdendo mais de dois contos. – murmurou Manuel de

OliveiraaAstrogildo.—Nuncavipesoigual.JucaBadarópagouparaver.Teodoromostrouumatrincadenove.A

deJucaeradedez:—Nacabeça,compadre...Recolheuas ichas.Nhozinhoentravamuitocheiodecumprimentos

e pilhérias. Trazia uma rodada de uísque. Manuel de Oliveira tomou seucopo. Peruava o jogo para pegar esses biscates: um uísque, uma ichaperdidanobacaratounaroleta.

—Bomuísque.—disse.OcapitãoJoãoMagalhãesestaloualíngua,aprovando:—MelhorqueessesómesmoumquemevendiamnoRio,quevinha

decontrabando...Umnéctar.Teodoro pedia silencio. Toda a gente dizia que Teodoro não sabia

perder, o que era umapena, já que ele jogavamuito e de toda classe dejogo.Diziamtambémqueelepodiaestarmuitoricosenãofosseessevício.Nos dias que ganhava pagava bebida para todomundo, dava dinheiro amulher, fazia ceias com champanha, no cabaré. Mas quando perdia sepunhaimpossível,reclamavacontratudo.

—Pôquersejogaécalado—protestou.Ferreirinha deu cartas. Todos foram ao jogo. Manuel de Oliveira

saboreava seu uísque sentado atrás da cadeira de Juca Badaró. Nemreparavanojogo,dedicadototalmenteàbebida.PordetrásdeTeodoro,empé,ocoronelAstrogildoseguiaopôquerNoseurosto,queseapertavadedesaprovação, João Magalhães lia o jogo de Teodoro. Este pediu duascartas,Astrogildofezumacaretadedesacordo. JoãoMagalhãesentãonãopediu nenhuma se bem só tivesse umpar vagabundo. Teodoro largou ascartasemcimadamesa:

—Quandoqueropassarumblefeencontroumdejogofeito...

Osoutroscorreramtambém,Joãorecolheuasfichas.Nhozinho apareceu querendo saber se desejavam alguma coisa

mais.Teodoroocorreudemausmodos:—Váamolaramãe.Ia a todas as mãos e perdia sempre. Certa hora quando ele

abandonou um par de ases para pedir uma carta para lush, Astrogildonãoseconteveecomentou:

—Tambémassimvocêsótemmesmoqueperder...Issonãoéjogarpôquer,éjogardinheirofora.Desmancharumjogodesse...

Teodoropuloudacadeira,queriabrigar:—Evocêoqueéquetemcomisso,seu ilhadaputa?Odinheiroe

meuouéseu?Porquenãosemetenasuavida.Astrogildoreplicava:— Filho da puta é você, seu valentão de merda... — sacava o

revólverquerendoatirar.Juca Badaró e Ferreirinha se meteram. João Magalhães procurava

aparentar calma, não demonstrar omedo que sentia.Manuel de Oliveiranem se movia da cadeira, saboreando seu uísque indiferentemente.Aproveitou a confusão para derramar no seu copometade da bebida docopodeFerreirinhaqueaindaestavacheio.

TinhamtomadoorevólverdeAstrogildo,tambémodeTeodoro.JucaBadarópediacalma:

—Doisamigos...Quebesteiraéessa...DeixeasbalaspragastarcomHorácioeoshomensdele...

Teodoro voltou a sentar, ainda reclamando contra os "perus". Lhedavam azar, dizia. Astrogildo, um pouco pálido, se sentou também, destavez ao lado de João Magalhães. Jogaram mais umas mãos, Ferreirinhapropôs que fossem dançar um bocado na sala da frente. Contaram asichas, JoãoMagalhães ganhava quase três contos, Juca Badaró tinha umlucro de conto e tanto. Antes que saíssem Juca fez um apelo a Teodoro eAstrogildo:

—Vamosacabarcomisso...Issoécoisamesmodejogo...Agente icadecabeçaquente...

—Elemeofendeu—disseAstrogildo.Teodoro ofereceu a mão, o outro apertou. Saíram para a sala da

frentemasTeodoronãodemorou,dissequeestavacomdordecabeça,foiparacasa.Ferreirinhacomentou:

— Esse vai morrer assim por uma besteira... De um tiro sem porquê.

Jucaodesculpava:—Temseusrepentesmaséumhomembom.Asaladocabaréestavaanimada.Umnegrovelhoserebentavaem

cima de um piano, ainda mais velho que ele, enquanto um sujeito decabeleiraloirafaziaoquepodiacomumviolino.

—Orquestraruinzinha...—falouFerreirinha.—Infame.—reforçouManueldeOliveira.Paresdançavamumavalsamuito agarrados.Mulheresdediversas

idadesestavamespalhadaspelasmesas.Emgeralsebebiacerveja,numaou noutramesa havia copos de uísque e gim. Nhozinho veio servir. JucaBadaró tinha antipatia aos dois garçons do cabaré porque eram ambospederastas.Erasempreservidopeloprópriodono.E,comoelecostumavafazer despesas grandes, Nhozinho servia muito humilde, gastandomesuras. Ferreirinha saiu dançando com uma mulher muito nova, nãodeviatermaisdequinzeanos.FaziapoucoqueapareceranaprostituiçãoeFerreirinha era doido por meninas assim, "verdinhas e tenras", comoexplicouaJoãoMagalhães.UmamulhervelhuscaveiosesentaraoladodeManuelOliveira:

—Pagaumpramim,Mano?—perguntouapontandoouísque.ManueldeOliveira consultou JucaBadaró comosolhos.Comoesse

aprovasse,chamouporNhozinhoemandouautoritário:—Baixedepressaumuísqueaquiparaadama.A orquestra parou, Ferreirinha começou a contar um caso que se

passaracomele,faziatempos:—Aqui a gente temque ser de tudo, seuCapitão.O senhor, que é

engenheiromilitar,vaifazerserviçodeagrónomo...Eeu,quesoulavradoreignorante,játivequeseratémédicooperador...

—Operador?—Poisassimfoi.Umtrabalhadordaminhafazendaengoliuumosso

de cotia, o bicho atravessou no estômago do desgraçado, iamatando ele.Nãopodiafazersuasnecessidades,nãodavatempotambémdetrazerpracidade.Nãotiveoutrojeito,opereieumesmo.

—Mascomo?—Arranjei umarame compridoe grosso, dobrei aponta comoum

anzol, lavei com álcool primeiro, virei o homem de bunda pra cima esapequei o arame no cu do desinfeliz. Deu trabalho, saiu um bocado desanguemasoossosaiutambémeatéhojeohomemtávivo.

—Formidável,hein!—EsseFerreirinha...

—O pior foi a fama depois, seu capitão. Vinha gente de longemeprocurarparasetratar...Seeudessedebotarconsultórioarruinavamuitomédicobom.

Riu,riramtodoscomele.JucaBadarófalou:— A gente tem mesmo que ser tudo. Tem tabaréu daqui, capitão,

quedáliçãoemadvogado...—Terradefuturo...—elogiouJoãoMagalhães.ManueldeOliveiracombinavaencontroscomaprostitutavelha.Juca

Badaró só tinha olhos para Margot que estava noutra mesa com Dr.Virgílio. Astrogildo acompanhou o seu olhar, pensou que ele estivessemirandooadvogado:

—EsseéotalDr.Virgílioquefezo"caxixe"damedição...—Jásei—respondeuJuca.—Conheçoele.João Magalhães olhou também e cumprimentou Margot com a

cabeça.JucaBadaróquissaber:—Osenhorconheceela?— Se conheço... Se davamuito com uma pequena que eu tinha na

Bahia,denomeVioleta.TácomdoutorVirgíliohádoisanos.—Ébonita...—fezJucaBadaró.JoãoMagalhãescompreendeuqueeleestavainteressadonamulher.

Via nos olhos que ele punha, na voz com que dizia que ela era bonita.Pensouemtirarpartido:

—Eumpedaço...Muitominhaamiga...Juca virou para ele. JoãoMagalhães disse num tom de indiferença,

comoquenoacaso:—Ela sehospedaemcasadeMachadão.Amanhãquandoela tiver

só,voulhefazerumavisita.Nãogostodeirquandoestáodoutor,porqueeleémuitociumento.Elaémuitodada,boamenina.

—Amanhãosenhornãovaipoder,capitão.Demanhãzinhasaiparaaroça.Notremdasoitodamanhã.

—Everdade.Entãovouquandovoltar...Astrogildocomentava:—Eummulherão.NamesapróximaMargoteVirgílioconversavamanimadamente.Ela

estavaagitada,moviaosbraçoseacabeça.—Estãodiscutindo...—disseJuca.—Vivembrigando...—informouavelhaqueestavacomManuelde

Oliveira.—Comoéquetusabe?

—Machadãomecontou...Ecadaescândalo...Mandaram vir mais uísque A orquestra tocou, Margot e Virgílio

saíram dançando, mas ainda na dança discutiam. No meio da músicaMargot largou o braço de Virgílio e sentou-se. O advogado icou ummomento sem saber o que fazer, mas logo chamou o garçom, pagou adespesa,tomouochapéuqueestavanumacadeiraesaiu.

—Estãobrigando...—disseJucaBadaró.—Destavezparececoisaséria...—falouamulher.Margotagoraolhavaa salaprocurandoaparentar indiferença. Juca

Badarócurvou-senacadeirafaloubaixinhoparaJoãoMagalhães:—Osenhorquermefazerumfavor,Capitão?Asordens...—Meapresenteaela...João Magalhães olhou o fazendeiro com profundo interesse. Fazia

planos.Destaterradocacau,sairiarico.

3

Na noite lírica de lua cheia, Virgílio seguia pelo leito da estrada deferro. Seu coração ia aospulos, jánemse lembravada cenaviolenta comMargotnocabaré.Quando,porumminuto,pensounela, foiparaencolherosombroscomindiferença.Eramelhorqueaquiloterminassedeumavez.Ele a quisera levar para casa, dissera que tinha um negócio que oprenderia fora atémuito tarde, por isso não podia icar com ela.Margot,que já andava descon iada, com a pulga atrás da orelha, não aceitoudesculpas: ou ele ia com ela para casa ou ela icaria no cabaré e estariatudo acabado entre eles. Sem saber mesmo por que, ele procuravaconvence-ladequeexistiaumnegócioimportante,dequeeladeviairparacasaedormir.Elasenegara,terminarabrigandoeelesaírasemsequersedespedir.TalvezagoraelaestivessesentadaàmesadeJucaBadaró.ComapresençadeleMargotohaviaameaçado:

—Quemeimporta?Homemnãomefalta.ÉsóverosolhosqueJucaBadarótámebotando...

Aquilo não o molestava. Era melhor assim, que ela se fosse comoutro, seriaamelhordas soluções.Quandopensounisso, sorriu.Comoascoisasmudavam como tempo! Se um ano antes ele pensasse emMargotcomoutrohomem,eracapazatédeperderacabeçaefazerumabesteira.Certavez,na"PensãoAmericana",naBahia,elefezumescândalo,brigoue

acabou na polícia, só porque um rapaz qualquer dissera uma piada aMargot. Agora se sente até aliviado ao saber que Juca Badaró estáinteressado nela, que vive de olho espichado para as carnes da suaamante. Sorriu novamente. Juca Badaró só tinha motivos para odiá-lo,Virgílio era o advogado de Horácio. E, no entanto, sem o saber, Juca lheestavaprestandoumgrandefavor.

Mas,no leitodaestrada,procurandoacertaropassopeladistânciados dormentes, ele já não pensava em Margot. Nessa noite seus olhosenxergavamabelezadomundo:aluacheiasederramandosobreaterra,asestrelasenchendoocéudacidade,osgrilosquecantavamnomatorralemtorno.UmtremdecargaapitouaolongeeVirgílioabandonouoleitodaestrada. Ia junto aos fundos das casas, grandes quintais silenciosos.Numportãoumcasalseamava.Virgíliosedesviouparaquenãooconhecessem.NumportãomaisadianteEsteroesperava.

A casa nova de Horácio em Ilhéus, "o palacete", como ?o chamavatoda gente, icava na cidade nova, construções que nasciam na praia,derrubando os coqueiros. Todas estas casas davam os fundos para aestrada de ferro. Uma companhia se organizara, comprara os terrenosplantadosdecoqueiroseosvendiaemlotes.AíHorácio,depoisdecasado,construíra seu sobrado, um dos melhores de Ilhéus, os tijolos feitosespecialmentenaolariadafazenda,cortinasemoveismandadosvirdoRiode Janeiro. Nos fundos do palacete, Ester estará esperando tremula demedo,ansiosadeamor.

Virgílioapressaopasso.Jáestáatrasado,abrigacomMargot izeracom que ele saísse depois da hora. O trem de carga passa por eleiluminando tudo com seus holofotes poderosos. Virgílio pára, esperandoque ele se vá, e toma de novo pelo leito da estrada. Dera trabalhoconvencer a Éster que o viesse esperar no portão, para poderem falartranquilamente. Ela tinha medo das empregadas, das más-línguas deIlhéus, e tinhamedo que umdiaHorácio viesse a saber. O caso de amordeles dois até então não passara de um namoro de longe, palavrastrocadas rapidamente, uma carta que ele escrevera, longa e ardente, umbilhetede respostadeEster comduasou trêspalavras apenas: "Te amo,maséimpossível",apertosdemãonocruzardeportas,olharesfundosdedesejo.Epensavamque,comoeratãopouco,ninguémtinhaaindasedadoconta, não imaginavam sequer que toda Ilhéus comentava o caso,considerando-os amantes, rindo de Horácio. Depois da carta, quandoHorácio voltara para a fazenda, ele izera uma visita a Ester. Era umaverdadeira loucura desa iar assim o poder de murmuração da cidade.

Ester o disse, pedindo que ele fosse embora. E para que ele fosse, elaprometeraseencontrarcomele,nanoite seguinte,noportão. elequiserabeijá-la,elafugira.

O coração de Virgílio está como o de um adolescente enamorado.Pulsa com a mesma rapidez, sente a beleza da noite com a mesmaintensidade. Ali é o portão dos fundos do palacete deHorácio. Virgílio seaproximatremuloecomovido.

Oportãoestásemi-encostado,eleempurraeentra.Sobumaárvoreenvoltanumacapa,banhadapelalua,Ésteroespera.Correparaela,toma-lhedasmãos:

—Meuamor!O corpo dela treme, se abraçamos dois, as palavras são inúteis ao

luar.—Quero te levar comigo, embora.Para longedaqui, para longede

todos,construiroutravida.Ela choramansamente, sua cabeça no peito dele. Dos cabelos dela

vemumperfumequecompletaabelezaeomistériodanoite.Oventotrazoruídodomarqueestádooutroladoeseconfundecomochorodela.

—Meuamor!Eoprimeirobeijo, tem todoomistériodomundo, todaabelezada

noite,grandecomoavidaecomoamorte.—Meuamor!—Eimpossível,Virgílio.Temmeufilho.Agentenãopodefazerisso.—Nóslevamoseletambém...Vamosparalonge,paraoutrasterras...

Ondeninguémconheçaagente...—Horácioiráatrásdagenteaténofimdomundo...Maisqueaspalavras,osbeijos loucosdeamorsabemconvencer.A

lua dos namorados se debruça sobre eles. Nascem estrelas no ,céu dacidadedeIlhéus.EsterpensaemsororAngélica:voltavaostemposemqueerapossívelsonhar.Erealizarossonhos também.FechouosolhossobasmãosdeVirgílionoseucorpo.

Debaixoda capa,Virgílio encontrounuinhoo corpodeEster.Camadeluar,lençoldeestrelas,suspirosdahoradamortequesãoossuspiroseosaisdahoraextremadoamor.

—Voucontigo,meuamor,paraondetuquiseres...Completoumorrendonosbraçosdele:Atéparaamorte.

4

O capitão João Magalhães sorria da outra mesa. Margot sorriutambém.Ocapitãolevantou-se,veioapertarsuamão:

—Sozinha?—Poisé...—Brigaram?—Tátudoterminado.—Deverdade?Ouécomodasoutrasvezes?—Destavezseacabou.Nãosoumulherprasofrerdesfeitas...JoãoMagalhãestomouumarconspirativo:—Pois eu, comoamigo, tedigo,Margot,que issoéumaltonegócio

para ti. Seide gentedaqui, cheiadedinheiro, que estádeorelhamurchaporvocê.Agoramesmo...

—JucaBadaró...—atalhouela.OcapitãoJoãoMagalhãesfezcomacabeçaquesim:—Tápelobeiço...Margotestavacansadadesaber:—Não é de hoje que sei disso. Desde o navio ele deu em cima de

mim.Eunãotopei,tavamesmoenrabichadacomVirgílio...—Eagora?Margotriu:—Agoraéoutraconversa.Quemsabe...Ocapitãotomouumarprotetor,deuconselhos;— Deixe de ser boba, menina, trate de encher seu pé-de-meia

enquanto é moça. Esse negócio de amante pobre, minha ilha, só serveparamulhercasadacomhomemrico...

Elasedeixaraconvencer:—Eufuibobamesmo.NaBahiatavaassim–juntavaosdedosnum

gesto—degentericaatrásdemim.Tusabe...Ocapitãoapoioucomacabeça.Margotselamentava:— E eu, feito trouxa, atrás de Virgílio. Me soquei nessas brenhas,

viviaremendandomeiaemTabocas...Agoraacabou.—TuquerserapresentadaaJucaBadaró?—Elepediu?—Tádoidinho...OcapitãoJoãoMagalhãesvoltou-senacadeira,chamoucomodedo.

JucaBadaró se levantou, abotoouopaletó, veio sorrindo.Quandoele saía

damesa,AstrogildocomentouparaManueldeOliveiraeFerreirinha:—Issovaiterminarembarulho...—TudoemIlhéusterminaembarulho...–respondeuojornalista.Juca chegava junto à mesa, João Magalhães quis fazer as

apresentações,masMargotnãodeutempo:— Nós já nos conhecemos. Uma vez o coronel me marcou de

beliscão.Jucariutambém.— E vosmecê fugiu, nunca mais pus os olhos em cima de sua

carnação...SabiaqueandavaporTabocas, tenhoidolámasnãolhevi.Dizquetavacasada,eurespeitei.

—Sedivorciou.—anunciouJoãoMagalhães.—Brigou?Margotnãoqueriadargrandesexplicações:— Me deixou por um negócio, não sou mulher pra se trocar por

negócios...JucaBadaróriudenovo:—Ilhéusinteirosabequenegócioéesse...Margotfranziuorosto:—Queé?JucaBadarónãotinhapapasnalíngua:—ÉamulherdeHorácio,adonaEster.Odoutorzinhoandametido

comela...Margotmordeu os lábios. Houve um silencio, aproveitado por João

Magalhãesparaseretirarevoltarparaasuamesa.Margotperguntou:—Éverdade?Nãosouhomempramentiras...Elaentãoriulargamenteeperguntoucomavozafetada:—Nãomeoferecenadaparabeber?JucaBadaróchamouporNhozinho:—Baixechampanha...Quandoencheramastaças,eledisseparaMargot:—Umavezlhefizumapropostanonavio.Searrecorda?—Melembro,sim.—Toufazendoeladenovo.Botocasapravosmecê,lhedoudetudo.

Sóquemulherminhaéminhasóedemaisninguém...Elaviuoanelnodedodele,tomou-lheamão,elogiou:—Bonito!JucaBadarótirouoanel,enfiounumdedodeMargot:

—Eparavosmecê...Saíram bêbedos os dois pela madrugada, eles e mais Manuel

Oliveira, que,mal vira o espocar das garrafas de champanha, se chegaraparaamesaebeberamaisqueosdoisjuntos.IaumfriomatinalpelocaisdeIlhéus.Margotcantava,ojornalistafaziacoro,JucaBadaródavapressapois tinha de sair no tremdas oito. Os pescadores já chegavamdas suaspescariasnoaltomar.

5

Uma ordenança municipal proibia que as tropas de burros quetraziamcacauchegassematéocentrodacidade.AsruascentraisdeIlhéuseramcalçadas todaselaseduasoeramdeparalelepípedos,numsinaldeprogresso que inchava de vaidade o peito dos moradores. As tropasparavam nas ruas próximas à estação e o cacau entrava na cidade emcarroças puxadas par cavalos. Era depositado nos grandes armazénspróximosaoporto.Aliás,umagrandepartedocacau,quechegavaaIlhéuspara ser embarcado, não descia mais no lombo dos burros: vinha pelaEstradadeFerrooubaixavaemcanoasdesdeoBanco-da-Vitória,pelorioCachoeira,quedesembocavanoporto.

OportodeIlhéuseraapreocupaçãomaiordosmoradores.Naqueletempoexistiaapenasumaponteondeatracarosnavios.Quandocoincidiachegarmaisdeumnavionamesmamanhã,amercadoriadeumdeleseradesembarcada em canoas. Porém já se fundara uma sociedade anônimapara bene iciar e explorar o porto de Ilhéus, falava-se em construirmaispontes de atracação e grandes docas. Falava-se também, e muito, emmelhorar a entrada perigosa da barra, em fazer vir dragas que aaprofundassem.

Ilhéusnascerasobre ilhas,ocorpomaiordacidadenumapontadeterra,apertadoentredoismorros.Ilhéussubiraporessesmorros—odoUnhão e o da Conquista — e invadira também as ilhas vizinhas. Numadelas icavaoarrabaldedePontalondeagentericadacidade tinhasuascasas de veraneio. A população crescia assustadoramente desde que alavouradocacauseestendera.Por IlhéussaíaparaaBahiaquase todaaproduçãodosuldoEstado.Haviaapenasumoutroporto—BarradoRio-de-Contas—eesseeraumportopequeníssimo,ondesóosbarcosaveladavamcalado.OsmoradoresdeIlhéussonhavamemexportaralgumdiaocacau diretamente, sem ter quemandá-lo para a Bahia. Era um assunto

queestavasemprenos jornais:oaprofundamentodabarraquenãodavapassagem a navios de grande calado. O jornal da oposição o aproveitavapara atacar o governo, o jornal governista usava dele tambémnoticiandodequandoemvezqueo"muitodignoeoperosoprefeitomunicipalestavaem negociações com os governos estadual e federal para conseguir,inalmente, uma solução satisfatória para a questão do porto de Ilhéus".Masaverdadeéqueoassuntonuncaiaadiante,ogovernoestadualpunhatravas,protegendoarendadoportodaBahia.Masaquestãodasobrasdoporto serviaparaencher,quasecomasmesmaspalavras, asplataformasgovernamentaisdeambososcandidatosàPrefeitura:ogovernistaeodaoposição. Mudavam somente o estilo: a plataforma do candidato dosBadaróseraescritapeloDr.Genaro,adocandidatodeHoráciosedeviaàpena,muitomaisbrilhante,doDr.Rui.

Em Ilhéus podia se medir a fortuna dos coronéis pelas casas quepossuíam.Cadaqual levantavauma casamelhor e aospoucos as famíliasiam se acostumando a demorarmais na cidade que nas fazendas. Aindaassim essas casas passavam fechadas grande parte do ano, habitadassomente por ocasião das festas da Igreja. Era uma cidade semdiversões,apenas os homens tinham o cabaré e os botequins onde os ingleses daEstrada de Ferro matavam a sua melancolia bebendo uísque e jogandodados e onde os grapiúnas trocavam discussões e tiros. As mulheresrestavam como únicas diversões as visitas de família a família, oscomentários sobre a vida alheia, o entusiasmoposto nas festas da Igreja.Agora,comoiníciodaconstruçãodocolégiodasfreiras,algumassenhorassehaviamorganizadopara conseguir fundosparaasobras.E realizavamquermessesebailesonde faziamcoletas.A IgrejadeSão Jorge,padroeirodaterra,grandeebaixa,sembelezaarquitetônicamasricaemouronoseuinterior,dominavaumapraçaondeseplantaraumjardim.ExistiatambémaIgrejadeSãoSebastião,próximaaocabaré,emfrenteaomar.EnomorrodaConquistaestavana frentedocemitérioacapeladeNossaSenhoradaVitória, dominando a cidade desde o alto. Existia também um cultoprotestante que servia aos ingleses da Estrada e ao qual haviam aderidouns quantos moradores. O mais, em matéria religiosa, eram as várias"sessões espíritas" nas ruasde canto, proliferando cadadiamais.Aliás, acidadedeIlhéuscomosseuspovoadoseassuasfazendasdecacau,tinhamá fama na Arcebispado da Bahia. Muito se comentava ali a falta dereligiosidadedoshabitantes,asmissasdesertasdehomens,aprostituiçãosendo enorme, a falta de sentimentos religiosos verdadeiramenteassombrosa:umaterradeassassinos.Erapequenoonúmerodepadresda

cidade e domunicípio, em relação aonúmerode advogados emédicos. Evários desses padres se convertiam, com o correr do tempo, emfazendeiros de cacau, pouco se preocupando com a salvação das almas.Citava-seocasodoPadrePaiva,quelevavasobabatinaumrevólverenãose perturbava se acontecia um barulho perto dele. O Padre Paiva eracaudilho político dos Badarós em Mutuns, nas eleições trazia levas deeleitores, diziam que ele prometia verdadeiros pedaços do paraíso emuitos anos de vida celestial aos que quisessem votar com ele. Eravereador em Ilhéus e não se interessava omínimo pela vida religiosa dacidade.JáocónegoFreitasseinteressava.Certavez izeraumsermãoqueicara célebre porque comparava o dinheiro gasto pelos coronéis nocabaré,comasmulheresdemávida,comopoucodinheirorecoletadoparaasobrasdocolégiodasfreiras.Foraumsermãoviolentoeapaixonadomassemnenhumresultadoprático.AIgrejaviviadasmulhereseestasviviamdela,dasmissas,dasprocissões,dasfestasdeSemanaSanta.Misturavamocomentário da vida alheia com o enfeitar os altares, com o fazer novastúnicasparaasimagensdossantos.

A cidade icavaentreo rio eomar,praiasbelíssimas, os coqueirosnascendo ao largo de todo o areal. Um poeta que certa vez passara porIlhéus e dera uma conferência, a chamara de "cidade das palmeiras aovento",numaimagemqueosjornaislocaisrepetiamdequandoemvez.

Averdade,porém,équeaspalmeirasapenasnasciamnaspraiasese deixavam balançar pelo vento. A árvore que in luía em Ilhéus era aárvoredocacau,sebemnãosevissenenhumaemtodaacidade.Maseraela que estava por detrás de toda a vida de São Jorge dos Ilhéus. Pordetrás de cada negócio que era feito, de cada casa construída, de cadaarmazém,decadalojaqueeraaberta,decadacasodeamor,decadatirotrocado na rua. Não havia conversação em que a palavra cacau nãoentrasse como elemento primordial. E sobre a cidade pairava, vindo dosarmazéns de depósito, dos vagões de estrada de ferro dos porões dosnavios,dascarroçasedagente,umcheirodechocolate,queéocheirodocacauseco.

Existia outra ordenança municipal que proibia o porte de armas.Masmuitopoucaspessoassabiamqueelaexistiae,mesmoaquelespoucosque o sabiam, não pensavam em respeitá-la. Os homens passavam,calçadosdebotasoudebotinasdecourogrosso,acalçacáqui,opaletódecasimira, e por baixo deste o revólver. Homens de repetição a tiracoloatravessavamacidadesobaindiferençadosmoradores.Apesardoquejáexistiadeassentado,dede initivo,emIlhéus,osgrandessobrados,asruas

calçadas,ascasasdepedraecal,aindaassimrestavanacidadeumcertoar de acampamento. Por vezes, quando chegavam os navios abarrotadosdeemigrantesvindosdosertão,deSergipeedoCeará,quandoaspensõesde perto da estação não tinhammais lugar de tão cheias, então barracaseramarmadasna frentedoporto. Improvisavam-se cozinhas, os coronéisvinham ali escolher trabalhadores. Dr. Rui, certa vez, mostrara umdaquelesacampamentosaumvisitantedacapital:

—Aquiéomercadodeescravos...Dizia com um' certo orgulho e certo desprezo, era assim que ele

amavaaquelacidadequenasceraderepente, ilhadoporto,amamentadapelocacau,jásetornandoamaisricadoEstado,amaisprósperatambém.Existiam poucos ilheenses de nascimento que já tivessem importância navidadacidade.Quase todos, fazendeiros,médicos,advogados,agrónomos,políticos, jornalistas e mestres de obras eram gente vinda de fora, deoutrosEstados.Masamavamentranhadamenteaquelaterraaventurosaerica.TodossediziamgrapiúnasequandoestavamnaBahia,emtodaparteeramfacilmentereconhecíveispeloorgulhocomquefalavam.

—Aqueleéumilheense...—diziam.Nos cabarés e nas casas de negócios da capital eles arrotavam

valentia e riqueza, gastando dinheiro, comprando do bom e do melhor,pagandosemdiscutirpreços,topandobarulhossemdiscutiroporque.Nascasas de rameiras, na Bahia, eram respeitados, temidos, e ansiosamenteesperados.Etambémnascasasexportadorasdeprodutosparaointerior,oscomerciantesdeIlhéuseramtratadoscomamaiorconsideração,tinhamcréditoilimitado.

De todooNortedoBrasildesciagenteparaessas terrasdoSuldaBahia. A fama corria longe, diziam que o dinheiro rodava na rua, queninguém fazia caso, em Ilhéus, de prata de dois mil-réis. Os navioschegavam entupidos de emigrantes, vinham aventureiros de toda aespécie,mulheresde todaa idade,paraquem Ilhéuseraaprimeiraouaúltimaesperança.

Nacidadetodossemisturavam,opobredehojepodiaseroricodeamanhã,o tropeirodeagorapoderia teramanhãumagrande fazendadecacau, o trabalhador que não sabia ler poderia ser um dia chefe políticorespeitado. Citavam-se exemplos e citava-se sempre Horácio, quecomeçaratropeiroeagoraeradosmaioresfazendeirosdazona.Eoricodehoje poderia ser o pobre de amanhã se um mais rico, junto com umadvogado, izesse um "caxixe" bem feito e tomasse sua terra. E todos osvivos de hoje poderiam amanhã estar mortos na rua, com uma bala no

peito.Porcimadajustiça.dojuizedopromotor,dojúridecidadãos,estavaaleidogatilho,últimainstânciadajustiçadeIlhéus.

A cidade por aquele tempo começava a se abrir em jardins, omunicípiocontataraum jardineiro famosonacapital.O jornaldaoposiçãoatacara dizendo que "muito mais que de jardins Ilhéus precisava deestradas". Mas, mesmo os oposicionistas mostravam orgulhosos aosvisitantes as lores que cresciam nas praças antes plantadas de capim. Equantoàsestradas,oshomenseosburrosasiamabrindonoseupassoembuscadecaminhosparatrazeroseucacauatéoportodeIlhéus,atéomardos navios e das viagens. Era assimo porto de São Jorge dos Ilhéus, quecomeçavaaaparecernosmapaseconômicosmaisnovos,cobertosporumaplantadecacau.

6

O jornal da oposição, "A Folha de Ilhéus", que saía aos sábados,ressumava naquele número uma violência inaudita. Era dirigida porFilemon Andreia um ex-alfaiate que viera da Bahia para Ilhéus, ondeabandonara a pro issão. Constava na cidade que Filemon era incapaz deescreverumalinha,quemesmoosartigosqueassinavaeramescritosporoutros,elenãopassavadeumtesta-de-ferro.Porqueeleterminaradiretordo jornal da oposição ninguém sabia. Antes fazia trabalhos políticos paraHorácio, e, quando este comprou a máquina impressora e as caixas detipos para o semanário, toda a gente se surpreendeu com a escolha deFilemonAndreiaparadiretor.

—Seelemalsabeler...— Mas tem um nome de intelectual. — explicou Dr. Rui. — Soa

bem... E uma questão de estética... – enchia a boca para pronunciar —FilemonAndreia!Nomedegrandepoeta.—concluía.

Agentede IlhéusresponsabilizavaemgeraloDr.Ruipelosartigosde "A Folha de Ilhéus". E se formavam verdadeiros grupos torcedoresquando, em época de eleições, "A Folha de Ilhéus" e "O Comércio"iniciavamumadaquelaspolemicascheiasdeadjetivos insultuosos.DeumladooDr.Rui,comseuestilopalavrosoedefrasesredondaseempoladas,de outro lado Manuel de Oliveira e por vezes Dr. Genaro. Manuel deOliveira era pro issional de imprensa. Trabalhava em vários jornais daBahia até que Juca Badaró, que o conhecera nos cabarés da capital, ocontratara para dirigir "O Comercio". Era mais ágil e mais direto, quase

semprefaziamaissucesso.quantoaosartigosdoDr.Genaro,eramcheiosdecitaçõesjurídicas,oadvogadodosBadaróserageralmenteconsideradoohomemmais culto da cidade, falava-se com admiração das centenas delivrosqueelepossuía.Ademaislevavaumavidamuitoreservada,vivendocomseusdois ilhossemquasesairdecasa,semaparecernosbotequins,sem ir ao cabaré. Era abstêmio, e, quanto a mulheres, diziam queMachadão ia uma ou duas vezes por mês à sua casa e dormia com ele.Machadão já estava velha, viera para a cidade quando ela apenascomeçava a crescer, fora a grande sensação feminina de Ilhéus há vinteanospassados.Agora tinhauma casademulheres, não faziamais a vida.Abria exceção apenas para o Dr. Genaro que, segundo ela, não seacostumavacomoutramulher.

Talvez fossepor issoqueo artigode fundode "AFolhade Ilhéus",que ocupava quase toda a primeira página do pequeno semanário daoposição,nestesábado,chamavaoDr.Genarode"jesuítahipócrita".Eeleera,nessedia,omenosatacadode todososamigosdosBadarós.Oartigose devia ao incêndio do cartório de Venâncio em Tabocas. "A Folha deIlhéus" condenava de uma maneira violenta aquele "ato de barbarismoquedepunhacontraosforosdeterracivilizadadequegozavaomunicípiode Ilhéus no conceito do país". O coronel Teodoro reunia em torno a seunome,nascolunasdosemanário,umamagní icacoleçãodesubstantivoseadjetivos insultantes: "bandido", "ébrio habitual", "jogador de pro issão etendências", "alma sádica", "indignodehabitaruma terra culta", "sedentode sangue". Ainda assim restava para os Badarós. Juca aparecia como"conquistadorbaratodemulheresfáceis",como"despudoradoprotetorderameiras e bandidos" e a Sinhô o jornal fazia as acusações de sempre:"caxixeiro", "chefe de jagunços", "dono de fortuna mal adquirida","responsável pela morte de dezenas de homens", "chefe político semescrúpulos".

O artigo reclamava justiça. Dizia que legalmente não havia comodiscutir a propriedade da mata de Sequeiro Grande. Que a mata foramedidaeoseutítulodepropriedaderegistradonocartório.Equenãoerapropriedadedeumsóe,sim,dediversoslavradores.Haviaentreelesdois,fazendeirosfortes,éverdade.Masamaioria–continuavaojornal—erampequenoslavradores.OqueosBadarósdesejavameraseapossardamatapara eles só, prejudicando assim não só os legítimos proprietários comotambémoprogressoda zona, a subdivisãodapropriedadeque "eraumatendênciadoséculo,comosepodiacomprovarcomoexemplodaFrança".A irmava que o coronel Horácio, progressista e adiantado, ao resolver

derrubar e plantar de cacau a mata de Sequeiro Grande, pensara nãosomente nos seus interesses particulares. Pensara também no progressodo município e associara à sua empresa civilizadora todos os pequenoslavradoresquelimitavamcomamata.Issosechamavaserumcidadãoútile bom. Como pensar em compará-lo com os Badarós, "ambiciosos semescrúpulos",queolhavamapenasosseusinteressespessoais?"AFolhadeIlhéus"terminavaseuartigoanunciandoqueHorácioeosdemaislegítimosproprietários de Sequeiro Grande iriam recorrer aos tribunais e que,quantoaoquesucedesseseosBadarós tentassem impediraderrubaeoplantio da mata, eles, os Badarós eram os responsáveis. Eles haviaminiciado o uso da violência. A culpa era deles pelo que viesse depois. Oartigoterminavacomumacitaçãoemlatim:"aleajataest".

Os leitoreshabituaisdaspolemicas icaramexcitadíssimos.Alémdeque se anunciava uma polemica de violência sem precedentes, notavamqueeste artigonãoeradoDr.Rui, conheciamoestilodestede longe.Dr.Rui eramuitomais retórico,muito bom num discurso no júrimas sem amesmaforçanojornal.Eesteartigorevelavaumhomemmaisenérgico,deraciocíniomais claro e adjetivosmais duros.Não tardouque se soubesseque o autor do artigo era o Dr. Virgílio, o novo advogado do partido queresidia em Tabocas mas que estava em Ilhéus naqueles dias. Fora opróprioDr.Rui,aquemalgunshaviamdadoosparabénspeloartigo,quemrevelaraa identidadedoautor.AcrescentavaqueVirgílioeradiretamenteinteressado no assunto, já que fora ele o autor do registro da mata deSequeiroGrandenocartórioqueTeodoro incendiara.Asmás-línguasnãodeixaramdedizerqueeleestavainteressadoeranaesposadeHorácio.Egozavam de antemão amaneira como, sem dúvida, "O Comércio", na suaedição de quinta-feira, comentaria esse aspecto da vida íntima doadvogadoedeHorácio.

Mas, para surpresa geral, "O Comércio" na sua resposta ao artigo,respostaquenãopecavapelaserenidade,desconheceuoassuntofamiliarque a cidade comentava. Aliás, no início do seu artigo, "O Comércio"anunciavaaosseusleitoresquenãoiriausarda"linguagemde,esgoto"do"pasquim"quetãovilmenteatacaraosBadaróseosseuscorreligionários.Nemtampoucoseenvolvernavidaprivadadequemquerquefosse,comoerahábitodosujoórgãodaoposição.Emrelaçãoaessaúltimaa irmativanãoa cumpriusenãoameias, jáque rememorava todaavidadeHorácio"esseex-tropeiroqueenriqueceraninguémsabecomo",misturandocasospúblicos com o processo pelamorte dos três homens ("escapou da justacondenação devido à chicana de advogados que desmoralizavam a

pro issão, mas não escapou da condenação pública") com coisas muitopessoais como a morte de sua primeira esposa ("os misteriosos casosfamiliaresdeparentesdesaparecidos subitamentee enterradosànoite").E, quanto à questão da linguagem, aí então "O Comércio" não cumpriaabsolutamente a promessa feita. Horácio era tratado de assassino parabaixo.ODr.Ruierao"cachaceiroinveterado",o"cãode ilaquelatiaenãosabiamorder", o "mau pai de família que vivia nos botequins sem sepreocupar com os ilhos e a esposa".Mas quem levava os adjetivosmaisviolentos era o Dr. Virgílio. Manuel Oliveira começara o trecho sobre oadvogado dizendo que "desejara molhar sua pena num esgoto paraescrever o nome do Dr. Virgílio Cabral". Com essas palavras iniciava "OComércio" uma "resumida biogra ia do advogado", que não era tãoresumidaassim.Vinhadostemposdeacadêmico,relembravaasfarrasdeVirgílio na Bahia, "a cara mais conhecida em todos os prostíbulos dacapital", as suasdi iculdadespara terminarocurso: "tendoqueviverdasmigalhas caídas damesa deste corvo que é Seabra". Margot entrava emcena,sebemseunomenãoaparecesse.Diziaotrecho:

"Nãoforam,noentanto,somentepolíticosdemáfamaqueencheramapançadoestudantemalandroedesordeiro.Umaelegantecocotefoivítimadosseushábitosdechantagista.Tendoenganadoajovembeleza,oestudantesalafrárioviveuàscustasdelae,àscustasdestedinheiroadquiridonacama,o Dr. Virgílio Cabral conseguiu seu título de bacharel em direito. Não épreciso acrescentar que; depois de formado e de estar a serviço do tropeiroHorácio, o mal-agradecido abandonou a sua vítima, aquela boa e belacriaturaqueoajudara,nosvaivénsdasorte."

Oartigoenchiapáginaemeia,apesarde"OComércio"serbastantepior que "A Folha de Ilhéus". Examinava demoradamente o caso docartório de Venâncio. Explicava ao público o "inominável caxixe" que eraregistrar um título de propriedade á base de uma velhamedição já semvalor legal e que, ademais, fora rasurada para substituir o nome deMundinho de Almeida pelo de Horácio e "seus sequazes". E atribuía oincendidocartórioaopróprioVenâncio, "falsoservidorda justiçaque,aolhe pedir o coronel Teodoro para ver a medição, preferiu incendiar seucartório destruindo assim as provas da sua vileza". Apresentava osBadarós como uns santos, incapazes de fazermal a umamosca. Avisavaqueos "insultosmiseráveis"do "pasquimoposicionista"estavam longedeatingir o bom nome de pessoas tão conceituadas como os Badarós, ocoronelTeodoro e "esse ilustre luminarda ciênciadodireito, que é oDr.Genaro Torres, orgulho da cultura grapiúna". Por último se referia às

"ameaçasdeHorácioeseuscãesde ila".Opúblico julgaria,no futuro,dequem partiram primeiro aquelas ameaças de fazer correr sangue epesaria as responsabilidades "nabalançada justiçapopular". Porém,queHoráciosoubessequeassuas"fanfarronadasridículas"nãometiammedoa ninguém. Os Badarós estimavam lutar com as armas do direito e dajustiça, mas sabiam também — a irmava "O Comércio" — lutar comqualquer arma que o "desleal adversário" escolhesse. Em qualquerterreno os Badarós sabiam dar o merecido a gente "da laia dessesbandidos sem consciência e desses advogados sem escrúpulos". E,respondendoao"aleajataest",oartigode"OComércioterminavatambémcom uma citação latina: "Quousque tandem , Tropeiros,abutere patientianostra"EssacitaçãoforaacolaboraçãodoDr.GenaroaoartigodeManueldeOliveira.

Ilhéussedeliciavapelasesquinas.

7

Quando, calçado de botas enlameadas, a barba crescida, o capitãoJoãoMagalhãesvoltoudamatadeSequeiroGrande,diversossentimentosdesencontrados andavam dentro dele. Fora para passar oito dias, levaraquinze, demorando-se na fazenda dos Badarós mesmo depois determinado o serviço. Se arranjara de qualquer maneira com osinstrumentos do agrónomo — com o teodolito, a trena, o omiômetro, abaliza — instrumentos que ele nunca havia visto antes na sua vida dejogadordepro issão.O cálculo realdamediçãodas terras sedeviamuitomais aos trabalhadores que o haviam acompanhado e a Juca Badaró doqueaele,que só izeraapoiar tudoqueosoutrosa irmavam, rabiscandocálculossobrequadradosetriângulos.Haviampassadodoisdiasnamata,osnegros carregandoos instrumentos, Jucaa acompanhá-loexibindo seuconhecimentodaterra:

—Capitão, boto amão no fogo que nomundo inteiro não há terraigualaessaparaoplantiodocacau.

JoãoMagalhãessecurvava,enchiaamãocomaterraúmida:—Édeprimeira,sim...Bemadubadaelavaiserótima...—Nemprecisaestrumenenhum.Issoéterranova,terraforte,seu

Capitão.Asroçasaquivãocarregarcomonuncacarregouroçanenhuma.JoãoMagalhães ia aprovando,não semetiamuitopela conversano

receiodedizerbesteira. JucaBadarócontinuava,mataadentro, fazendoo

elogiodasterrasondeasárvorescresciamagrestes.Porém mais que a bondade das terras de Sequeiro Grande,

interessara ao Capitão a iguramorena deDon'AnaBadaró. Já em Ilhéusele ouvira falar nela, diziam que fora Don'Ana quem dera ordens aTeodoroparaqueincendiasseocartóriodeVenâncio.EmIlhéussefalavadeDon'Anacomodeumamoçaestranhapoucochegadaásconversasdascomadres,poucoamigadasfestasdaIgreja(apesardamãetãoreligiosa),poucoamigadebailesenamorados.Raraspessoasselembravamdetê-lavisto dançando e nenhuma delas saberia respeitar o nome de umnamorado seu. Vivera sempremais interessada emaprender amontar acavalo, a atirar, a saber dos mistérios da terra e das plantações. Olgacomentava com as vizinhas o desprezo com que Don'Ana tratava osvestidos que Sinhô mandava buscar na Bahia ou no Rio, vestidos carosrealizadosporcostureirosde fama.Don'Ananãosepreocupavacomeles,queriaerasaberdospotrosnovosquehaviamnascidonafazenda.Sabiaonome de todos os animais que a família possuía, mesmo dos burros decarga. Tomara a si a contabilidade dos negócios dos Badarós e era a elaqueSinhôsedirigiacadavezquenecessitavadeumainformação.AesposadeJucadiziasempreque"Don'Anadeviaternascidohomem".

JoãoMagalhãesnãopensouomesmo.Talveztivessemsidoosolhosdela, que lhe lembravam outros olhos adorados, que primeiro ganharamsuaatenção.Enquantoacumprimentava,requintandonaspalavras,eleseperdeunacontemplaçãodaquelesolhosmeigosonde,desúbito,surgiramfulgurações intensas, iguaisàquelesoutrosolhosqueo itavamcom tantodesprezoumdia.Depoisesqueceumesmoosolhosdamoçaque icaranoRio de Janeiro, quando, com o correr dos dias, fez mais intimidade comDon'Ana. Não havia outra conversa na casa dos Badarós, naqueles dias,que amata de Sequeiro Grande e os propósitos de Horácio e sua gente.Faziam conjeturas, levantavam hipóteses, calculavam possibilidades. QuefariaHorácioquandosoubessequeosBadarósestavammedindoamataeiamregistraramediçãoeretirarumtítulodepropriedade?Jucanãotinhadúvidas: Horácio tentaria entrar na mata imediatamente, enquanto fariacorrer no foro de Ilhéus um processo pela posse da terra, baseado noregistro feito no cartório de Venâncio. Sinhô duvidava. Pensava que,estando Horácio sem apoio do governo, como oposicionista que era,tentariaprimeiro legalizara situaçãocomum"caxixe"qualquer, antesderecorrer a força. De Ilhéus, Juca trouxera as últimas novidades: o casoescandaloso de Ester comDr. Virgílio, objeto demurmurações da cidadetoda.Sinhônãoacreditava:

—Issoéconversadequemnãotemoquefazer.—Seeleatédeixouamulherquetinha,Sinhô.Éumfato.Estoubem

informado...—eriaparaJoãoMagalhãeslembrandoMargot.JoãoMagalhãesseenvolvianaquelasdiscussõeseconversas,tomava

parte nelas como se fosse um homem dos Badarós, igual a Teodoro dasBaraúnas,nanoitequeocoroneldormiulá.Sesentiacomoumparente.Ecada vez que Don'Ana o olhava e pedia, respeitosamente, a "opinião doCapitão", João Magalhães se extremava em insultos à gente de Horácio.Certa vez em que notoumais doces e interessados os olhos dela, ele pôsmemo à disposição dos Badarós o "seu conhecimento militar, de capitãoque tomara parte emumas oito revoluções". Estava ali, estava ás ordens.Se houvesse luta podiam contar com ele. Era homem para o quequisessem.Disse, e itouDon'Anae sorriuparaela.Don'Ana correuparadentro, subitamente tímida e envergonhada, enquanto Sinhô Badaróagradecia ao Capitão. Mas esperava que não fosse preciso, que tudo seresolvesseempaz,quenão tivessequecorrersangue.Everdadequeeleestava se preparando — dizia — mas com esperanças de que Horáciodesistissededisputar comele apossedamata.Recuarnão recuaria, erachefe da família, sabia das suas responsabilidades, demais tinhacompromissoscomamigos,gentecomoocompadreTeodorodasBaraúnasque estava se sacri icando por ele. Se Horácio fosse para diante, ele iriatambém.Mas ainda tinha esperanças... Juca encolhia os ombros, para eleeracertoqueHoráciotentariaentrarnamataàforçaequemuitosangueseria derramado antes que os Badarós pudessem plantar em paz seucacau nessas terras. O capitão João Magalhães novamente se pôs àdisposição:

— Para o que quiserem... Não gosto de arrotar valentiamas estouacostumadocomessasencrencas...

Naquele dia, ele só viu Don'Ana Badaró quando chegou a horanoturnadaleituradaBíblia.ElafoirecebidacomumagargalhadadeJuca,queaapontavacomodedo:

—Queéquehá?Eofimdomundo?Sinhô olhou também. Don'Ana estava séria, o rosto fechado em

severidade.TantotrabalharacomaajudadeRaimundaparafazeraquelepenteado parecido com um que Ester exibira em Ilhéus numa festa, eagoraseriamdela...Vestiaumdosvestidosdesair,que icavaestranhonasaladacasa-grandedafazenda.Jucacontinuavaarir,Sinhônãoentendiaoque se passava com a ilha. Só João Magalhães se sentia feliz, e se bempercebesseoridículoda iguradeDon'Ana,ataviadacomoparaumbaile,

se pôs sério também e dobrou os olhos numa languidez agradecida.Maselanãoolhavaninguémepensavaque todosestavamrindodela.Por imsuspendeuosolhosequandoviuqueocapitãoamiravaenternecido,teveforçasparadizeraJuca:

— De que tá rindo? Ou pensa que só sua mulher é que pode sevestirbemesepentear?

— Minha ilha, que palavras são essas? – repreendeu Sinhô,admiradodaveemênciadelamaisaindaquedostrajes.

—O vestido émeu, foi o senhor quemme deu. Ponho ele quandoquero,nãoéparaninguémrir...

—Pareceumespantalho.—gozouJuca.EntãoJoãoMagalhãesresolveuintervir:— Está muito elegante. Parece uma carioca, assim se vestem as

moçasdoRio...Jucaestáébrincado.JucaBadaró olhou o capitão. Primeiro pensou embrigar, seria que

aquele sujeito estava tentando lhe dar uma lição de boa educação. Masdepois re letiuquedevia serobrigaçãodele, comovisita, sergentil comamoça.Encolheuosombros:

—Gostoégosto,nãosediscute...SinhôBadarópôsfimádiscussão:—Leia,minhafilha.Mas ela saiu correndoparadentro, nãoqueria chorarna vista dos

outros. Foi nos braços de Raimunda que deixou que os soluços abafadossaíssem do seu peito. E nessa noite, foi o capitão João Magalhães quem,profundamentepensativo, leuostrechosdaBíbliaparaSinhôBadaróqueoolhavapelorabodoolho,comoqueamedi-loeexaminá-lo.

No outro dia, quando o capitão levantou-se e saiu num passeiomatinal, já encontrou Don'Ana no curral, ajudando a pear as vacas quedavam leite para a casa-grande. Cumprimentou-a e se aproximou. Elasuspendeuorosto,largouporummomentoopeitodavaca,falou:

—Ontemeu izumpapeltriste...Osenhordeveestarpensandoumbocado de coisas... Tabaroa quando semete amoça de cidade é sempreassim...—eriumostrandoosdentesbrancoseperfeitos.

OcapitãoJoãoMagalhãessentou-senacancela:— A senhora estava linda... Se estivesse num baile, no Rio, não

haveriaoutramulhertãobonita.Lhejuro.Elaoolhou,perguntou:—Nãogostamaisassimcomoeusoutodososdias?—Parafalaraverdade,sim—eocapitãoestavafalandoaverdade.

—Assimécomoeugosto.Éumabeleza.EntãoDon'Anaergueu-se,tomoudobaldecomleite:—Osenhoréumhomemdireito...Gostodequemfalaaverdade...—

eofitounosolhoseeraamaneiradeladeclararseuamor.Raimundaapareceurindo,risadinhacurtadecumplicidade,recebeu

osbaldesqueDon'Anasegurava,saíramasduas.JoãoMagalhãesfalouemvozbaixaparaasvacasdoestábulo:

— Parece que voume casar— olhou a fazenda em torno, a casa-grande, o terreiro, as roças de cacau, com um ar de proprietário. Maslembrou-sédeJucaedeSinhô,dosjagunçosquesejuntavamnafazenda,eestremeceu.

Pela fazenda ia um movimento fora do comum. Os trabalhadorespartiam todas as manhãs para as roças, a colher cacau, outros pisavamcacau mole nos cochos ou dançavam sobre o cacau seco nas barcaças,cantandosuastristescanções:

"Vidadenegroédifícildifícilcomoquê..."

Lamentosqueoventolevava,gemidossobosolnasroçasdecacau,notrabalhodamanhãànoite:

"EuqueromorrerdenoiteBemlonge,numatocaia.EuqueromorrerdeaçoiteDosbordadosdetuasaia..."

Os trabalhadores gemiam seus cantos nos dias de trabalho, seuscantosdeservidãoedeamorimpossível,.mas,aomesmotempo,sereunianafazendaumaoutrapopulação.Parecidoscomostrabalhadoresno ísicoe na rudeza da voz, na maneira de falar e no modo de se vestir, esseshomens que chegavam diariamente á fazenda, abarrotando as casas dostrabalhadores, vários dormindo já nos depósitos de cacau, outrosespalhados pela varanda da casa-grande, eram os jagunços que vinham,mandados por Teodora, recrutados por Juca, mandados pelo caboEsmeraldo,deTabocas,ouporseuAzevedo,pelopadrePaiva,deMutuns,guardar a fazenda dos Badarós e esperar os acontecimentos. Algunschegavammontados, eram poucos. Os mais vinham a pé, a repetição noombro, o facão no cinto. Chegavam e na varanda da casa-grandeesperavamordensdeSinhôBadaró,enquantosorviamocopodecachaçaqueDon'Anamandavaservir.Eram,emgeral,homenscalados,depoucaspalavras,de idadequasesempre inde inida,negrosemulatos,dequandoem vez um loiro contrastando com os outros. Sinhô e Juca conheciam a

todos eDon'Ana também.Aquele espetáculo se repetia diariamente, JoãoMagalhães calculava que uns trinta homens haviam chegado na fazendadepoisdele.Eseperguntavaoquesairiadaquilotudo,comoandariamospreparativos na fazenda de Horácio. Se sentia interessado, preso àquelaterra como se de repente houvesse botado raízes nela. Agora, seusprojetosde viagemse esfumaçavam,nãovia como sair de Ilhéus, não viaporqueseguiradiante.

Foiassim,cheiodessespensamentos,quechegouaIlhéus.Notrem,ao lado de Sinhô Badaró que dormira a viagem toda, ele re letialargamente.NavésperasedespediradeDon'Ananavaranda:

—Vouemboraamanhã.—Jásei.Masvaivoltar,nãovai?—Sevocêdeseja,euvolto...Elaolhou,fezquesimcomacabeça,correuparadentrosemlhedar

tempoaobeijoqueeletantoesperavaedesejara.Nooutrodianãoavira.ForaRaimundaquemlhederaorecado:

—Don'AnamandadizeravosmecêquenafestadeSãoJorgeelavaiemIlhéus.—lhedeuumaflorqueeleagoratrazianacarteira.

No trem vinha pensando. Procurou re letir seriamente e chegou àconclusãodequeestavasemetendoemfunduras.Primeiroaquelahistóriade medir terras, de assinar documentos. Não era nem engenheiro, nemcapitão,aquilopodialhedarumacomplicaçãocomprocessoecadeia.Eraobastante para ele arribar no primeiro navio, já tinha ganho dinheirosu iciente para vários meses sem preocupações. Mas o pior era essenamoro comDon'Ana. Juca já descon iava da coisa, dissera umas piadas,rira,pareciaestardeacordo.LheavisaraquequemcasassecomDon'Anateria que andar direitinho se não era capaz até de apanhar da esposa. ESinhôoolhavacomoqueaestudá-lo,certanoiteperguntaramuitoporsuafamília, suas relações no Rio, o estado dos seus negócios. O capitão JoãoMagalhãesseen iounumamonumentalsériedementiras.Agoranotrem,aquilo tudo lhe dava medo, seus olhos instintivamente procuravam dequandoemvezo canodaparabélumqueaparecia sobopaletódeSinhô.Pensando bem, o que ele devia fazer era ir embora, embarcar para aBahia,emesmolánãodemorarporcausadaquelahistóriademedição`deterras.NãopodiavoltaraoRio,mastinhatodooNorteàsuadisposição,osusineiros de açúcar dePernambuco, os donos de seringais, daAmazônia.Tanto em Recife como em Belém ou em Manaus, poderia mostrar suashabilidades no pôquer e continuar a viver sua vida sem maiorescomplicaçõesqueadescon iançadeumparceirodejogo,aexpulsãodeum

cassino,ouumchamadoàpolíciasemconsequências.E,notrem,ocapitãoJoão Magalhães decidiu que embarcaria no primeiro navio. Tinha unsquinze ou dezesseis contos livres, era o bastante para se divertir unstempos. Mas, quando Sinhô Badaró despertou e ele viu-lhe os olhos,recordou os de Don'Ana e compreendeu que a moça jogava um papelnesse assunto. Sempreprocurarapensarno casodeumamaneira cínica,vendo apenas a possibilidade de entrar, pelo casamento, na família dosBadarós, na fortuna dos Badarós. Mas agora sentia que não era apenasisso.Sentia faltadela,do jeitobruscoqueela tinhaorameiga,orasevera,trancadana suavirgindade sembeijose semsonhosdeamor.Elaviria àfestadeSão Jorge,emIlhéus,mandara lhedizer.Porquenãoesperá-laedecidir da sua partida depois da festa que estava próxima? Até lá nãohavia perigo. O perigo estaria em Sinhô Badaró mandar pedir no Rioinformações sobre ele. Então não escaparia, com certeza, da vingançadaquela gente rude e sensível, seria feliz se escapasse com vida. Olha ocano do revólver. Mas os olhos de Sinhô Badaró trazem Don'Ana parajuntodele.OcapitãoJoãoMagalhãesestásemsaberoquedecidir.OtremapitaentrandonaestaçãodeIlhéus.

AnoitefoivisitarMargot,traziaumrecadodeJucaparaela.Margotmudara de casa, saíra da pensão de Machadão e alugara uma casapequena. onde vivia sozinha, com uma empregada que cozinhava earrumava. De Tabocas haviam chegado suas coisas e ela agora passeavasua elegância pelas ruas de Ilhéus, atravessando com a sombrinharendada por entre as murmurações do povo. Toda a gente já sabia queJuca Badaró estava com ela. As opiniões se dividiam quanto à maneiracomo o caso se concretizara. A gente dos Badarós a irmava que Juca atomaradeVirgílio, enquantoagentedeHoráciogarantiaqueVirgílio jáahavia deixado. Depois do artigo de "O Comércio" as murmuraçõescresceram e os eleitores dos Badarós apontavam na rua a "mulher quepagou os estudos do Dr. Virgílio". Margot triunfava. Juca mandara abrircréditoparaelanaslojas,oscomerciantessecurvavammelosos.

Margot ofereceu uma cadeira na sala de jantar, o capitão sentou.Aceitou o café que a criada trazia, deu-lhe o recado de Juca. Ele viria nasemana seguinte, queria saber se ela precisava de alguma coisa. Margotcrivouocapitãodeperguntassobreafazenda.Tambémelasesentiacomodona da propriedade dos Badarós. Parecia ter esquecido Virgíliointeiramente,sófalouneleumavez,paraperguntaraJoãoseelehavialidooartigode"OComércio".

—Quemmefaz,mepaga...—afirmou.

Depois fez o elogio de Manuel de Oliveira, "um sujeito batuta, detutanonacabeça".Ecompletava:

—Demais,éumpândego...Divertidocomoelesó.Semprevemaquimefazercompanhia...Étãoengraçado.

O capitão João Magalhães descon iou dos elogios, quem sabe seMargot, na ausência de Juca, não estava se deitando com o jornalista? E,comosesentiaparecidocomela,aventureiroseestranhososdoisnomeiodaquelagentedaterra,achou-seobrigadoalhedarumconselho:

—Medizumacoisa?TutemalgumchamegocomesseOliveira?Elanegou,massemforça:—Nãovêlogo...—Euestouquerendotedarumconselho...Tunãoquercantar,não

faz mal, eu mesmo não quero saber. Mas vou te dizer: cuidado com osBadarós.Nãoégenteparabrinquedo.SetutemamoràpelenãopenseemenganarumBadaró...Nãoégenteparabrincadeira...

DiziaaMargot,pareciaquererconvencerasimesmo:—Émelhordesistirdoquepensaremenganareles...

8

Perto do porto, num sobrado, estava a casa exportadora "Zude,IrmãoeCia:'Embaixoeradepósitodecacau,noandarsuperior icavamosescritórios.Umadas trêsouquatro irmasquecomeçavamasededicaràexportaçãodecacau,quese iniciara faziapoucosanos.Antesaprodução,ainda pequena, era toda consumida no país. Mas com o crescimento dalavoura, alguns comerciantes da Bahia e alguns estrangeiros, suíços ealemães,fundaram irmasparaaexportaçãodecacau.Entreelasestavaados irmãos Zude, dois exportadores de fumo e de algodão. Criaram umasecção para o cacau. Abriram a ilial em Ilhéus e mandaram para elaMaximiliano Campos, um velho empregado, já de cabelos brancos, commuita experiência. Nesse tempo eram as casas exportadoras que securvavam ante as coronéis, os empregados e gerentes se dobrando emmesurase cortesias,osproprietáriosoferecendoalmoçosaos fazendeirosquando estes viajavam à capital, levando-os aos cabarés e ás casas demulheres.Aindaerampequenasascasasexportadorasdecacau,emgeraleram apenas secções de grandes casas exportadoras de tabaco, café,algodãoecoco.

Por isso quando Sinhô Badaró terminou de subir as escadas de

`Zude, IrmãoeCia:' e abriuaportadoescritóriodogerente,MaximilianoCamposselevantouapressadamente,veiolheapertaramão:

—Queboasurpresa,coronel.Oferecia-lhe a melhor cadeira, a sua, e sentava-se modestamente

numadascadeirasdepalhinha:— Há quanto tempo não aparecia. Eu o fazia na propriedade,

tratandodasafra.—Estavaporlá...Trabalhando.—E, como vão as coisas, coronel?Queme diz da safra desse ano?

Parecequedeixa a do anopassado longe, hein?Nós, aqui, já compramosatéestemêsmaiscacauquedurantetodooanopassadojunto.Eissoquealguns fazendeiros fortes, como o senhor, ainda não venderam suassafras...

—Porissovim.—disseSinhô.MaximilianoCampossetornouaindamaiscortes:—Resolveunãoesperarpreçosmais altos?Achoqueo senhor faz

bem...Nãoacreditoqueocacaudemaisdecatorzemil-réisaarrobaesseano... E olhe que, por catorze mil-réis, é melhor plantar cacau que dizermissacantada...—riucomacomparação.

— Pois eu acho que dá mais, seu Maximiliano. Acho que vai darquinze mil-réis pelo menos, no im da safra. Quem puder guardar seucacau, vai ganhar dinheiromuito. A produção não chega pra quem quer.DizquesónosEstadosUnidos...

MaximilianoCamposbalançouacabeça:—E verdade que se coloca quanto cacau haja...Mas isso de impor

preços, coronel, ainda são os gringos que, impõem. O nosso cacau aindanãoénadaemvistado cacaudaCostad'Ouro.Éa Inglaterraquem fazopreço. Quando os senhores tiverem plantado essa terra toda, tiveremderrubado toda essa mataria que ainda há, pode ser que então a gentepossaimporosnossospreçosnosEstadosUnidos...

SinhôBadaróselevantou.Abarbacobria-lheagravataeopeitodacamisa:

—Pois issoéquevoufazer,seuMaximiliano.Vouderrubaramatade Sequeiro Grande e plantar ela de cacau. Daqui a cinco anos tou lhevendendocacaudessasterras...Eaíagentepodeimporospreços...

Maximiliano já sabia.Quemem Ilhéusnão sabia aindadosprojetosdos Badarós a respeito damata de Sequeiro Grande?Mas todos sabiamtambém que Horácio tinha idênticos propósitos. E Maximiliano falou noassunto.SinhôBadaróesclareceu:

— A mata é minha, agora mesmo venho de registrar o título depropriedadenocartóriodeDomingosReis.Éminhaeaidequemquisersemeternela...

Dizia com convicção eMaximiliano Campos recuou diante do dedoestendido de Sinhô Badaró. Mas este riu e propôs conversarem denegócios:

—Querovenderminhasafra.Desdeagoravendodozemilarrobas.Hoje está marcando catorze mil e duzentos réis por arroba. São cento esetentacontosderéis.Tádeacordo?

Maximilianofaziacontas.Suspendeuacabeça,tirouosóculos:—Eopagamento?—Nãoquerodinheiro agora.Quero equeo senhor abrao crédito

desse dinheiro para mim. Vou precisar para em pregar na derruba damataenoplantiodasroças.Vouretirandotodasemana...

— Cento e setenta contos e quatrocentos mil-réis. anunciouMaximilianoterminandoascontas.

Conversaram os detalhes dó negócio. Os Badarós vendiam, seucacau a "Zude, Irmão e Cia:' há vários anos. E para nenhum dos seusclientes do sul da Bahia a casa exportadora tinha tantas atenções comoparaosIrmãosBadarós.

Sinhô sedespedia.Voltarianodia seguintepara assinar o contratodevenda:Aindanoescritório,disse:

—Dinheiro pra derrubar amata e plantar cacau! E também paralutar,seforpreciso,seuMaximiliano!?–estavasério,alisandoabarbacomamão,olharduro.

Maximilianonãoencontrouoquedizer,perguntou:—EameninaDon'Anacomovai?OrostodeSinhôperdeutodaadureza,seabriunumsorriso:—Táumamoça.Ebonita!nãotardaacasar...Maximilianonão encontrouoquedizer, perguntou: no, só odeixou

nacalçadadarua,numlongoapertodemão:—Muitosvotosdefelicidadeparatodaafamília,coronel.Sinhô Badaró andou para o centro da rua, a mão no chapéu.

retribuindo as saudações que recebia de todos os lados. Homensatravessavamaruaparavircumprimentá-lo.

9

OssinosrepicavamnatardefestivadodiadeSãoJorge.EraafestamaiordeIlhéus,afestadopadroeirodacidade.OPrefeito,noatorealizadopela manhã na Intendência Municipal, relembrava aquele Jorge deFigueiredo Correia que fora donatário da capitania dos Ilhéus e queplantaraaliosprimeirosengenhosrudimentares,engenhosdeaçúcarquelogo os índios destruíram. E, com ele, comparou os que vieram depois,trazendo a planta do cacau. Dr. Genaro falara também num discursorepletodecitaçõesemlínguaestrangeiraqueamaiorpartedagentenãoentendera.

Nessas comemorações o iciais os correligionários de Horácio nãohaviamtomadoparte.Masagoraestavamtodosvestidosde fraquenegro,atravessando as ruas da cidade, a caminho da catedral de onde sairia aprocissãodeSãoJorgequepercorriaasruasmaisimportantesdeIlhéus.

OcónegoFreitasbuscarasemprepassarporcimadasdivergênciaspolíticas dos grandes coronéis. Não se envolvia nelas, se dava com osBadarósecomHorácio,comoPrefeitodeIlhéusecomoDr.Jessé.Sefaziaumasubscriçãoembene íciodasobrasdoColégiodasFreiras,tiravaduascópias para que assim nem Sinhô Badaró nem Horácio tivessem queassinar em segundo lugar. Tanto um como outro icava satisfeito emreceberopapel limpode irmas,pensandocadaumqueeraoprimeiroapor o seu nome. Essa hábil política fazia com que, em torno da Igreja,governo e oposição se encontrassemunidos. Ao demais, o cónego Freitasera bastante liberal, nunca izera questão de que amaioria dos grandescoronéispertencesseàLojaMaçônica.ÉverdadequeajudouSinhôBadarónocombatequeestemoveucontraamaçonaria(queelegeraHorácioparaGrão-Mestre) mas sem aparecer, sempre por detrás do pano. Sua únicalutaabertaeracontraocultodosingleses,aIgrejaProtestante.Nomais,iase equilibrando. Nas novenas de Santo António se a senhora de Horáciopatrocinavaaprimeira,asenhoradeJucaBadaróeDon'Anapatrocinavamaúltima.Eosdoisrivaisseesmeravamnoluxodefoguetesebombasnasnoitesemqueasesposasapadrinhavamasnovenas.Nomêsdemaio,eleentregavaaumamissacantada,aoutroocuidadodoaltar.Quandopodiajogavacomarivalidadee,quandoviainteresse,procuravaharmonizar.

Em frente à praça onde icava a Matriz os homens abotoados nosfraques negros esperavam a passagem apressada das mulheres quepenetravamnaIgreja.PassouEsterpelobraçodeHorácio,muitoelegante,numdaquelesvestidosquelhelembravaotempodeestudantenocolégiodasmonjas na Bahia. Virgílio a viu passar, sacou o chapéu de coco parasaudar.Horáciobalançouamão,dandoadeus,Esteracenoucomacabeça.

A gente em torno cochichou entre si, em sorrisos mordazes. LogodepoispassaramSinhôeJucaBadaró.SinhôdavaobraçoaDon'Ana.Jucavinha ao lado da esposa. Foi a vez do Capitão João Magalhães, que, aocontrário de quase todos, usava fraque cinzento num escândalo dedistinção, tirar a cartola e dobrar-se na saudação. Don'Ana escondeu orostonoleque,Sinhôlevouamãoaochapéu,Jucagritou:

—Olá,Capitão!—Tãonamorando...—disseummoça.Dr. Jessé vinha apressado, suando muito, quase correndo na rua.

Parouumminutopara falarcomVirgílio, saiudepressa.Dr.Genarovinhagrave e solene, em passos cadenciados, olhando para o chão. O Prefeitopassou,passaramManecaDantas,donaAuricídiaeos ilhos.TeodorodasBaraúnas vestia como sempre. Apenas, em vez de botas e culote cáqui,levava uma calça branca perfeitamente engomada. No dedo, o solitárioenormebrilhava.Margotpassou também,masnãoentrouna Igreja; icounumcantodapraça conversando comManueldeOliveira.Asmulheres aespiavam pelo rabo dos olhos, comentando os seus vestidos e os seusmodos.

—EanovaamantedeJucaBadaró.—dissealguém.—DizemqueanteseraodoutorVirgílio...—Agoraeletemcoisamelhor...Riam.Homensdepésdescalçosestavammaisafastados.Amultidão

sobrava da igreja, sobrava da praça, se espalhava pelas ruas. O cónegoFreitas e outros dois padres saíram pela porta. Começaram a ordenar aprocissão. Primeiro saiu um andor com o Menino Jesus, uma imagempequena. Era levado por crianças vestidas de branco, quatro meninosescolhidosentreosdemelhoresfamílias.Ia,entreelesum ilhodeManecaDantas.OandortomouparaaruaemfrentedaMatriz,adianteiaaBandade Música. Atrás marchavam, fardados, os colégios, sob o olhar dasprofessoras. Quando houve espaço, saiu o andor da Virgem Maria, jábastante maior, levado por moças da cidade. Uma delas era Don'AnaBadaró.Aopassar,olhoupara JoãoMagalhãesesorriu.OcapitãoaachouparecidocomaVirgemdoandor,apesardelasermorenaea imagemserdeporcelanaazul.ABandadeMúsicaeosmeninosdoscolégiosandarammaisparaa frente,oshomens,nascalçadas,estavamtodosdechapéunamão.Vestidasdebranco,nospescoços itasazuisdecongregações,saíramás do andor da Virgem, as alunas das freiras. E saíram também assenhoras.Amulherde Jucavinhapelobraçodomarido,Estervinha comumaamiga, a esposadeManecaDantas, donaAuricídia, que achava tudo

lindo.Fizeramespaçoe saiuoandordeSão Jorge, grandee rico.OSantoera enorme, montado no seu cavalo, matando o dragão. Traziam-no, nosvaraisda frente,HorácioeSinhôBadaró.E,nosde trás,Dr.GenaroeDr.Jessé.Estesconversavamentresi,comoamigos.Mas,HorácioeSinhônemse itavam, iam sérios, o olharna frente, ospassos simétricos.Vestiamosquatroumabatavermelhasobreosfraquesnegros.

AtrásvinhaocónegoFreitasemaisdoispadresqueo ladeavam.Evinha toda gente importante da cidade: o Prefeito, o delegado, o juiz, opromotor, alguns advogados e médicos, os agrónomos, coronéis ecomerciantes.VinhamManecaDantas eFerreirinha,TeodoroeDr.Rui.Epor detrás se juntou a multidão, velhas beatas, mulheres do povo, ospescadoresdacolôniaZ.21,ostrabalhadoresdarua,gentedepénochão.Mulhereslevavamossapatosnamão.cumpriampromessasfeitasaosanto.

ABandadeMúsicaatacouumdobrado,aprocissãopartiuvagarosaeordenada.

Quase ao mesmo tempo o Dr. Virgílio e o Capitão João Magalhãesdeixarama calçada onde estavame foram se colocar, eles também, atrásdoandordaVirgem.JucaBadaróeVirgíliosecumprimentaramfriamente,o capitão se chegou, oferecendo uns queimados que havia comprado.Don'AnaBadaródesequilibrouoandoraoolharparatrásquandoouviuavozdocapitão.Asoutrasrirambaixinho.

Um grupo de homens se formara em torno de Margot para ver aprocissão passar. Quando o andor de São Jorge atravessou diante deles,Sinhô Badaró e Horácio de passos acertados um pelo outro, alguémcomentou:

—Quemdiria...OcoronelHorácioeSinhôBadarójuntos,umaoladodooutro.EDr.JessécomDr.Genaro.Sómesmomilagre.

Manuel de Oliveira esqueceu por ummomento que era diretor dojornaldosBadarósedisse:

— Cada um deles tá rezando para que o santo o ajude a matar ooutro...Tãorezandoeameaçando...

Margot riu, os outros riram também. E se juntaram todos àprocissão,que, comoumaserpentedescomunal, semovia lentamentenasruasestreitasdeIlhéus.Osfoguetesespocavamnoar.

ALuta

1

Deondevinhamesmoaquelepinicardeviolananoitesemlua?Erauma canção triste, uma melodia nostálgica que falava em morte. SinhôBadarónãosedemoravanuncaemre letirsobreatristezadasmúsicasedas letras das melodias que cantavam, na terra do cacau, os negros, osmulatos e os brancos trabalhadores. Mas, agora, trotando no seu cavalonegro, ele sentia que a música o penetrava e se recordou não sabe porque,daquelas igurasdoquadroqueenfeitavaasaladasuacasa-grande.Amúsicadeviavirdedentrodeumaroça,deumacasaqualquer,perdidanos cacaueiros. Era uma voz de homem que cantava. Sinhô não sabiaporqueosnegrosperdiamumapartedanoitepinicandoosviolõesquandoera tão curto o tempo que tinham para dormir. Mas a música oacompanhava por todas as voltas da estrada, por vezes era apenas ummurmúrio,desúbitoseelevavacomoseestivessemuitopróxima:

“Minhasinaésemesperança...Étrabalharnoiteedia...”Atrásdesi,SinhôBadaróouviaotrotardosburrosondevinhamos

capangas.Eramtrês:omulatoViriato,Telmo,umaltoemagro,detirocertoe voz efeminada, e Costinha, o que matara o coronel Jacinto. Vinhamconversandoentre si, a brisadanoite trazia até SinhôBadaróuns restosdediálogo:

—Ohomemmeteuamãonaporta,foiumalvoroço...—Atirou?—Nãodeutempo...—Históriacommulherdásempreemdesgraça...Se onegroDamião estivesse ali, Sinhôo chamaria e ele viria a seu

ladoeSinhôcontariaparaelealgunsdosseusprojetosqueonegroouviriacalado, aprovando com sua imensa cabeça. Mas Damião andava malucopelas estradas do cacau, rindo e chorando que nem uma criança e forapreciso que Sinhô usasse de toda a sua energia para que Juca nãomandasse liquidar o negro. Certa vez ele passara pelas proximidades dafazenda, choramingando, e os que o viram disseram que estavairreconhecível, magro e coberto de lama, os olhos fundos, murmurandocoisas sobre meninos mortos e caixões brancos de anjos. Era um negrobomeatéhojeSinhôBadarónãocompreendeporqueeleerrouapontaria

na noite em que atirou em Firmo. Será que já estavamaluco? Amúsica,que voltou na curva da estrada, trouxe novamente a lembrança daquelatarde.SinhôBadaróselembroudoquadronasaladevisitas:acamponesae os pastores, a paz azul, as gaitas que tocavam. Devia ser uma músicamaisalegre,compalavrasdocesdeamor.Umamúsicaparadançar,amoçatinha um pé no ar num gesto de baile. Não seria umamúsica como essaquepareciamúsicaparaenterro:

“MinhavidaédepenadoChegueiefuiamarradonasgrilhetasdocacau...”

SinhôBadaróprocuraenxergarparaos ladosdaestrada.Deveserde alguma casa de trabalhador nas proximidades. Ou será de algumhomemquevaiandandonoatalho,aviolanopeito,encurtandoocaminhocomasuamúsica?Fazbemquinzeminutosqueelaacompanhaacomitiva,falando da vida nessas terras, do trabalho e morte, do destino da gentepresa ao cacau. Mas os olhos de Sinhô Badaró, olhos acostumados àescuridãodanoite,nãodivisaramnenhumaluznaredondeza.Sóosolhosdepresságiodeumcorujãoquepiougravemente.Deviaseralgumhomemquevinhaporalgumatalho,oquecantava.Estariaencurtandoocaminhocom sua música. estava aumentando o caminho de Sinhô Badaró que iapara a fazenda. Essas eram estradas de perigo, agora não havia maissossegonessescaminhosemredordamatadeSequeiroGrande.Naquelatarde, quando ele dera ordens para o negroDamião derrubar Firmo, eleainda tinha esperanças. Mas agora era tarde. Agora a luta estavadeclarada, Horácio ia entrar pela mata de Sequeiro Grande, preparavahomens, fazia correr um processo em Ilhéus, disputando a posse dasterras. Naquela tarde a moça dos campos europeus bailava num pé só,todavia Sinhô Badaró tinha esperanças. A voz do homem que canta —decididamente vem pelo atalho — se aproxima, aumenta em volume,aumentaemtristeza:

“QuandoeumorrerMelevemnumaredebalançando...”

Agora passariam as redes na estrada, seria uma cena que serepetiria em muitas noites. E o sangue pingaria delas e regaria a terra.essanãoeraumaterraparabailesepastoresazuis,deboinasencarnadas.Era uma terra negra, boa para o cacau, amelhor domundo. Sobe a vozmaispróxima

ainda,suacançãodemorte:“Quandoeumorrer

Meenterremnabeiradaestrada...”Haviacruzessemnomespelaestrada.Homensquehaviamcaído,de

balaoudefebre,sobopunhaltambém,nasnoitesdecrimeoudedoença.Masoscacaueirosnasciamefruti icavam,seuMaximilianodisseraque,nodia em que todas as matas estivessem plantadas, eles imporiam seuspreços nos mercados norte-americanos. Teriam mais cacau que osingleses, em Nova York se saberia do nome de Sinhô Badaró, dono dasfazendasdecacaudeSãoJorgedosIlhéus.Maisrico

que Misael... Na beira de uma estrada repousaria Horácio, comcruzes sem nome estariam Firmo e Braz, Jarde e Zé da Ribeira: Elestinham querido assim. Sinhô Badaró preferiria que fosse como osoleogravura, comoumbaile, todosalegres, oshomens comsuasgaitasnocampoazul.AculpaeradeHorácio...Porquesemetiaemterrasqueeramsuas, só podiam ser dos Badarós, ninguém pensaria em disputar comeles?...Horácioéquequisera,pelavontadedele, SinhôBadaró, seriaumafesta, a moça com o pé no ar iniciando um bailado sobre as lores dacampina... Um dia ia ser como naquelas terras da Europa. Sinhô Badaróderrama um sorriso sobre a barba, também ele vê o futuro como ascartomanteseosprofetas.Nacurvadaestrada,ondeelaserami icacomoatalho,surgeohomemcomaviola:

“QuandoeumorrerMeenterremembaixodeumcoqueiro”

Masosomdacavalhada,quetrotanaestrada,calaavozdomúsico.EagoraSinhôBadarósentefaltadela.Jánãovêamoçabailandonasterrasdo cacau, asmatas plantadas, os preços ditados desde Ilhéus. Ele vê é ohomem que anda, os dedos ainda no violão, os pés vencendo a estradaenlameada.Saiparaumlado,dandopassagemaSinhôBadaróeaosseuscabras:

—Boanoite,patrão...—Boa...Oscabrasrespondememcoro:—Boaviagem...—QueNossoSenhoracompanhevosmecês...Agora amúsica se afasta, o homem pinica sua viola cada vezmais

longe, embreve não se ouvirá sua voz cantando tristezas, se lamentandoda vida, pedindo que o enterrem debaixo de um cacaueiro. Dizem que éaquele visgodo cacaumole queprende os homens ali. SinhôBadarónãosabedeninguémquetenhavoltado.Conhecemuitosquelamentam,assimcomo esse negro, se lamentam dia e noite, nas casas, nos botequins, nos

escritórios, no cabaré, que dizem que essa terra é desgraçada, émesmoumaterra infeliz,éo imdomundo,semdiversõesesemalegria,ondesemata gente por um nada, onde hoje se é rico e amanhã se émais pobrequeJó.SinhôBadaróconhecemuitos,jáouviuessasconversasdezenasdevezes,jáviuhomensvenderemsuasroças,juntaremodinheiroejuraremna beira da estrada que nuncamais voltariam. Partiam para Ilhéus paraesperaroprimeironavioquesaísseparaaBahia.NaBahiatinhadetudo,cidadegrande,comérciodeluxo,casadeconforto,teatroebondedeburro.Látinhadeumtudo,ohomemestavacomodinheironobolso,prontoparagozar a vida.Mas antes do navio sair o homem voltava, o visgo do cacauestá pegado na sola dos seus pés, e ele vinha e enterrava de novo o seudinheironumpedaçodeterraparaplantarcacaueiro...Algunschegavamair,embarcavam,cortavamasondasdomar,eondechegavamnãofalavamnoutraterraquenessasterrasdeIlhéus.E,eracerto,tãocertoquantoelese chamar Sinhô Badaró, que passados seismeses ou um ano, o homemvoltava, sem dinheiro, para recomeçar a plantar cacau. Diziam que era ovisgodocacaumolequeagarranospésdeumenuncamaislarga.Diziamascançõescantadasnasnoitesdasfazendas.

Entraramporentreoscacaueiros.EstãonaroçadaviúvaMerenda,noscostadosdamatadeSequeiroGrande.TinhamditoaSinhôBadaróqueela tinha feito acordo também com Horácio. Nem por isso ele quiseradeixar de aproveitar o atalho que encurtava seu caminho de quasemeialégua.SeelaestavacomHorácio,piorparaelaeparaosdois ilhosqueelatinha. Porque então aquelas roças passariam a se juntar às roças novasque os Badarós iam plantar nas matas de Sequeiro Grande. Dentro decinco anos ele, Sinhô Badaró, entraria nos escritórios de "Zude, Irmãos eCia." e lhes venderia cacau colhido nas roças novas. Assim o dissera eassimofaria.Nãoerahomemdeduaspalavras.Mesmoqueamoçativesseque terminar seu bailado recém-iniciado no quadro da sala da casa-grande. Depois então ela bailaria sobre um campo amarelo do ouro docacaumaduro,queerabemmaisbonitoqueaqueleazuldoquadro.Bemmaisbonito.

O primeiro tiro foi logo acompanhado de muitos outros, SinhôBadaró só teve tempo de levantar o cavalo que recebeu a descarga nopeitoecaiudelado.Osseusjagunçosdesmontavam,seatrincheiravampordetrás dos burros deitados. Sinhô Badaró procurava livrar a perna queestava presa por baixo do cavalo agonizante. Seus olhos pesquisavam aescuridãoefoielequem,aindadeitado,localizouosjagunçosdeHorácionatocaia,atrásdeumajaqueirapertodoatalho.

—Tãodetrásdajaqueira.—disse.Agorahaviaumsilenciototaldepoisdasprimeirasdescargas.Sinhô

Badaró conseguiu livrar a perna, levantou-se em toda a altura, um tirofurouseuchapéu.Disparouoparabélum,gritouparaosseushomens:

—Vamosacabarcomeles!A cabeça de um dos assaltantes apareceu por detrás da jaqueira

acertando a pontaria. Telmo disse ao lado de Sinhô Badaró, com sua vozefeminada:

—Omeu já tá, patrão...—elevou a repetição, a cabeça do homematrás da jaqueira balançou como um fruto maduro e caiu. Sinhô Badaróavançou atirando, agora estavam ele e seus homens por trás de unscacaueiros, e podiam ver os homens escondidos na tocaia. Eram cinco,contando com o que morrera. Os dois ilhos de Merenda e mais trêscapangas de Horácio. Sinhô Badaró carregava a arma, por detrás deleViriatoatirou.ForamandandopeloscacaueirosoplanodeSinhôeratomararetaguardadosalunos,deHorácio.Masestesperceberameacharamqueeramelhorromperfogoparaevitaramanobradocoronel.TiveramqueseafastarumpoucodasjaqueiraseSinhôBadaróqueimouum.Ohomemsetorceucomotiro,amãoparacima,opénoar.Viriatoacaboucomele:

—Descansa,fiodamãe...Issonãoéhoradedançar...Sinhô no meio de todo o barulho, se lembrou da moça do quadro

dançandonumpésó.Nãoerahoradedançar,Viriato tinha razão.Foramandandomais.UmtiroacertounoombrodeCostinha,o sanguemolhouapontadascalçasdeSinhôBadaró.

—Nãoénada...—disseCostinha.—Sóarranhoueaindaatirava.Continuaramocerco,ostrêshomensquerestavamnatocaiaviram

que não adiantava. Ainda estava em tempo, semeteram pela roça. Sinhôdescarregouoparabélumnadireçãoemqueelesiam.Depoisandouatéocavalo negro, passou amão sobre o seu pescoço aindamorno. O sanguecorrianopeitodocavalo,faziapoçanochão.Telmoseaproximou,começoua tirar a sela do animal morto. Viriato trouxe o burro em que vinhamontado, eque seafastaraumpouco como tiroteio, eneleSinhôBadarómontou.Telmo levavanopeitoraldo seuburroosarreiosdocavalo.Enasuagarupa,ViriatolevavaCostinhaqueapertavaaferidacomamão.

Iamapassopelaestrada.SinhôBadaróaindaseguravaoparabélumnamão. Seu olhar, quase triste, se afundou na escuridão em torno. Masagora não vinha música nenhuma, voz que cantasse as desgraças dessaterra. Não havia lua, tampouco, que iluminasse os cadáveres junto aoscacaueiros. Atrás, Telmo se vangloriava com sua voz ina, que parecia de

mulher:—Acerteifoinacabeçadopeste...Aluzdeumavela,queasaudadedemãospiedosashaviaacendido,

iluminava uma cruz recente na estrada. Sinhô Badaró pensou que sefossem iluminar todasas cruzesque iamse levantardeagoraemdiante,asestradasdaterradocacau icariammaisiluminadasquemesmoasruasdeIlhéus.Seentristeceudetodo."Nãoétempoparadança,moça,maseunãotenhoculpa,não".

2

Eosbarulhos, começadosnessanoite,nãopararammaisatéqueamata de Sequeiro Grande se transformou em roças de cacau. Depois agentedestazona,dePalestinaaIlhéus,mesmoagentedeItapira,iacontarotempoemfunçãodestaluta:

—IssoaconteceuantesdosbarulhosdeSequeiroGrande.—FoidoisanosdepoisdeacabadaalutadeSequeiroGrande.Foiaúltimagrandelutadaconquistadaterra,amaisferozdetodas,

também. Por isso icou vivendo através dos anos, as suas históriaspassando de boca em boca, relatadas pelos pais aos ilhos, pelos maisvelhosaosmais jovens.Enas feirasdospovoadosedas cidadesos cegosvioleiros cantavam a história daqueles barulhos, daqueles tiroteios queencheramdesangueaterranegradocacau:

"FoipragadefeiticeiroEmnoitedefeitiçaria..."

Os cegos são os poetas e os cronistas dessas terras. Pela sua vozesmoler, nas cordas das suas violas perdura a tradição das histórias docacau.Amultidãodasfeiras,oshomensquevemparavendersuafarinha,seumilho,suasbananase laranjas,oshomensquevemparacomprar,sereúnememtornoaoscegosparaouviremashistóriasdotempodocomeçodocacauquandoeratambémocomeçodoséculo.Jogamníqueisnascuiasaopédocego,aviolageme,avozcontadosbarulhosdeSequeiroGrande,daquelasmortandadespassadas:

"NuncaseviutantotiroTantodefuntonaestrada."

Homens se acocoramno chão, o rosto sorridente, outros se apoiamnosbordões,osouvidosatentosánarraçãodocego.Aviolaacompanhaosversos, surgemdiantedoshomensaquelesoutroshomensqueabriramaloresta no passado, que a derrubaram, que mataram e morreram, queplantaramcacauAindavivemmuitosdosquetomarampartedosbarulhosde Sequeiro Grande. Alguns iguram nesses versos que os cegos cantam.Mas os ouvintes quase não relacionam os fazendeiros de hoje aosconquistadores de ontem. E como se fossem outros seres, tão diferenteseramostempos.Antesaquieraamatafechadadeárvoresedemistérios,hoje são as roças de cacau, abertas no amarelo dos frutos parecendo deouro.Oscegoscantam,sãohistóriasdeespantar:

"EuvoucontarumahistóriaUmahistóriadeespantar."

Umahistóriadeespantar,ahistóriadamatadeSequeiroGrande.Namesma noite em que os irmãos Merenda e os três cabras de HoráciohaviamatacadoaSinhôBadarónoatalho,nessamesmanoiteJucapartiuáfrente de dez homens e cometeu uma série de estrepolias na redondeza.Começarammatandoosdois irmãosMerenda,dizemquenaprópriavistadamãe,paradarexemplo.DepoisentrarampelaroçadeFirmo, largaramfogonumaplantaçãodemandioca,esónãomataramolavradorporqueelenãoestavaemcasa,andavaporTabocas.

— Já escapou duas vezes — dissera Juca. — A terceira não vaiescapar.

Depois tinham ido à roça de Braz e aí o fogo comeu. Braz resistiucom seus homens e Juca Badaró teve que se retirar deixando um cabramorto e sem saber quantos haviam caído do lado deBraz. Um era certo:foraAntónioVítor quemoderrubara e Juca vira o homem rolar. AntónioVítorafirmavaquetinhaderrubadooutro,masnãohaviacerteza.

Vinteanosdepoisoscegospercorriamasfeirasdospovoadosnovos,dePirangi eGuaraci,nascidosnos terrenosdamatadeSequeiroGrande,cantandodetalhesdaluta.

"Faziapena,davadó,tantagentequemorria.CabradeHoráciocaiaEcaiadosBadaró.

Rolavaoscorposnochão,Davadornocoração

Vertantagentemorrer,Vertantagentematar,"

Os homens andavam atrás de jagunços recrutando os que tinhammelhorpontaria,osdecoragemcomprovada.NarramqueHoráciomandougente no sertão buscar jagunços de fama, que os Badarós não mediamdinheiroquando eraparapagar a umatiradorde tiro certeiro.As noitespassaram a ser cheias de medo, de mistério e de surpresas. Qualquercaminho, por mais largo que fosse, era estrada insegura para osviandantes.Ninguém,mesmoosquenãotinhamnadaavercomamatadeSequeiro Grande, comHorácio e com os Badarós, se atrevia a viajar porestasestradasdocacausemseracompanhadoporumcabrapelomenos.Foi nesse tempo que os comerciantes de ferragens que eram os quevendiamarmas,haviamenriquecido.MenosseuAzevedo,deTabocas,quese arruinou fornecendo repetições para os Badarós e só salvou algumacoisadevidoásuahabilidadepolítica.AgoratinhaumaquitandaemIlhéus,contando ele também, na sua velhice pobre, aquelas histórias aosmoçosestudantesdacidade.

"Selargoufoiceemachado,Sepegourepetição...Agentetodacomprou,

Sevendeucomoummilhão."

Cantavam os cegos, vinte anos depois. Contavam os feitos dosBadarós,acoragemdeles,deSinhôedeJuca:

"HomemmachoeraSinhôOchefedosBadaró.Umavez,eleiasó,

comcincohomeacabou.Jucanãoeramenos,coragemnelesobrava,EJucanãorespeitava

Nemosgrandesnemospequenos."

Mas contavam também da coragem da gente de Horácio, doshomensque iamcomele,deBraz,esobre todoscorajoso,que feridocom

trêsbalasmataraaindaassimdoishomens:

"BrazdenomeBrasilinoJosédosSantos,sechamava,

eletavafinoMesmodochãoatirava,Tandoferido,matava"

Retratavam Horácio, desde a sua fazenda, dando suas ordens aoshomens,mandando-os pelos caminhos que cercavam amata de SequeiroGrande:

"HorácioasordensdavaErasuaSenhoria,

Cabrasaiapraestrada,Prafazerestripulia."

OsrimancesdalutadeSequeiroGrandeiamdesa iandoas iguraseosfeitos,asinquietaçõestambém.Diziamdasesposas:

"MulhercasadanãohaviaSósefossenaBahia...Poraquijásedizia:Casadaerasóprojeto

MesmoasquetinhanetoDeviúvanooutrodia."

Os homens das feiras que ouvem, vinte anos depois, nos povoadosplantados sobre a terra onde fora a mata de Sequeiro Grande, soltamexclamaçõesdeadmiração,riemsedivertindo,comentamemfrasescurtas.Pela voz do cego des ila ante eles este ano e meio de lutas, de homensmorrendo,dehomensmatando,aterraadubadacomsangue.Equandooscegosterminam:

"Eujáconteiumahistória,Umahistóriadeespantar!"

eles derrubammais algumasmoedas na cuia do narrador, e saementrecomentários:"foicoisadefeiticeiro".Assimdizoromance,assimelesodizemhojetambém.Foicoisadefeiticeiro,emnoitedefeitiçaria.Apraga

donegroJeremiaseradistribuída,naqueletempodaslutas,pelasestradas,de fazenda em fazenda, na voz do negro Damião, magro e sujo, doidomanso,choramingandopeloscaminhosdocacau.

3

Aindanãohaviamsequeresfriadooscomentáriosnascidosdatocaiacontra Sinhô Badaró e da morte dos irmãos Merenda, quando Ilhéus foisacudida pelo incidente entre o Dr. Virgílio e Juca Badaró, no cabaré dacidade. Aliás, naquele ano e meio os acontecimentos se sucederam comtantarapidezquedona IaiáMoura, solteironaquezelavaporumaltardaIgreja de São Sebastião, disse á sua amiga dona Lenita Silva, que zelavapeloaltaremfrente:

—Sepassatantacoisa,Lenita,queagentenemtemtempodefalardireitosobrenenhumadelas...Tátudomuitodepressa...

AverdadeéquetantoHoráciocomoosBadaróstinhampressa.Umeoutrodesejavamderrubaramataquantoantesequantoantesplantá-ladecacaueiros.A lutacomiadinheiro,as folhasdepagamentoseelevavamnossábadosaalturasnuncavistasantes,osjagunçosrecebendoemdia,opreço das armas aumentando. Tanto os Badarós como Horácio tinhampressa e, por isso, aqueles meses foram tão cheios que as beatas nãodavamcontados fatosa comentar.Aindaestavam falandodeumquandosucediaoutroquelhesreclamavaatenção.Oquesepassavatambémcomosdois jornais.Acontecia, por vezesManuel deOliveira estar escrevendoum artigo descompondo Horácio por uma arruaça de seus cabras ereceberanotíciadeoutramuitomaior.Aviolênciade"OComércio"eda"AFolha de Ilhéus" não conheceu limites nesse ano. Já não havia adjetivosinsultuosos, que não estivessem gastos e foi uma festa na redação de "OComércio"nodiaqueodr,GenaromandoubuscarnoRio(as livrariasdaBahianãootinhamàvenda)umgrandedicionárioportuguês,editadoemLisboa, especializadoem termosquinhentistas.Foiquando,paragáudioeadmiraçãodosmoradores, "OComércio"passoua chamarHorácio e seusamigos de "fuão", "mequetrefe", vilão", " libusteiro", e de outros adjetivosdessa idade. "A Folha de Ilhéus" respondeu caindo no calão nacional, noqualoDr.Ruieraumaautoridade.OprocessoqueHoráciofaziacorrernoforo de Ilhéus continuava sem solução. "Correr no foro" era a maisinadequadadasexpressõesjurídicasquandosetratavadeumprocessodegente da oposição contra gente do governo, como era o caso atual. O juiz

estavaaliparadefenderosinteressesdosBadarós.E,senãoofizessebem,omenosquepodia lheacontecereraogovernadordoEstado transferi-loparaumacidadezinhaqualquerdosertão,faltadetodoconforto,perdidaeesquecidadetodosondeelevegetariaanoseanos. Jáo juizadode Ilhéus,aocontrário, era caminhoparaaSupremaCortedoEstado,para trocarotítulo de juiz pelo de desembargador, título muito mais sonoro e muitomelhor pago. Não adiantava a força que o Dr. Virgílio e Dr. Rui faziam,bombardeando o juiz com petições, requerimentos pedidos de vistoria. Oprocessomarchava,segundoHorácio,"apassosdecágado",eelecon iavamuitomais em tomar as terras à forçaquepela lei. E fazia comque– aocontráriodoprocesso—osacontecimentosandassemdepressa.Tambémaos Badarós interessava que marchassem o mais rápido possível. Aseleições se aproximavam, seria no ano seguinte, e muita gente dizia queera quase certo o rompimento entre o governo do Estado e o governoFederal devido à questão da sucessão presidencial. E se o governo doEstado caísse, os Badarós passariam a ser oposição, já não haviam decontarcomojuiz,entãooprocessodeHorácio"correria"realmente.

Tudo isso se comentava pelos botequins, pelas esquinas, nas casasdeIlhéus,eaténosnaviosqueparavamnoporto,entreosestivadoresqueos carregavam e os marinheiros que iam seguir viagem. Nas cidadesdistantes,emAracajueemVitória,emMaceióenoRecife,sefalavanessaslutas de Ilhéus como se falava nas lutas do Padre Cícero, em Juazeiro doCeará.

Virgílio havia ido áBahia e conseguira de umdesembargador, queapoiavaaoposição,umparecer favorávelaHorácionocasodapossedasterras de Sequeiro Grande. E o )untara aos autos do processo e o Dr.Genaroquebravaacabeçaemcimados livrosdedireitopara"esmagaroparecer", como prometera ao juiz que estava aterrorizado com aquelaintromissãodeumdesembargadornumprocessoqueaindaseencontravaem primeira instância. Porém, mais que o parecer do desembargador, oquedeveterlevadoJucaBadaróaprovocaroDr.Virgíliofoi,semdúvida,asene de artigos que este havia escrito no diário oposicionista da Bahiasobre as lutas em Ilhéus. Os artigos de "A Folha de Ilhéus" nãoincomodavamomaismínimoaosBadarós.Masaquelesartigosnumjornaldiário da Bahia tiveram repercussãomesmo fora do Estado e, se bem osdiáriosdogovernohouvessemdefendidoSinhôBadaró,ogovernador lheizera saber que era bom evitar qualquer publicidade sobre "essesincidentes" nummomento emque o governo estadual não se encontravaemmuitoboaharmoniacomofederal.Horáciotiveraconhecimentodofato

eVirgílioandavanasmasdeIlhéuscomoumvitorioso.Certanoite,elefoiaocabaré.Hámuitoquenãoaparecia,suasnoites

agoraeramnosbraçosdeEster,loucasnoitesdeamorededelírio,acarnedela despertada em sensualidade, se educando nos requintes que eleaprenderacomMargot.MasHorácioestavaemIlhéuseVirgílio icousemterondeir. Jáseacostumaraemnãoestaremcasaànoite,esedirigiuaocabaré para tomar um uísque Ia com Maneca Dantas, o coronel haviachegadocomHorácio.Virgíliooconvidara.

—Vamosdarumpulonocabaré?ManecaDantasriu,pilheriou:— O senhor quer desviar um pai de família do bom caminho,

doutor?Tenhoesposaefilhos,nãoandonesseslugares...Riram os dois, subiram as escadas. Na sala do fundo Juca Badaró

jogava com João Magalhães e outros amigos. Nhozinho dizia, em tom desegredo, aos amigos que "era umpôquer brabo, cacife tão alto ele nuncatinhavisto".VirgílioeManecaDantas foramparaa saladedança,ondeopianistaeoviolinista tocavamasmúsicasemvoga. Sentaram-se,pediramuísque e Virgílio viu logoMargot que estava numamesa comManuel deOliveiraeoutrosamigosdosBadarós.Ojornalista—quenãobrigavacomninguém, a irmando que ele "era um pro issional de imprensa e que,aquiloqueescreviano jornaleraaopiniãodosBadarósenada tinhaquever com a sua, particular — eram coisas distintas" – cumprimentouVirgílio. O advogado respondeu. cumprimentando a todos. Margot sorriupara ele, achou-o belo, lembrou-se de outras noites, apertou o lábio numgestoinicialdedesejo.Nhozinhotrouxeagarrafa.

—Esseédobom...Escocês...Sósirvodeleaosfreguesesescolhidos.Nãoéparatodomundo...

—Qualéaproporçãodeágua?—pilheriouManecaDantas.Nhozinhojurouqueeraincapazdemisturarouísqueequantomais

aquele, um uísque realmente... juntava os dedos, levava-os assim até oslábios e soltava sobre eles um beijo estalado, demonstrando com essasmímicasabondadedouísqueDepoisquissaberporqueoDr.Virgílionãoapareciahátantotempo...Elesentirafalta.Virgílioresumiaosmotivosporquedeixaradeviraocabaré:

—Ocupações,Nhozinho,ocupações.Nhozinho retirou-semasManuel deOliveira, que vira a garrafa de

uísque, se aproximou para perguntar ao Dr. Virgílio notícias de outrojornalista que era amigo comum dos dois e que trabalhava na Bahia, nodiáriodaoposição.

—ViuoAndradepor lá,doutor?—perguntouapósapertaramãodeVirgílioeadeManecaDantas.

—Jantamosjuntosumavez.—E,comovai?— Ah! o mesmo de sempre. Bebendo desde que acorda até que

deita.Continuacomosmesmoshábitos...Éformidável!ManueldeOliveiralembrou:—Aindaescreveossueltosinteiramentebêbedo?—Caindo.Maneca Dantas pedia a Nhozinho outro copo, servia o jornalista.

Agradecendoagentileza,ManueldeOliveiralheexplicou:É um colega, coronel. A melhor pena da Bahia... Jornalista está ali,

completo.Masbebedefazermedo.Quandoacorda,mesmoantesdelimparos dentes, emborca, ou "saboreia", como ele diz, um copo de cachaça. Econtinua... Na redação nunca ninguém viu o Andrade com o corpo bemequilibrado.Masa cabeça, coronel, essaé sempreamesma...Cada tópico.Umprimor.—Emborcouocopo,mudoudeassunto.—Bomuísque.

Aceitou a nova dose, com o copo cheio despediu-se, ia voltar parasuamesa.MasantesdisseaVirgílio:

—Temuma conhecida sua na nossamesa que está com saudades—olharamparaMargot.—Dizque gostariadedançarumavalsa comosenhor...

Piscouoolho,foiandando:—Quemfoirei,sempreémajestade...Virgílio riu com o comentário. No fundo estava sem interesse

nenhum. Viera ao cabaré para beber um pouco e conversar, não vieraatrásdemulher.MuitomenosdeumamulherqueatualmenteeraamantedeJucaBadaró,mantidaporele.DemaistemiaqueMargot,comquemnãovoltaraa falardesdeaquelaoutranoite`nessemesmocabaré, começassecom recriminações. ;Não estava interessado nela, para que dançar então,reatar laços partidos? Deu de ombros, bebeu um trago de uísque MasManeca Dantas estava interessado. Ele gostaria que a gente do cabarévisse Virgílio dançando com Margot. Assim saberiam que ela vivialouquinhapeloadvogado,quesóestavacomJucaporqueVirgílioadeixara.Nãohaveriamaisquemdissesseque Jucaa tomaradooutro.Falou:—Amoçanãotiraosolhosdosenhor,doutor...

Virgílio espiou,Margot sorriu, os olhospresosnele.ManecaDantasperguntou:

—Porquenãodançaumarodadacomela?

Ainda assim Virgílio re letia: "não valia a pena". Se moveu nacadeira.Margotnaoutramesapensouqueeleiaselevantarparatirá-laesepôsdepé.Issooobrigouadecidir-se.Nãotinhaoutrojeitoquedançar.Era uma valsa lânguida, saíram os dois pela sala e logo a gente toda osolhou,asrameirascomentavam.DamesaondeestavaMargot,umhomemquis se levantar.Houveumprincípio dediscussão entre ele eManuel deOliveira. O jornalista procurava convence-lo de algo mas o homem, apósouvi-lo,sedesprendeudamãodeOliveiraqueosegurava,epartiuparaasaladejogo.

A música da valsa se arrastava no piano velho. Virgílio e Margotdançavam sem trocar palavra mas ela ia de olhos cerrados, os lábiosapertados.

Juca Badaró chegou da sala de jogo. Atrás dele vinham JoãoMagalhães,ohomemqueo forachamar,eosoutrosparceirosdepôquerDa porta que comunicava as duas salas Juca icou olhando, as mãosmetidasnobolso,osolhoscintilando.Quandoamúsicaacabou,oshomensquedançavambaterampalmaspedindobis.Foinessemomentoque JucaBadaró atravessou a sala, tomouMargotporumbraço, e a puxoupara amesa. Ela relutou um pouco, Virgílio se adiantou, ia falar, mas Margotimpediuqueeledissessequalquercoisa:

—Nãosemeta,porfavor.Virgílio icouumminuto indeciso,olhavaJucaqueesperava,masse

lembrou de Ester... que lhe importava Margot? — cumprimentou a ex-amantesorrindo:

—Muitoobrigado,Margot—evoltouparasuamesaondeManecaDantasestavadepé,amãonorevólver,naexpectativadobarulho.

JucaBadaróarrastaraMargotparaamesaondediscutiramosdoisem voz alta, todomundo ouvindo.Manuel de Oliveira procurava intervir,porém JucaBadaróoolhoude talmaneiraqueo jornalista achoumelhorcalar-se. A discussão azedou-se entre Juca eMargot, ela quis levantar-se,eleasentouviolentamente.Nasoutrasmesashaviaumsilênciocompleto,atéopianistaespiava.Jucavoltou-se:

— Por que diabo não toca a merda desse piano? — gritou e ovelhoteseatirouemcimadopianoeosparessaíramdançando.

Não demorou, Juca tomou Margot pela mão, arrastou-a consigo.Quando passava em frente àmesa onde estavam Virgílio eManeca, Jucadisseparaamulherqueiaquasederastos:

— Vou lhe ensinar a respeitar macho, sua puta mal-acostumada...Parecequeéaprimeiravezquevivecomumhomem.

Disse para que Virgílio ouvisse e o advogado ia se levantando damesa,tinhaperdidoacabeça.ManecaDantaséqueosegurou,viuqueeleiamorrer nasmãos de Juca se tentasse um gesto. Juca eMargot saírampelaescada,dedentrodasalaseouviaosomdasbofetadasqueeledavana amante. Virgílio estava pálido. Maneca Dantas lhe explicava que nãovaliaapena.

O incidente não passou disso e no outro dia Virgílio o haviaesquecido quase completamente. Já não pensava no assunto,Margot nãolhe interessava.Tinha idovivercom JucaBadaróporquequisera,oplanode Virgílio era enviá la para a Bahia, dar-lhe dinheiro para uns quantosmeses.ElapreferirasemetercomJucanamesmanoitedorompimento,sefazeramantedele, forneceraao jornaldosBadarósdetalhes sobreavidade Virgílio como estudante. Se ela agora apanhava de Juca, se não podiadançar com quem quisesse, era culpa dela, ele, Virgílio, nada tinha comisso.E,decertamaneira,nãodeixavadedarrazãoaJuca.SeMargotaindafosse sua amante ele não haveria de gostar de vê-la dançando com ohomem que a tivera antes. Pormuitomenos Virgílio, izera uma arruaçanumcabarédaBahiapoucosanosatrás.Encontravadesculpaatémesmopara o insulto de Juca na saída. O coronel devia estar ciumento e seexaltara. Virgílio se encontrava satisfeito com Maneca Dantas por tê-loobrigadoasentar-sequandoelequaseiaperdendoacabeçaesemetendonuma briga por causa de Margot. Não pretendia sequer negar ocumprimento a Juca se este o saudasse na rua.Não guardava raiva dele,compreendia o que se passara, e principalmente não se interessava embrigarcomninguémporcausadeMargot.

Mas de boca em boca, nos comentários da cidade, o incidentecrescera.UnsdiziamqueJucaarrancaraMargotdosbraçosdoDr.Virgílioe a espancara na vista dele. Outros tinham uma versão mais dramática.Segundo estes, Juca encontrara Margot aos beijos com o Dr. Virgílio esacaraorevólver.Virgílioporém,nãolhederatempoparaatirar,embolaracomele, tinhamlutadopelapossedamulher.Essaversãoerageralmenteaceita. E, até que os que haviam assistido ao incidente narravam comgrandescontradições:segundouns,JucasaíradocabaréparaevitarqueoDr.Virgílio tirasseMargotparadançarnovamente enapassagempediradesculpas ao advogado. A maioria, porém, achava o contrário: que JucaconvidaraVirgílioparabrigareesteseacovardara.

Apesar de saber de como coisas carentes de toda a importânciaeramaumentadasemIlhéus,VirgílioseadmiroudaseriedadequeHorácioconcedeu ao incidente. O coronel o mandara, no dia seguinte, convidar

para jantar. Virgílio aceitou encantado, procurava mesmo um pretextoparairàsuacasaeassimestaruminstantepróximoaEster,sentindosuapresença,ouvindosuavozbem-amada.

Chegou pouco antes do jantar, na porta se encontrou comManecaDantas que fora também convidado. O coronel o abraçou e Horáciotambémoapertounosseusbraçosquandoentraram.Virgílioosencontroumuito graves, imaginou que alguma coisa nova houvesse acontecido prasbandasdeSequeiroGrande. Já iaperguntarquenovidadeshavia,quandoa criada anunciou que o jantar estava namesa e Virgílio se esquecia detudo porque ia ver Ester. Mas Ester o cumprimentou friamente, Virgílionotounosseusolhosovestígiodelágrimasrecentes.Aprimeiracoisaquelheocorreu foiqueHoráciohaviasabidoalgumacoisaentreeleeEstereque o jantar não eramais que uma cilada. Fitou de novo Ester e se deucontaqueelanãoestavaapenastriste,estavaofendida,zangadacomele.EocoronelHorácioestavaamável,maisamáveldoquenunca.Não,nãoera,com certeza, nada em relação ao caso dele com Ester. Então, que diaboseria?

HorácioeManecaDantasgastaramquasetodaaconversadojantar.Virgílioserecordavadeoutrojantar,nafazenda,quandoconheceraEster.Poucos meses se haviam passado e ela era dele, ele conhecia todos assegredos daquele corpo amado, tomara dele para si, lhe ensinara osmistériosmais docesdo amor. Era suamulher, nãopensavanoutra coisasenãoemlevá-laemboraparalongedaquelasterrasdebarulhosemortes.ParaoRiode Janeiro,onde teriamsua casa, ondeviveriamsuavida.Nãoera apenas um sonho. Virgílio esperava tão-somente ganhar um poucomaisdedinheiroearespostadeumamigoque,noRio,procuravaparaeleuma colocaçãonumescritório de advocacia ou umbomempregopúblico.Só Virgílio e Ester conheciam esse segredo, os seus detalhes planejadosentrebeijosnagrandecamaqueocupavaquase todooquartodaalcova.Imaginavam esse dia em que seriam um do outro totalmente, sem que oamor fosse cortado pelo medo, como o era nessas noites de agora, ascaríciasperturbadaspeloreceiodequeasempregadasdescon iassemdequeeleestavanacasa.Sonhavam,esseoutrodiaquandoelapudesseiraoladodelenasruas,seubraçopassadopelodeVirgílio,mãonamão,umdooutroparasempre.EnquantoManecaDantaseHorácioconversamsobreasafra, o preço do cacau, as chuvas, o cacau mole que se perdeu Virgíliorememoraessesmomentosnacama,entreascarícias,emqueplanejavamafuga,estudandoosdetalhesmínimos,terminandotudoembeijosalegrese demorados que acendiam a carne para o amor até que a madrugada

expulsavaVirgílio,empassosfurtivos,dacasadeHorácio.Foi arrancado dos seus pensamentos quando, aproveitando um

momento emqueodiálogo entreHorácio eManecaDantasparara, Esterfalou:

—Disse que o senhor ontem andou fazendo de cavaleiro andante,doutorVirgílio?—sorna,masseurostoestavatriste.

—Eu?—fezVirgíliosustentandoogarfonoar.— Ester tá falando é do barulho de ontem no cabaré... — disse

Horácio.—Eutambémandeisabendo.—Massenãohouvebarulhonenhum...–contouVirgílio.Eexplicouocaso:sesentiain initamentetristenavéspera,saudade

não sabia de que — e olhava Ester — e, tendo encontrado o coronelManeca,esteoconvidouparairemaocabaré.

ManecaDantasolhou,rindo:—Osenhormearrastou,doutor.Conteahistóriadireito.Chegados no cabaré, estava bebendo um uísque inocente quando

veio falar com eles o Manuel de Oliveira. E na mesa dele estava umamulher que Virgílio havia conhecido na Bahia, nos seus tempos deestudante. Dançaram uma valsa, quando ele pedia o bis, Juca Badaróapareceu e carregou comamulher. Ele não tinhanenhum interessepelamulherenemteriaseimportadoseJucanãohouvesse,aopassarporele,dito umas palavras desagradáveis. Mas, ainda assim, o coronel ManecaDantas o impedira de reagir, e Virgílio se achava agradecido ao coronelporqueevitaraqueele izesseumabesteiraporumacriaturaquenãolheinteressava absolutamente. Fora isso, mais nada. Invocava o testemunhodeManecaDantas.Esterpareciaindiferenteàsexplicações,dissecomumavozafetada:

— E que tem demais? Cabaré é mesmo para rapaz solteiro, semresponsabilidade de família. O senhor faz bem em se divertir, não temquemsofrapor isso... Agora, o compadreManeca équenão estádireito...—eameaçavacomodedo.—Temesposae ilhos.Voucontaràcomadre,hein?—ameaçavasorrindoseusorrisotriste.

ManecaDantaspediu,rindomuito,queelanãodissessenadaadonaAuricídia:

—Éciumentadefazermedo...Horácioencerravaoassunto:—Deixedisso,mulher.Todomundo temdireitodesedivertiruma

vezqueoutra,dematarasmágoas...AgoraVirgílio estavamais descansado. Já sabia o porquê da zanga

deEster,doarforçadodeindiferença,dosvestígiosdelágrimas.Oquenãoteriaelasabidoatravésdessasincríveissolteironasdacidade,essasbeatassem o que fazer se não falar da vida alheia? E desejava tê-la nos braçospara lhe explicar, em meio a mil carícias, que Margot não representavanada para ele, que dançara com ela quase por acaso. Sentia uma imensaternuraporEsteremesmocertavaidadedesabe-latristeporciúmes.Namesa,acriadaserviuocafé.

Horácio convidou Virgílio a passar ao seu gabinete paraconversaremumassunto.ManecaDantasfoicomeles,Éster icoucurvadasobreocrochê.

Ogabineteeraumapeçapequenaondeograndecofredeferroerao móvel que mais chamava a atenção. Virgílio sentou-se, Maneca Dantespuxouacadeiradebraços:

—Essaémaislargaparaminhasbanhas...Horácio icou de pé, fazia um cigarro de palha. Virgílio esperava,

pensava que se tratasse de algum detalhe jurídico do processo, sobre oqualHorácioquisesseasuaopinião.Ocoroneldemoravanafabricaçãodocigarro, rolando o fumo lentamente na mão calosa, raspando a palha demilhocomumcanivete.Porfimfalou:

—GosteidecomoosenhorcontouocasoaEster.Senãoelaia icarassustada, ela lheestimamuito,doutor.Apobreaquinão temquase comquemconversar, temumaeducaçãomuitodiferentedasoutrasmulheresdaqui...Gostadeconversarcomosenhor,osdoisfalamamesmalíngua...

VirgíliobaixouacabeçaeHoráciocontinuou,apósacenderocigarroqueterminaradefazer:

—Mas aqui paranós, doutor, esse negócio de ontem tem seu ladofeio.OsenhorsabeoqueéqueJucaBadaróandadizendoporaí?

—Nãoseie,pra lhe falaraverdade, coronel,nãome interessa.OsBadarós não devem gostar de mim e eu reconheço que tem razão. Souadvogadodosenhore,demais,advogadodopartido.Éjustoqueelesfalemmaldemim...

Horácio pôs o pé em cima de uma cadeira, estava quase de costasparaVirgílio:

— Isso é como senhor, doutor. Eu não gosto dememeter na vidadosoutros.Sómesmoquandoéumamigocomoosenhor.

—Masoqueéquehá?—quissaberVirgílio.—Osenhornãosedáconta,doutor,queseosenhornãotomaruma

atitude,ninguémmais,medesculpedizer,vailevarosenhorasérionessasterras...

—Masporque?—JucaBadaróandadizendoaDeuseaomundoquearrancouuma

mulherdosbraçosdosenhor,quelheinsultoueosenhornãoreagiu.Queosenhor,medesculperepetir,éumcagão.

Virgílioempalideceumaslogosecontrolou:—Quemassistiuaoincidentesabequenãohouvenadadisso.Eujá

havia parado de dançar, esperava para ver se havia bis. Ainda assim,quandoelepegounobraçodeMargot,euquisintervir,foielaquempediuque eu nãomemetesse. Depois, quando ele disse aquela bobagem foi ocoronelManecaquemmesegurou.

ManecaDantasinterveionaconversapelaprimeiravez:—Eclaro,doutor.Seeutivessedeixadoosenhor levantaramão,a

essahoratariatodomundovoltandodoseuenterro.Jucajátavalevandoamãoaorevólver.Eaquininguémquerqueosenhormorra.

Horáciodisse:—Seudoutor,euvimparaessasterraseramenino.Vaimuitosanos

que isso se sucedeu.Não seideninguémque conheça Ilhéusmelhorqueeu. Ninguém quer que o senhor morra, o compadre falou direito, muitomenos eu que gosto do senhor e preciso do senhor. Mas também nãoqueroqueosenhor iquedesmoralizadoporaqui,comfamadecovarde...Porissotoulhefalando.

Parou como se tivesse feito um longo discurso. Acendeu outrofósforo, icou com ele na mão, queimando, olhava com a cabeça voltadaparaoadvogadocomoesperandopalavrassuas.

—Oqueéqueosenhorachaqueeudevofazer?Horáciojogounochãoofósforoquelhequeimavaodedo,apontado

cigarrocontinuavaapagada,pequena,nolábiogrosso:— Tenho um cabra aí, homem de con iança. Na quinta-feira Juca

Badaróvai subirparaa fazenda, tou informado.Comcinquentamil-réisosenhorresolveoassunto...

Virgílionãoentendiadireito:—Como?FoiManecaDantasquemexplicou:—Porcinquentamil-réisohomemfazoserviço.Quinta-feiraespera

Juca na estrada, não há santo que salve ele... E, depois, ninguémmais semetecomosenhor.

Horácioanimava:— E não há perigo porque os Badarós vão dizer que fui eu quem

mandou.Sehouverprocessoécomigo...Mas,porissonãosepreocupe.

Virgíliolevantou-se:—Mas issonãoé coragem, coronel.Mandarum jagunçomatarum

homem,asanguefrio, issonãoécoragem...SefosseeumeencontrarcomJucanarua,meteramãonorostodele,estácerto...Masmandarumcabradarumtiro?Pramimissonãoécoragem...

—Aquiéassimdoutor.Eseosenhorpensaemfazercarreiraaqui,deixe que eu chameo cabra... Se não, não tem jeito.O senhorpode ser omelhoradvogadodomundo,ninguémvaiprocurarosenhor...

—Emesmotemopartido...—disseManecaDantas.Virgílio sentou-se de novo. Re letia. Nunca esperava por aquilo.

SabiaqueHoráciotinharazão.Naquelaterramandarmatareracoragem,fazia um homem respeitado. Sabia também que não havia nenhumatrampa naquilo tudo. Se houvesse algum barulho com a justiça a culpaseria lançada em cima de Horácio. Mas apesar disso tudo, ele não viamotivoparamandarassassinarJucaBadaró.Horáciofalava:

— Vou lhe dizer uma coisa, doutor, porque sou seu amigo. Dequalquermaneiraeuvoumandar liquidar JucaBadaró. Já tavadispostoaisso,elematouquatrohomensmeus...—emendou-... issoé,seushomensmataram, mas aqui é como se ele tivesse matado. Tocou fogo numaplantaçãodeFirmoeatacouacasadeBraz.Táfazendoestripuliasdemais,émelhoracabardeumavez.Prasemanavoumandarderrubarocomeçodamata,JucaBadarónãovaiassistir...

Parou, mais uma vez acendeu o fósforo, pitou a ponta de cigarro.OlhouVirgílio,suavozerapesadacomosocos:

— Só quero fazer um favor ao senhor. O senhor dá a ordem aocabra, e todo mundo vai saber, mesmo que eu responda júri, que foivosmecêquemmandouliquidarJucaBadaró.Eninguémsemetemaisaquicomosenhor,nemcommulhersua...Vãolherespeitar...

ManecaDantasbateunoombrodeVirgílio,paraeleeraacoisamaissimplesdomundo:

—Nãocustanadadizercincopalavras...Horácioconcluiu:—Gostodosenhor,doutor,éumhomemdesaber.Masaquinessas

terras,osabersónãoadiantapraninguém,seudoutor...Virgíliobaixouacabeça.OcoroneliamandarmatarJuca,masqueria

quefosseelequemdesseaordemaojagunço,assimeleentrariaparaoroldos homens valentes de Ilhéus. Pensou em Ester na outra sala, fazendocroché,roídadeciúmes.Sonhavavivercomela,partirparaoutras terras,uma terra civilizada, onde a vida humana valesse alguma coisa. Ir para

longe dali, daquelas matas, daqueles povoados, daquela cidade bárbara,daquela sala onde os dois coronéis lhe aconselhavam para seu bem —para seu bem que ele mandasse matar um homem. Fugir com Ester eseriamoutrasasmanhãsdecadadia,maisbelasas tardes,asnoitessemoutrosqueixumesqueosaisdeamor.Noutrasterrasdistantes...

AvozdeHoráciovoltavaaatravessarogabinete:—Seresolva,doutor...

4

As chuvas longas do inverno eram pesadas, a água cantava nostelhados, escorria pelos vidros da janela. O vento do mar sacudia asárvoresdoquintal derrubando as folhas e os frutos verdes. Ester fechouos olhos e viu a folha voando, rodando loucamente no ar, os pingos dechuvaseacumulandosobreela, fazendo-apesada,derrubando-anochão.Essavisãolhedeufrioeaindamaissonoeelaseapertoucontraoamante,aspernasen iadasporentreasdele,a cabeçanoseupeito largo.Virgíliobeijouos cabelos formososdamulher,depois cobriumansamente comoslábiososolhosdepálpebrascerradas.Esterestendeuobraçonu,cingiuacinturadoamante.Osonovinhachegando,cadavezmaispesado,ocorpocansadodaviolênciadaposserecém-terminada.Virgílio tentouconversarainda, contar-lhe casos, a voz apressada e nervosa. Queria que ela nãodormisse,quelhe izessecompanhia.Erameia-noiteeachuvanãoparava,cadavezmais forte, comelavinhao sonoqueamoleciao corpodeEster.Virgíliofalava,relatava-lhecasosacontecidoscomelequandoestudantenaBahia.Faloumesmoemoutrasmulheresquehaviampassadoemsuavidapara ver se assim ela despertava, reagia contra o sono. Ester respondiapormonossílabos, terminouporvirardebarrigaparabaixonocolchão,orostoescondidonotravesseiro.Aindamurmurou:

—Conte,amor...Maselelogoviuqueelaestavadormindoeentãosentiutodoovazio

das palavras que dizia, frases sobre a vida na Faculdade. Vazias,totalmente vaziasde sentido e de interesse.As gotasde chuva escorriampelo vidro da janela, Virgílio pensou que eram como lágrimas. Devia serbompoderchorar,deixarqueosofrimentosaíssepelosolhos,escorressepelo rosto... Era assim que Ester fazia. Quando soubera que ele dançaracomMargotnocabaré,eladeixaraqueaslágrimascorressempelorosto,edepois lhe fora muito fácil escutar as explicações de Virgílio, acreditar

nelas. Muita gente era assim, se consolava com as lágrimas. Mas Virgílionãosabiachorar.Nemmesmoquandoreceberanaruaanotíciadequeopaimorrerano sertão, de repente.Equeria aopai com loucura, sabiadosacri ícioquecustavaaovelhomantê-lonosestudos,sabiadoorgulhoqueopaisentiaporele.Nemnessediachorara.Ficaracomumnónagarganta,paradonarua,ondeoconhecidolheentregaraacartadatiacomanotícia.Umnó na gargantamas nenhuma lágrima nos olhos secos, terrivelmentesecos, tão secos que ardiam. Nenhuma lágrima... Pelos vidros da janelaescorremas lágrimasdachuva,umaatrásdaoutra.Virgíliopensouqueanoite chorava pelosmortos todos daquela terra. Erammuitos, sómesmoum temporal de chuva pesada para atender a tantamorte violenta! Quefazia ele naquela terra, por que viera para ali? Agora era tarde, haviaEster,só iriaemboracomela.Quandoviera,aambiçãoenchia-lheopeito,via rios de dinheiro, uma cadeira no parlamento, um futuro político, elemane)andotodaessazonafértildocacau.Nosprimeirostempossópensounissoetudoiabem,tudocomoeledesejara:ganhavadinheiro,oscoronéiscon iavamnele, tinhaêxitocomoadvogado,eaquestãopolíticamarchavabem,ogovernoestadualseafastavacadavezmaisdofederaleeracerto,para quem tivesse visão, que não tinha possibilidades de se manter nopoder nas próximas eleições. Ou talvez mesmo caísse antes. Havia, naBahia, quem falasse em intervenção federal no Estado. Os seus chefesestavam no Rio tramando negociações, haviam sido recebidos peloPresidente da República, a situação se esclarecia cada vez mais, haviagrandespossibilidadesdequeelefossecandidatoadeputadonaseleiçõesdoanoseguinte,e,sehouvesseamudançapolítica,nãorestavamdúvidasquantoàsuaeleição...

MasapareceraEsteretudoaquilodeixoudeterimportância.Sóelaimportava,seucorpo,seusolhos,suavoz,seusdesejos,seucarinhoporele.A inal podia também fazer carreira desde o Rio, este havia sido seupensamentoinicialquandoseformaraemDireito.Searranjasseumlugarnumescritóriodeadvocaciadeboaclientela,nãotardariaairparadiante,aqueles tempos em Tabocas e Ilhéus de muito lhe haviam servido.Aprendera mais naquele ano e oito meses que nos cinco de Faculdade.Costumavamdizer que "advogadode Ilhéus" podia advogar emqualquerlugardomundoeeraverdade.Alitodasassutilezasdapro issãosefaziamnecessárias, o conhecimento completodas leis e damaneiradeburlar asleis.EmqualquerparteVirgílioteria,semdúvida,grandesfacilidadesparatriunfar, não era em vão que, em Ilhéus, o consideravam já um dosmelhores advogados do foro. E claro que não seria tão fácil e tão rápido

quanto ali, onde já tinha nome feito e carreira política iniciada. Rápido efácil...Virgíliodemorounasduaspalavrasquepensara.Rápido,podiaser.Fácilnãoera...Seriafácil,poracaso,terquemandarmatarhomensparasefazer respeitado? Para poder subir no conceito de todos, poder fazercarreira política? Não era fácil... Pelo menos para ele, Virgílio, educadonoutra terra,noutroscostumes, comoutrossentimentos.Paraoscoronéisdali, para os advogados que haviam envelhecido naquela terra também,para eles era fácil, para Horácio, para os Badarós, para Maneca Dantas,para o Dr. Genaro com toda sua cultura pernóstica e sua seriedade dehomem que não frequentava casa de mulher da vida. Mandavam matarcomo mandavam podar uma roça, ou tirar uma certidão de idade nocartório. Sim para eles era fácil e Virgílio nunca havia se demorado emconsiderar o estranho desse fato. Só agora olhava comoutros olhos paraesteshomensrudesdasfazendas,essesadvogadosmanhososdacidadeedos povoados, que calmamente, mandavam cabras esperar inimigos naestrada,portrásdeumaárvore.Suaambição,primeiro,oamordeEstereodesejodepartircomeladepois, izeramcomqueelenuncaselembrassede re letir sobre o terrível daqueles dramas que eram o quotidianodaquelaterra.Foraprecisoqueelesevisseobrigadoaterquemandar,eletambém,matarumhomem,parasentiradesgraçadaquilotudo,oterríveldaqueles fatos, o quanto aquela terra pesava sobre os homens. Ostrabalhadores nas roças tinham o visgo do cacau mole preso aos pés,virava uma casca grossa que nenhuma água lavava jamais. E eles todos,trabalhadores, jagunços, coronéis, advogados, médicos, comerciantes eexportadores, tinham o visgo do cacau preso na alma, lá dentro, nomaisprofundo do coração. Não havia educação, cultura e sentimento que olavassem. Cacau era dinheiro, era poder, era a vida toda, estava dentrodeles,nãoapenasplantadosobreaterranegraepoderosadeseiva.Nasciadentrodecadaum, lançavasobrecadacoraçãoumasombramá,apagavaossentimentosbons.VirgílionãoestavacomódionemdeHorácionemdeManecaDantas,muitomenosdonegroquesorriaquandoelelheordenaratocaiar Juca Badaró nessa noite de quinta-feira que tanto custa a passar.Tinhaódioeradocacau...Serevoltavaporquesesentiadominado,porquenão tivera forças para dizer não e deixar que Horácio sozinho fosseresponsável pela morte de Juca. Não sabia mesmo como aquela terra,aquelescostumes,tudoquenasciajuntocomocacau,sehaviamapossadodele.Umavez emTabocas esbofetearaMargot e foi quando sedeu contade que havia outro Virgílio que ele não conhecia, não era o mesmo dosbancos acadêmicos gentil e amável, ambicioso, mas risonho, tendo pena

das desgraças alheias, sensível ao sofrimento. Hoje era um homem rude,emquesediferenciavadeHorácio?Eraigualaele,ossentimentoseramosmesmos.QuandoconheceraEster,pensavaqueiasalvá-ladeummonstro,de um ser abjeto e torpe. Mas que diferença havia? Eram os doisassassinos,mandantesdecapangas,viviamosdoisemfunçãodocacau,doourodosfrutosdoscacaueiros.

A esta hora—pensaVirgílio— Juca já terá recebido o tiro e seráapenas um cadáver a mais nas estradas do cacau, não será, como osoutros, enterrado junto a uma árvore, uma cruz tosca lembrando oacontecimento.Jucaéfazendeiroimportante,ocorpoviráparaIlhéus,seráenterrado com grande acompanhamento, Dr. Genaro deitará discurso nocemitério,comparará Jucacom igurashistóricas.TalvezopróprioVirgíliová ao enterro, não é um fato novo nessas terras que o assassinoacompanheocaixãodavítima.Dealgunscontamqueatépegaramnaalçado caixão, o ar triste, a roupa negra de cerimônia. Não, ele não irá aoenterrodeJuca,comopoderá itarorostodedonaOlga?Jucanãoeraumbommarido,viviametidocommulheres,jogandopeloscabarés,masaindaassimdonaOlgahádechoraredesofrer.Como itá-lanahoradoenterro?Não,oqueeletinhaafazererairembora,viajarparalonge,ondenadalherecordasse Ilhéus, o cacau, as mortes. Onde nada lhe recordasse aquelanoite na casa de Ester, no gabinete do coronel, quandoVirgílio disse quechamasse o cabra. Por que dissera sim, se não porque estavairremediavelmente ligadoàquelaterra,odesejode levarEsterpara longenão eramais queum sonho, que se adiava sempre? Ligado àquela terra,esperando, ele também, plantar roça de cacau, esperando no fundo queHorácio morresse naqueles barulhos de Sequeiro Grande e ele pudessecasarmEster.Sóagoratambémsedácontadequeessefoiumdesejoqueestevesemprenoseucoração,queesperoucadadiaanotíciadamortedocoronel, derrubado por uma bala de umhomemdosBadarós... EnquantoplanejavaumempregonoRio,ganharmaisdinheiroparapartir,enquantoencontrava argumentos para demorar a fuga com Ester, estava apenasesperandoaquiloqueconsideravafatal:queosBadarósmandassemmatarHorácio e assim terminar com o problema. Certa vez pensara nisso eprocurou depois esquecer esse momento. Pensara que se acontecesseHorácio morrer ele aconselharia a Ester a entrar num acordo com osBadarós para a divisão da mata de Sequeiro Grande e a terminação daluta. Naquela tarde enganara a si mesmo dizendo que pensava no fatocomoumacontecimentoprovávelquenãopodiafaltarnosseuscálculosdeadvogado da família. Mas agora, na cama, olhando as lágrimas da chuva

que deslizavam na janela, ele confessa que não tem feito nesses mesesoutracoisaqueesperaranotíciadamortedeHorácio,umtironopeito,umcabraquefoge...Sim,nadamaislherestaqueestaperspectiva.Agoranãopode mais fugir daquela terra, agora está de initivamente ligado a ela,ligadoporumcadáver,por JucaBadaróqueelemandoumatar...Agoraéesperar que, mais dia menos dia, chegue a vez do tiro de Horácio, doenterro dele. E então terá Ester e terá as propriedades e a mata deSequeiroGrande também.Será ricoe respeitadochefepolítico,deputado,senador, o que quiser. Falarão mal dele nas ruas de Ilhéus mas ocumprimentarão servilmente? se curvarão diante dele. Não havia outrojeito... Não adiantava pensar em fugir, em ir para longe, em recomeçar avida. Para onde quer que fosse levaria consigo a visão de Juca Badarócaindodocavalo,amão tapandoa ferida,visãoqueVirgíliov re letidanovidro da janela onde a água corre. V através de seus olhos, secos, semlágrimas, pensa que seco está seu coração também, coberto pela sombradocacau.

Não adiantamais pensar em fugir, agora seus pés estão presos aovisgodaquelaterra,visgodecacaumole,visgodesanguetambém.Nuncamaisserápossívelsonharoutravidadiferente.Agoraeleeratambémumgrapiúna, de initivamente um grapiúna. "Não é mais possível sonhar,Ester."

Seus olhos secos, suas mãos tremulas, seu coração doído. Esterressonananoite frescade chuva.Nessanoite dequinta-feira, na estradade Ferradas, umhomemderrubou JucaBadaró do seu cavalo. Virgílio seabraçaámulher.Éstersemiadormecidasorri:

—Agoranão,amor.Eaangústiaaumenta,elevestearoupaquasecorrendo,senteuma

necessidade de deixar que a chuva caia sobre ele sobre sua cabeçaardente, lave suasmãos sujas de sangue, lave seu coraçãomanchado. Seesquece de descer em passos cuidadosos para não acordar asempregadas. E sai pelo quintal, no leito da estrada de ferro arranca ochapéuedeixaqueachuvaescorrasobreoseurosto,comosefossemaslágrimasqueelenãochorou.

5

Masnãohaviamotivonempara tamanha angústiadeVirgílio, nempara a alegria que Dr. Jessé pensava descobrir no rosto de Horácio que

pousavanaquela noite em sua casa emTabocas.O coronel, desdeque osbarulhosdeSequeiroGrandehaviamcomeçado,desistiradeviajarànoite,pelas estradas, apesar dos homens que o acompanhavam. Como nãopuderaseguirparaafazendaàtarde,algunsnegóciosohaviamretidoemTabocas,deixouparasairnamanhãseguinteesedivertiuno imdatardeassistindo às consultas doDr. Jessé. Ficara no consultório domédico queatendia aos enfermos. E, como quase todos eles eram conhecidos eeleitoresseus,Horácionãoestavaperdendotempo.Tinhaumafraseparacada um, perguntava pelos negócios, pela vida, pela família. Sabia seramável quando queria, e naquele dia se sentia particularmente alegre,alegria que aumentava à proporção que a tarde caía. Da janela doconsultório, ele vira JucaBadaró, debotas e esporas, andandopelas ruasde Tabocas, saindo da loja de ferragens de Azevedo. Sorriu satisfeito,demorouolhandoa iguranervosadoinimigo.Aestahoraocabraqueelemandaraestaria andandoparaa tocaiano caminhodeFerradas.CustaraaoDr.Virgíliodecidir.Horáciogostavadoadvogadoeestavacertodequelhe prestava um verdadeiro favor ao lhe dar a fama, sem os perigos, daliquidaçãodeJucaBadaró.SaiudajanelaparacumprimentaramulherdeSílvio Mãozinha, dona de uma pequena propriedade para os lados dePalestina,umdosbraços fortesdeHorácionaquela zona.AmulhervinhaembuscadoDr.Jessé,haviabaixadodaroçanessedia,trazendoomaridoqueseconsumiadefebre.Paravamnacasinhaquepossuíamdooutroladodo rio. Amulher estava alarmada com o estado domarido. Fora precisotraze-lonumarede,Sílvionãoaguentaramontar.

Horácio acompanhou o Dr. Jessé, ajudou a suspender o doente nacama enquanto o médico examinava. Ofereceu seus préstimos à mulher,perguntou se ela não precisava de dinheiro. Dr. Jessé sabia que Horácioeraamávelcomseuseleitores,comseusamigos,masachavaquenessediaeleestavaexagerando.Poisseocoronelaténãoquissair, icouajudandoamulher a pôr o urinol para o doente, a mudar-lhe a roupa pegajosa desuor,alhedarremédiosquehaviammandadobuscarnafarmácia!Aosair,Dr.Jessépuxouocoronelparaumlado,lheavisou:

—Éumcasoperdido...—Nãomediga.Omédiconãotinhaesperança:— Essa febre se não se atalha logo, não adianta. Ele não passa de

hoje. E o senhor deve vir comigo e tomar um banho, lavar asmãos comálcool.Essafebrenãobrincaparapegar...

Mas Horácio rira e se demorara na casa de Sílvio até a hora do

jantar,prometendovoltardepois.Esóantesdesentaràmesaéquelavouasmãos,rindodosreceiosdoDr. Jessé,dizendoquea febreorespeitava.Dr.Jessésedemorouemexplicaçõescientíficas,aquelafebredesconhecidaera uma das suas preocupações. Matava em poucos dias, não haviaremédioparaela.MasnadaalteravaaalegriadeHorácionessanoite.Tãoalegre estava que voltou à casa de Sílvio para ajudar ao doente. E foi elequemveiocorrendochamaroDr. Jessénahoraemqueohomementrouemagonia.Nocaminhoavisouaopadre.QuandochegaramSílviojáestavamorto,amulherchoravapeloscantos.HorácioselembrouqueàquelahoraJucaBadarójáestaria

tambémmorto,estiradonaestrada,osolhosabertose ixoscomoosdeSílvio.Ofereceuàviúvapagarasdespesasdoenterroeajudouamudararoupadomorto.

Mas a verdade é que Horácio se alegrava sem motivo e Virgíliosofriatambémsemmotivo.Omotivodessaalegriaedessesofrimento,JucaBadaró, cavalgava para a fazenda, na estrada tinha icado o cadáver dohomemque foraesperá-lona tocaia.E, dobradonoburroquemontavaequeeralevadopelarédeaporVirgílio,iaAntónioVítorferido,quesalvara,pela segundavez, avidado seupatrão.Destavezporacaso.Quando jáocabranatocaiapreparavaasuarepetiçãoparaotiro,oouvidoatentoaospassos da cavalhada que se aproximava, os olhos itos no cavaleiro quevinhanafrenteeemquemelereconheceraJucaBadaró,quandoohomemia levar a repetição ao ombro para irmar a pontaria, António Vítorperceberaumrumor levíssimoao ladodaestrada,e,pensandoque fossealguma paca ou algum tatu, dirigiu o burro para dentro do roçado, orevólvernamãoparalevaracaçamortadepresenteparaDon'Ana.Viuocabra levantando a arma. Atirou imediatamente,mas errou. O homem sevoltouentãoparaele,eacertouotironapernadeAntónioVítorquesónãoorecebeunopeitoporqueestavasaltandodoburro.Comoruídodostiros,JucaeViriatoseaproximarameocabranãotevetempodefugir.Antesdematá-loeantesmesmodeatenderaAntónioVítor, Jucaapertouohomemcomperguntas:

—Digaquemfoieeulhedeixoirempaz...Ocabraconfessou:—FoiDr.VirgíliomaisocoronelHorácio...Quandoelejáseafastava,Viriatosuspendeuarepetição,oclarãodo

tiro iluminou a noite, o homem caiu para a frente. Juca, que estavaamarrando a perna de António Vítor com um trapo arrancado da suaprópriacamisadeseda,aoouvirotiro,selevantou:

—Nãodissequeelepodiairempaz?—gritouirritado.Viriatosedesculpou:—Eumdemenos,patrão...—Eudevialheensinarameobedecer.Quandoeudigoumacoisaé

paraelaserfeita.PalavradeJucaBadarónãovoltaatrás.Viriatobaixoua cabeça semresponder.Andaramatéohomem,ele

acabavademorrer.Jucafezumacaretadeaborrecimento:—Venhaajudar—disseaViriato.Puseram António Vítor em cima do burro, Viriato tomou da rédea,

seguiramapasso.Assimchegaramàfazenda,ondeasplacasdequeroseneainda acesas revelavam a inquietação de Sinhô que esperava o irmãomuito mais cedo. Saíram todos para o terreiro, vieram jagunços etrabalhadores, ajudaramAntónio Vítor a desmontar. Havia uma confusãodeperguntas,degentequeseapertavaparaatenderaoferido.OpróprioSinhôBadarópegounosombrosdeAntónioVítorparalevá-loparadentro.Deitaram-no sobre um banco. Don'Ana gritou por Raimunda pedindoálcoolealgodão.Aoouvironomedamulata,AntónioVítorvoltouacabeça.E somente ele e Don'Ana notaram que as mãos de Raimunda tremiamquando ela entregou o pacote de algodão e a garrafa de álcool. Ficoudepois ajudando Don'Ana nos curativos (a bala apenas rasgara a carne,sem atingir nenhum osso) e suas mãos rudes e pesadas se tornaramdelicadas e ternas, também elas eram suaves mãos de mulher. ParaAntónioVítorerammuitomaisdoces,ternasesuaves,queasmãoslevesefinasdeDon'AnaBadaró.

6

Namanhãdesolclaroebrando,amulataRaimundaentrounacasados trabalhadores. Trazia uma garrafa de leite, trazia pão que Don'Anamandava para António Vítor. A casa estava vazia, os trabalhadoresandavam pelas roças colhendo cacau. António Vítor dormia um sonoinquietodefebre.Raimundaparouaoladodacama,contemplouohomemquedormia.Apernaamarradadecurativosaíadebaixodacolchavelha,mostrando o pé enorme, coberto de visgo de cacau que havia secado.Nessatarde,elenãoaesperarianabeiradorioparaajudá-laalevantaralatad'água.Raimundasentemedo.Seráqueelevaimorrer?SinhôBadaródissequeaferidaésemimportância,que,comtrêsouquatrodias,AntónioVítor estará de pé pronto para outra. Mas, ainda assim, Raimunda tem

medo e, se o negro Jeremias não tivesse morrido, ela se atreveria aatravessar a mata e ir em busca de um remédio do feiticeiro. Aqueleremédiodefarmácia,queestáaoladodojiraudodoenteequeelatemquelhedaragora,nãomereceacon iançadeRaimunda.Elasabeumaoraçãocontra febre emordidade cobraque suamãe lhe ensinouna cozinhadacasa-grande. Junta os joelhos no chão e reza, antes de acordar AntónioVítorparalhedaroremédio:

"Febre maldita, três vezes te enterro nas profundezas da terra. Aprimeira emnomedo Padre; a segunda emnomedo Filho; a terceira doEspiritoSanto;comasgraçasdaVirgemMariaeadeTodososSantos.Teesconjuro, febremalditaemandoque tuvolteprasprofundezasda terradeixandomeu...”

Segundo a negra velha Risoleta ao chegar aí era preciso dizer oparentescododoentecomapessoaquepedia:"meuirmão","meumarido","meu pai", "meu patrão. Raimunda icou um instante indecisa. Talvez senão fosse tãogravee seelenãodormisse, talvezamulataRaimundanãocontinuasseaoração:

“...deixandomeuhomemcuradodetodososmales,amém".Acordou António Vítor. Seu rosto estava novamente zangado, seus

modosbruscos:—Ehoradoremédio.Segurouacabeçadelesobseubraçoroliço.AntónioVítorengoliua

colherada damedicação, olhava Raimunda com os olhos febris. Amulataandou para aquilo que era chamado de fogão: três pedras emmeio dasquais estavam umas brasas apagadas e uns pedaços de madeira meioqueimados.Emcima,uma lata comumpoucodeágua. Jogouaágua fora,derramouoleitenalata,acendeuofogo.AntónioVítoraacompanhavacomosolhos.Nãosabiacomocomeçar.Raimundaacocorou-seaoladodofogo,esperandoqueoleitefervesse.AntónioVítorsedecidiuechamou:

—Raimunda!Elavirouacabeça,olhando.—Vemcá.Veiodemávontade,compassospequenos,demorados.—Senteaqui—pediuelefazendolugarnojirau.—Não.AntónioVítorolhouparaamulata,reuniuforças,perguntou:—Tuquercasarcomigo?Ela icoumaiszangadaainda.Fechouorosto,asmãospegavamnas

pontasdasaia,olhavaochãodebarrobatido.Nãorespondeu,correupara

oleitequefervia:—Quasederrama.António Vítor se derreou na cama, cansado do esforço. Ela agora

ferviaáguaparaocafé,servianumacaneca,molhouopãoparaelenãotertrabalho.Depoislavouacaneca,apagouofogo:

—Nahoradoalmoçoeuvolto.AntónioVítornãodizianada,sóaolhava.Antesdesair,elaparoude

novoanteele,osolhosnovamentenochão,novamenteasmãosocupadascomasaia,orostozangado,zangadaavoztambém:

—SepadrinhoSinhôdeixar,euquero,sim...Edesapareceupelaporta,AntónioVítorsentiuafebreaumentar.

7

JucaBadaróacabaradecombinarcomSinhôosúltimosdetalhesdaderrubada da mata. Na segunda-feira começariam. Já haviam sidoescolhidos os homens, os que iam derrubar a loresta, iniciar asqueimadas, e os que iam garantir, com suas repetições, o trabalho dosoutros.

—Segunda-feirametocopramata...Sinhôestavasentadonasuaaltacadeiraaustríaca. Jucaaindatinha

oquedizer,Sinhôesperava:—BomcabocloesseAntónioVítor...—Eboacoisa...—assentiuSinhô.Jucariu:— Essa gente é engraçada. Fui lá conversar com ele. E a segunda

vezqueelemetiradeumapuro...PrimeirofoiemTabocas,tulembra?—Melembro...— Ontem, de novo. Fui lá perguntar o que ele queria. Disse que

pensava em lhe dar aquele pedaço de terra que restou da queimada doano passado e que não foi plantado ainda. Nos lados do Repartimento.Terraboa,alidáumaroçagrande.Sabeoqueeledisse?

—Quefoi?Jucariudenovo:— Disse que só queria uma coisa. Que tu deixasse ele casar com

Raimunda.Ora, jáseviu...Temcadauma...Voudar terraaodesgraçadoeeleprefereessabruxahorrorosa...Euprometiquetuiaconsentir...

SinhôBadarónãofezobjecções:

—Equando ele casar ica com a terra também.Quando tu for emIlhéusdeordemaGenaropraregistrarnocartório.Eummulatobom...ERaimunda também tem direito, prometi a nosso pai que não deixaria eladeserdadaquandoelafossecasar.Doumeuconsentimento.

IalevantaravozchamandoRaimundaeDon'AnaparadaranotíciaquandoumgestodeJucaofezparar.

—Equeeutenhooutropedidodecasamentoafazer...—Outro?TuagoravirouSantoAntóniodostrabalhadores?—Dessaveznãoétrabalhador,não...—Equemé?Jucaprocuravaumamaneiradeentrarnoassunto:— E engraçado... Raimunda e Don'Ana são da mesma idade,

mamaram as duas nos peitos da negra Risoleta... Cresceram juntas, erabomquecasassemjuntas.

— Don'Ana? — Sinhô Badaró apertou os olhos, passou a mão nabarba.

— E o capitão JoãoMagalhães.Me falou agora em Ilhéus :. Pareceumhomemdireito...

SinhôBadarófechouosolhos.Quandoosreabriu,falou:— Já tava vendo que ia dar em coisa... Bem que vi Don'Ana toda

assanhadanoladodocapitão.Aquienáprocissão...—Quetuacha?Sinhôrefletia:'—Ninguémconheceeledireito...Dizqueénãoseiquantacoisano

Rio,quefazeacontece,masninguémconheceeledireito.Tuquesabe?—Nãoseimaisquetu:Masachoquenãotemnada.Aquitudoéde

novo,Sinhô,tubemsabe.Aquitudocomeçaedepoiséquesevaimedirohomem.Pratrás,quemsabeoque icou?Oquetáprafrenteéquevale.Eo capitão me. parece um homem capaz de se jogar nessa vida comcoragem...

—Podeser...—Mediuasterrassemterregistrodotítulodele,euseiquefoipelo

dinheiro,não foiporamizade.MasDon'Anaelenãoquerpelodinheiro, époramizade.Euconheçoaspessoastãobemcomoconheçoasterras...Eletá querendo casar, pode ser que não tenha um vintém, seja limpo, e vácomeçar. Mas vai com coragem, é melhor que outro que queira edescansar...

Sinhô re letia, os olhos semicerrados, as mãos alisando a barbanegra.Jucacontinuou:

— Tem uma coisa, Sinhô. Tu só tem essa ilha, eu não tenho ilhonenhum, a não ser na rua, ilho que não levameu nome. Olga não servepraparir,omédico jádisse.Umdiadesseeu icoderrubadocomumtiro,tu sabe que vai ser assim. Inimigo me sobra... Não vou chegar no imdessesbarulhos...E,depois,quandotutivervelho,qualéoBadaróquevaicolhercacau,quevaielegerointendentedeIlhéus?Qualé?

Sinhônãorespondia,Jucacompletou:— Ele é um homem como a gente... Quem sabe se não é só um

jogador?Talvezqueseja, jámedisseram.E isso tudoéum jogo, jogocombarulhono im,agenteprecisadeumhomemassim...Umquepossatomarmeulugarquandomeliquidarem.

Andou pela sala, pegou do rebenque que estava sobre um banco,batianasbotas:

—Tu podia casar ela com um doutor, que adiantava? Ia comer oslucrosdocacau,nuncamaisplantavaraça,nuncamaisderrubavamata.Iagozarpelomundooquenuncagozou.Ocapitãojáfezissotudo,agoraqueréplantarroça.oissoéqueachobom...

Raimunda entrou na sala para varre-la, um gesto de Sinhô aexpulsou.Jucanarrava:

—Disseaele:só temumacoisa,capitão.QuemcasarcomDon'Anatemquelevaronomedela.Éaocontráriodetodomundoqueohomemdáonomeámulher.QuemcasarcomDon'AnatemquevirarumBadaró...

—Eelequedisse?—Primeironãogostou,não.DissequeosMagalhães tinhamfeitoe

acontecido.Depois,quandoviuquenãotinhajeito,dissequesim.SinhôBadarógritouparadentro:—Don'Ana!Raimunda.Venhamcá!Chegaram as duas. Don'Ana parecia descon iada do que

conversavam seu pai e seu tio. Raimunda trazia a vassoura na mão,pensava que a chamavam para varrer a sala. E foi a ela que Sinhô sedirigiuprimeiro:

— António Vítor quer casar com você... Eu disse que sim. Dou asterrasquetãoportrásdasroçasdoRepartimentodedote.Tuquer?

Raimundanãovinhaparaondeolhar:—Sepadrinhoachabom...—Entãovásepreparandoprocasamento.Vaiserlogopranãodar

tempodeseperderantes...Podeirpradentro.Raimunda saiu. Sinhô chamou Don'Ana para mais perto da sua

cadeira.

—Mandarampedirtambémtuamão,minha ilha.Jucaachabom,eunãoseiqueachar...Foiessecapitãoqueteveaqui...Quetuacha?

Don'Ana estava igual a Raimunda na frente de António Vítor. Osolhosnochão,asmãosnasaia,semjeitoparafalar:

—FoiocapitãoJoãoMagalhães?—Essemesmo.Tugostadele?—Gosto,sim,pai.SinhôBadarócofiouabarbalentamente:—PegueaBíblia,vamosveroqueeladiz.EntãoDon'Ana tirouosolhosdochão,asmãosdasaia, suavozera

forteedecidida.— Diga o que disser, meu pai, eu só me caso com um homem no

mundo:écomocapitão.Mesmoquesejasemsuabênção...Disseesejogouaospésdopai,abraçandosuaspernas.

8

Dr. Jessé largou a representação no meio, os amadores do GrupoTaboquense icaram sem seu diretor que era também o ponto. Issoestragou um pouco o espetáculo já que alguns artistas não sabiamperfeitamente as suas partes, declamavam com a ajuda do ponto. O quenão teve grande importância, porque a população de Tabocas pouco sedemorouacomentararepresentaçãode"VampirosSociais", inteiramenteentregue que icou á comoção da notícia trazida pelo homem que vierabuscaroDr.Jessé:Horácioestavadoente,derrubadopelafebre.Dr. Jesséabandonara o espetáculo pelo meio, reunira na maleta medicamentosváriosemontaraemseguida.O cabraoacompanhou,masanotícia icou,correu pelas ilas de espectadores de boca em boca. E, no outro dia,quando às onze horas Ester desembarcou do trem e, na estação, semalmoçar sequer,montou no cavalo que a esperava, cercada pelos cabrasque haviam vindo buscá-la, já toda Tabocas sabia que Horácio pegara afebrequandoatendiaaSílvioquemorrerafaziatrêsdias.AviúvadeSílvioiniciava uma novena pelo restabelecimento de Horácio "um homem tãobom", dizia. Virgílio acompanhara Ester até Tabocas, indiferente aoscomentários,masnãofoiparaafazendadeHorácionessedia.Subiriaseocoronel piorasse. Agora ele também usava revólver, desde que souberaque Juca Badaró escapara da tocaia. Tabocas vivia na espera de cadaportadorquechegavadafazendaembuscaderemédios.Oconsultóriodo

Dr.Jesséestavafechadoesuaesposaavisavaaosclientesqueo"doutorsóvoltariaquandoocasodocoronelHorácio tivessesedecidido".FrasequeeratraduzidapelosmoradorescomoumavisodequeDr.Jessésóvoltariaacompanhando o cadáver de Horácio, pois ninguém escapava daquelafebre.Citavamcasos,eraminúmeros,trabalhadoresecoronéis.doutoresecomerciantes.Circulavammaisumavez,entreasbeatas,aquelashistóriasdodiabopresonumagarrafasaindoumdiapara levarconsigoaalmadeHorácio. Diziam que Frei Bento já viajara de Ferradas para a fazenda,levandoaextrema-unçãoparaHorácio,prontoparaconfessá-loeabsolve-lodospecados.

Mas Horácio não morreu. Sete dias depois a febre começou adiminuir até cessar completamente.MaisqueasmedicaçõesdoDr. Jessé,talvez o tenha salvo o seu corpo forte, de homem sem vícios e semenfermidades,deórgãosperfeitos.E,mala febrecomeçouaabandoná-lo,eleordenouqueseushomensiniciassemaderrubadadamatadeSequeiroGrande.Virgílio foichamadoà fazenda,ocoronelqueriaconsultá-losobredetalhesjurídicos.Vieraantesumavez,ocoroneldelirava,suafebrecheiadevisõesdecacau,matassederrubando,roçasqueeramplantadas.Davaordens aos gritos, plantava e colhia cacau no seu delírio. Ester nãoabandonavaacamadoenfermo,estavamagra,eradeumadedicaçãosemlimites.QuandoVirgíliochegara,daprimeiravez,elaapenaslheperguntousesabianotíciasdo ilhoque icaraemIlhéus,elenãoconseguiuquasevê-lasó.Equandoaviueabeijou,foiporummomento,quandoelavoltavadacozinhaparaoquartocomumabaciadeáguaquente.PoucosefalavameVirgílio sofrera como se tivesse sendo traído. Mas também ele tinha osolhos cobertos por certa inquietação, se sentia culpado da doença deHorácio, da sua morte que encontrava inevitável, como se o coronelhouvesseadoecidodevidoaosseusdesejos.CompreendiaqueEstersentiaamesmacoisa,mas,aindaassim,aquilolhedoíacomoumatraição.

QuandoHorácio, já foradoperigo;omandouchamar, eleprocurouse mostrar triste como Ester, tinha a isionomia cansada e abatida. Noquarto onde, sobre os alvos lençóis, o coronel estava vestido com o seucamisolão,Estersedestacava,sentadanacama,umamãodeHorácioentreassuas.Horácionuncasesentiratãofelizcomono imdessafebre,quelheprovara a dedicação da esposa. E isso o fazia ativo, dando ordens não sóaos trabalhadores como a Maneca Dantas e a Braz que, naquele dia, ohaviamvindovisitar.Virgílioentrounoquarto,abraçouocoronelporcimadacama,apertou friamenteamãodeEster, abraçouManecaDantas,deuosparabénsaJessé"peloseumilagre".MasHorácioriu:

— Abaixo de Deus quem me salvou foi essa aqui, seu doutor —mostravaEsteraoseulado.

DepoissedesculpavacomoDr.Jessé.— É claro que o compadre fez tudo, remédio, tratamento, o diabo.

Massenãofosseelaquenãodormiuessetempotodo,eunemsei...Ester levantou-se, saiu do quarto. Virgílio, sem o notar, ocupou o

lugarqueeladeixaravagonacama.Sentou-sesobreocalorquerestaradaamante e uma súbita raiva de Horácio tomou conta dele. Não morrera...Virgílio deixou por ummomento que os seusmais remotos e escondidospensamentos viessem até seu coração.Nãomorrera... Ah! se ele pudessemandarmatá-lo...

Durantealgunsminutosnemprestouatençãoaoqueconversavam,todoentregueaosseuspensamentos.FoiprecisoumaperguntadeManecaDantasparachamá-loàconversa:

—Queacha,doutor?Encontrou Ester, depois para os lados da barcaça. Ela se abraçou

nele,soluçava:—Tunãoachasqueeudevia fazerassim?Nãopodia serdeoutro

modo.Secomoveu,acariciouocorpoamadoporcimadosvestidos.Beijou-

lheosolhos,asfaces,interrompeualarmado:—Tuestáscomfebre!Eladissequenão,eracansaço.Beijou-omuito,pediu-lheque icasse

naquelanoite,elaconseguiriairaoquartodelenassuasidasevindaspelacasa,atendendoaodoente.Eleprometeu,comovidoesaudosodascaríciasdela, só adeixouquandoviramogrupode trabalhadoresquevinhapelaestrada.

Mas, na hora do jantar, Ester já não suportou estar ali sentada,comendo. Se queixou de arrepios de frio, saiu às pressas para vomitar.Virgíliovoltou-semuitopálidoparaoDr.Jessé:

—Elapegouafebre.Omédicose levantou,andouparadentro,Esterestava trancadana

latrina. Virgílio se levantou também, pouco se importava com ManecaDantas e com Braz. Ficou ao lado do médico no corredor. Ester abriu aporta,seusolhosardiam,Virgíliopegounobraçodela.

—Estássentindoalgumacoisa?Elasorriumeigamente,apertoudeleveamãodele:—Nãoénada,não.Sóquenãoaguentoempé.Voudeitarumpouco.

Depoisvolto...

AindadeuumaordemaFelícia, entrouparaoquartoondeVirgíliodormiranaquelanoitedistantedasuaprimeiravisitaàfazenda,deitounacama, ele icou olhando do corredor. Dr. Jessé entrou também, pediulicença, fechou a porta do quarto. Em frente, Horácio queria saber quemovimentoeraaquele.Virgílioentrounoquartodocoronelanuncioucomvozentrecortada:

—Elapegouafebretambém...Quis dizermais alguma coisa e não pode, icou olhandoHorácio. O

coronel arregalou os olhos, a boca semiaberta, também ele queria dizeralgumacoisaetambémelenãopodia.Estavacomoumhomemquerolassesolto no ar e não visse nada em que se pegar. Virgílio teve vontade deabraçá-lo, de se lastimar com ele, de chorarem os dois juntos, doisdesgraçados...

9

Os comentários eram unânimes em Ilhéus: os Badarós levavamevidente vantagem nos barulhos pela posse de Sequeiro Grande. E nãoeramsóoscomentáriosdasvelhasbeatas,nassacristiasdasigrejas,queoa irmavam. Os entendidos, nos botequins, até os advogados no foro,estavamdeacordoqueos irmãosBadarós tinhamapartidaquaseganha,para o que concorrera em muito a enfermidade de Horácio. O processoestavaparadonoforo,atravancadocompetiçõesopostaspeloDr.Genaroereconhecidas pelo juiz. E Juca Badaró havia entrado pela mata e abriraclareiras na zona que limitava com a fazenda Sant'Ana, iniciando asqueimadas.

Everdadeque tiroteios se sucediam,queo coronelManecaDantaspor uma arte e arde, Braz, Firmo, e Zé daRibeira e os demais pequenoslavradoresdavizinhança,poroutraparte,faziamopossívelparadi icultaro trabalho dos homens dos Badarós. Maneca Dantas armou uma tocaiaparaostrabalhadoresqueiamderrubarumpedaçodamata,queresultounumtiroteiogrande.Braz invadiucomalgunshomensoacampamentonabeira damata, numa noite em que Juca não estava. Mas, apesar disso, otrabalhoprosseguia,osBadarósseestabeleciamnamata.

E revidavam com violência os ataques da gente de Horácio.Enquanto Juca acompanhava e guardava os trabalhadores, Teodoro dasBaraúnas atacava. Apareceu uma noite na roça de José da Ribeira,incendiouodepósitodecacausecobotandoaperderduzentasecinquenta

arrobas de cacau já vendido, incendiou a casa-grande, matou umtrabalhador que deu o alarme, iniciou um incêndio nas plantações demandioca,dificilmentedominadodepoisporZédaRibeira.

Em Ilhéus já se dizia que Teodoro das Baraúnas, depois queincendiara o cartório de Venâncio, tomara amor aos incêndios. Para a"FolhadeIlhéus"elepassouaserexclusivamenteo"incendiário".ODr.RuiescreveuumcélebreartigoemquecomparavaTeodoroaNero,cantandodepois do incêndio de Roma. José da Ribeira e seus trabalhadores eramcomparados aos "primeiros cristãos", vítimas da loucura criminosa esanguinária do novo Nero, "mais monstruoso ainda que o degeneradoimperadorromano".DetodososartigospublicadosduranteosbarulhosdeSequeiro Grande, este foi que obteve maior sucesso, chegou a sertranscritopelodiáriodaoposiçãonaBahia sobo títulode "OscrimesdosgovernistasemIlhéus".FoiiniciadoumprocessocontraTeodoro.

Mas, o que em de initivo tornou os comentários favoráveis aosBadarós foi o fato de Horácio não ter podido, mesmo quando melhorou,iniciar aderrubadamatado ladoemqueesta limitava comsua fazenda.HaviaquematribuísseapoucaenergiadeHorácioàdoençadeEster,mas,fossecomofosse,averdadeéqueostrabalhadoreseosjagunçosenviadospelo coronel haviam voltado uma e duas vezes sem conseguir seestabelecernamatae iniciaraaberturadasclareirasparaasqueimadas.Desta vez fora o próprio Sinhô Badaró quem che iara os homens quehaviam acometido por duas noites seguidas, contra o acampamentoche iado por Jarde. Os trabalhadores de Horácio terminaram porabandonar a empresa.ApenasBraz, comalgunshomens seus, abriaumapequena clareira nos seus limites com a mata e iniciava uma queimada,mascoisareduzida, in initamentemenorqueasqueimadas já feitaspelosBadarós.

Ainda assim havia quem apostasse emHorácio. Estes baseavam-seprincipalmentenamaiorfortunadocoronel,homemdemuitodinheironoBanco, capaz de sustentar a luta pormuito tempo. Não só a derruba e oplantio da mata comiam dinheiro, como também, e mais que tudo, ocomiam os jagunços em armas. Sem esquecer que Sinhô Badaró sepreparavaparacasara ilhaeaqueriacasarcomtodo luxo,mandavavirumamultidãodecoisasdoRiodeJaneiro,estavareformandoporcompletosua casa em Ilhéus, acrescentando toda uma ala onde o novo casal iaresidir,pintandodenovotambémacasa-grandedafazenda.Trabalhavamcostureiras, trabalhavam mulheres que faziam rendas, o casamento dailhadeumcoroneleraumacontecimento.Amoça tinhaque levar roupa

paramuitos anos, roupade camaque serviriadepoispara ilhos enetos.Colchas, lençóis e cobertores, fronhas e toalhas de mesa, ricamentebordadas.Portadoresforamaosertãoparacomprarasrendasmais inas.O dinheiro saía fácil, fosse para pagar jagunços encarregados de matar,fosseparapagarcostureirasesapateirosquevestiamecalçavamanoiva.Em Ilhéus se falava nesse casamento quase tanto como nos barulhos deSequeiro Grande. João Magalhães deixara a cidade, andava pela fazendaajudando Juca na derruba damata, de quando em vez baixava a Ilhéus,formava sua rodinha no cabaré, ia juntando dinheiro no pôquer Nafazendanãotinhadespesa,faziaeconomias.

Porém várias pessoas sabiam que o dinheiro da safra deste ano,SinhôBadarójáohaviagastoquasetodo.Maximilianocontavaaosíntimosqueocoroneljápropuseramesmovenderadiantado,porpreçosbastantemais baixos, a safra do ano seguinte. Enquanto queHorácio não venderasequer metade do seu cacau já colhido nesta safra. Ainda assim erampoucas as pessoas que apostavam em Horácio. A maioria era pelosBadarós, não viam possibilidade deles perderem, e por isso mandavamfazerroupanovaparacompareceraocasamentodeDon'Ana.Asbeataseas mulheres casadas, se reuniram pelas tardes na casa de Juca Badaró,ondeOlgaexibia a riquezadosvestidos chegadosdoRio,das anáguasdecambraiabordadas,dascamisasdedormirqueeramumsonho.Mostravaosespartilhoselegantíssimos,asrendas inasvindasdoCeará.Asbocasseabriamem"ohs"deadmiração.Haviacoisasque Ilhéusnunca tinhavisto,numrequintequeafirmavaopoderdafamíliaBadaró.

E, quando Sinhô atravessava as ruas estreitas da cidade, o rostomelancólicoemolduradonabarbanegra,oscomerciantessedobravamemcumprimentoseomostravamaoscaixeiros-viajanteschegadosdaBahiaoudoRiodeJaneiro

—Éodonodaterra...SinhôBadaró.

10

Estermorreunumamanhãclaradesol,quandoossinosrepicavamna cidade, convidando os habitantes para uma missa festiva. A doençahavia-lhecomidoquase todaabeleza,ocabelocaíra,eraumfantasmadaformosamulherqueforaantes,osolhossaltandonorostomagro,certadequeiamorreredesejandoviver.Nafazenda,nosprimeirosdiasdafebre,teve delírios horríveis, encharcava os lençóis de suor, falava palavras

soltas, certa vez se abraçou a Horácio gritando que uma cobra estavaenrolada no seu pescoço e a ia estrangular.ManecaDantas, que estiveraunsdiasna fazendadeHorácioeque tinhagrandessuspeitasacercadasrelaçõesentreVirgílioeEster,tremiademedoqueelafalassenoadvogadodurante as noites de febre. Mas, ela não parecia ver nada mais que ascobrasnoscharcosdamata, silenciosase traiçoeiras,prontasparaoboteemcimadeumarãinocente.Egritavaesofria,a ligiatodososassistentes,amulataFelíciachorava.

Dr. Jessé, quando viu que a febre não cedia, aconselhou que EsterfossetransportadaparaIlhéus.Foiumacenatristequandoaredesaiudafazenda no ombro dos trabalhadores. Dr. Jessé disse a Virgílio, quandomontava:

—Atéjápareceenterro...Coitadadacomadre...Horácioacompanhouaesposa.Iamcaladosostrês,Virgílionãotinha

palavras desde que ela adoecera. Andava mudo pelos cantos da casa-grande, todos os dias encontrava um pretexto para não descer paraTabocas. Também ninguém reparava nele, ia uma confusão pela casa,cabrasquepartiammontados,embuscaderemédios,negrasqueferviambaciasdeágua,HorácioquedavaordenssobreasentradasnamataequecorriaparaacamaondeEsterdelirava.

Quando a foram transportar para a rede, ela teveummomentodelucidez,tomoudamãodeHorácio,comoseelefossedonodosdestinosdomundo,erogou:

—Nãodeixequeeumorra...Virgíliosaiudesesperadoparaoterreiro,oolhardelaforaparaele,

era um olhar suplicante, um desejo doido de viver. Viu naquele olhar deumsegundotodoosonhodeoutravidanoutraterra,livresosdoisnoseuamor. Agora ele não sentia ódio de ninguém, só daquela terra que amatava, que a prendia ali para sempre. Mais que ódio, tinha medo.Ninguém se libertava daquela terra, ela prendia todos os que queriamfugir. Amarrava Ester com as cadeias damorte, amarrava a ele também,nuncamaiso largaria...Andoupordentrodasroçasatéquegritaramporele, era hora demontar. Na frente ia a rede coberta por um lençol. Elesmarchavamatrás,umaviagemterrivelmentelonga.PararamemFerradas,afebreaumentava,Esteragoragritavaquenãoqueriamorrer.

Chegaram a Tabocas no princípio da noite, a casa do Dr. Jessé seencheude visitas.Virgílionãodormiu toda anoite, rolouna sua camadesolteiro na qual não se deitava havia muito tempo... Lembrava as noitescom Ester, as carícias sem im, os corpos vibrando no amor, noites de

paixãona casade Ilhéus. E a viupartir no outrodia numvagão especial,deitada numa cama improvisada, Horácio sentado de um lado, Dr. Jesséquase dormindo do outro. O médico tinha uma isionomia cansada eabatida,osolhosfundosnacaragorda.EsterolhouVirgílioeelesentiuqueela se despedia. A curiosidade enchera a estação e, quando ele saiu dovagãoeabriramalasdando-lhepassagem,oscomentáriososeguiramruaafora.

No outro dia não resistiu, foi para Ilhéus. Bebia nos botequins,quandovoltavadacasadeHorácio,numavisitaqueeledemoravaomaisque podia. Não tinha cabeça para acompanhar os processos quepatrocinava na foro. Andava sonolento e irritado, se sentia só, sem umamigo. Maneca Dantas, que se apegara a ele, fazia-lhe falta. Gostaria deconversar comalguém, dedesabafar, de contar tudo, o que sucedera e oque haviam sonhado, o que era belo — a vida noutra terra, os doisentregues ao seu amor—e também,oque eramiserável—odesejodequeHoráciomorressedeumtiroparabemdeles.Pensavaporvezesemirembora, mas sabia que jamais iria, que estava ligado àquela terra emde initivo. E a única coisa que o arrancava da sua sonolência eram asconversas sobre os barulhos de Sequeiro Grande. Como que aquelasconversaso ligavammaisaEster,porcausadamatadeSequeiroGrandeeles se haviam conhecido e amado.Horácio pormais que sofresse com adoença da esposa, não descuidava um momento dos negócios. Davaordens, fazia com que os lavradores e os capatazes descessem a Ilhéuspara conversarem com ele. Maneca Dantas veio uma vez, trouxe donaAuricídia para ajudar na casa, para tomar conta da criança. Virgílio sedemorava em diálogos com os coronéis sobre as possibilidades politicassobre como conduzir o processono foro, sobre os artigos de "A Folha deIlhéus.Horácio já lhe falara na sua candidatura a deputado. E, durante adoença de Ester, o advogado terminara por estimar Horácio, sentia-seligadoaele,agradecidopelocoronel–queparecia incapazdesentiredesofrer—estar sofrendo também,de todosos esforçosqueele faziaparasalvarEster:juntasmédicas,promessasàIgreja,missasmandadasrezar.

Somente uma vez Virgílio conseguiu falar a sós com Ester. E elaparecia esperar exclusivamente por isto paramorrer. Foi na véspera dofalecimento. Aproveitando Horácio ter saído, e dona Auricídia estarcochilandonasala,eleentrounoquartoparasubstituirDr. Jesséquenãose aguentava de cansaço. Ester dormia, seu rosto banhado de suor.Escaldavadefebre,Virgíliopousouamãonasuatesta.Depoistirouolençolimpou-lheosuor.Eelasemoveunacama,gemeu, terminouporacordar.

Demorouareconhece-loeaverqueestavamsós.Quandoocompreendeu,tiroudesobolençolamãodescarnada,tomouamãodeleeapôssobreoseio.Depoissorriu,fezumesforçoedisse:

—Quepenaeumorrer...—Vocênãovai...Fezumesforçoenorme:—...morrernão...Elasorriudenovo,eraosorrisomaistristedomundo:—Deixaeutever...Virgílioajoelhou-senospésdacama,a cabeçasobreadela,beijou-

lhe no rosto, nos olhos, na boca queimando de febre. E deixou que aslágrimas viessem emolhassem as mãos dela, lágrimasmornas descendosobreorosto.Foramminutossempalavras,amãofebrilnoscabelosdele,abocaamarguradabeijandoorostoqueafebredesfigurara.

O ruído de dona Auricídia, que despertava, o fez levantar-se, masantes ela o beijou se despedindo. Ele saiu para chorar lá fora ondeninguém o visse. Dona Auricídia entrou no quarto, Ester parecia muitomelhor.

"Eraavisitadasaúde",dissedonaAuricídianodiaseguintequandoelamorreu.Eraadespedidadoamor,somenteVirgíliosabia.

Veio muita gente para o enterro. De Tabocas chegou um tremespecial,veiogentedeFerradas,ManecaDantas,oslavradoresdejuntodamatadeSequeiroGrande,vieramamigosdoBanco-da-Vitória, todaIlhéuscompareceu.Nocaixãonegro,orostodamortarecuperaraalgumabelezaeVirgílioaviucomonavéspera,sorrindo,felizdeseramadoedeamar.

O pai de Ester chorava, Horácio recebia os pêsames vestido denegro,donaAuricídiafaziaguardajuntoaocadáver.Ocaixãosaiupelo imda tarde, o crepúsculo alcançou o enterro no caminho do cemitério. Dr.Jessé disse umas palavras, o cónego Freitas encomendou o corpo, osassistentesprocuravamdescobriradornorostopálidodeVirgílio.

Maneca Dantas se desculpou de não aceitar quando Virgílio ochamoupara jantaremjuntos:tinhaquefazercompanhiaaHorácionessaprimeiranoitedenojo.Virgílioandousópelasruas,bebeunumbotequimonde sentiu a curiosidade que o cercava, andou pelo cais, demorou naponte onde um navio era descarregado, trocou umas palavras com umhomemdecoleteazulqueestavabêbedo,procuravaonde ir,alguémcomquem falar longamente, alguém sobre cujo peito pudesse chorar todo oprantoquelheenchiaocoração.EterminouindobateremcasadeMargotque já dormia e que o recebeu surpresa. Mas quando o viu tão triste e

desgraçado,seucoraçãoseabrandoueoacolheunoseuseiocomomesmocarinho maternal com que o acolhera naquela outra noite, na Bahia,quandoelesouberaqueseupaimorreranosertão...

11

E passaram as chuvas do inverno e chegaram os dias quentes doverão.As loresdocacaucomeçaramanascernostroncosenosgalhos,naloração da nova safra. Grandes levas de trabalhadores, que agora nãotinham roça para colher nem cacau para secar, foram empregadas naderrubadamatadeSequeiroGrandepelosBadaróseporHorácio.PorqueHorácio,apósamortedeEsterseentregaraporcompletoàlutapelapossedamata.E ele tambémentrarapela loresta, repelira ataquesdos cabrasdosBadarós, abrira clareiras, izeraenormesqueimadas.Progrediramdeum e de outro lado damata, numa corrida para ver quem chegavamaiscedo.Osbarulhoshaviamparadoumpouco,osentendidosdiziamqueelesrecomeçariamquandoHorácioeosBadarósseencontrassemnasmargensdo rio que dividia a mata. Horácio tinha em Virgílio o mais e icientecolaborador. Não só o processo marchava, devagar é verdade, obrigadopelo bombardeamento de petições com que o advogado brindavadiariamente o juiz, como a peça de acusação que ele escrevera, comoadvogadodeZédaRibeira, contraTeodorodasBaraúnas, eraumaobra-prima jurídica.Aodemais,Virgílio estudavao registrodepropriedadedamatafeitoporSinhôBadaró,edescobrianelegrandesdeficiênciaslegais.Amedição, por exemplo, era incompleta, não determinava os limitesverdadeiros da mata, era uma coisa vaga e imprecisa. Virgílio fez umalongaexposiçãoaojuizquefoijuntadaaoprocessodeHorácio.

E terminaramosdiascálidosdoverãoevoltaramaschuvas longasdoinverno,amadurecendoosfrutosdoscacaueiros,iluminandodeouroasroças fechadas de sombra. Terminados os meses do paradeiro, oscaixeiros-viajantesencheramoscaminhosdeTabocas,Ferradas,PalestinaeMutuns,cortavamomarnorumodeIlhéus.Vinhamemigrantestambém,levas e levas nas terceiras classes dos navios superlotados, chegavamsírios que subiam para a mata com a mala de mascate amarrada nascostas. Muitos dos troncos carbonizados pelas queimadas na mata deSequeiro Grande loresciam novamente em brotos verdes, alegrando asclareiras. Novas estradas já existiam, com as chuvas nasciam lores emtornodascruzesplantadasnochãonoinvernopassado.Nesseanoamata

de Sequeiro Grande diminuíra de quase metade. Estava cercada declareirasequeimadas,viviaseuúltimoinverno.Pelasmanhãsdechuva,ostrabalhadorespassavam, as foicesnosombros, seu canto triste iamorrernomistériodamata:

"Ocacauéboalavra...Jáchegouanovasafra..."

12

E na entrada do inverno Don'Ana casou-se com o capitão JoãoMagalhães.JucaeOlgaerampadrinhosdonoivo,Dr.GenaroeaesposadoDr. Pedro Mata eram os da noiva. O cónego Freitas quando abençoou ocasal, ligou também "para a vida e para a morte" a António Vítor eRaimunda.AntónioVítorcalçavaumasbotinasnegrasqueoincomodavammuitíssimo.Raimundatinhaorostozangadodesempre.E,ánoite,pormaisqueDon'Analhesdissessequeelesnãodeviamtrabalharnaqueledia,elaicounacozinhaajudandoeeleserviubebidaaosconvidadoscapengandoumpoucodevidoásbotinasnovas.

FoiumafestaquefezépocaemIlhéus.Don'Anaestavalindanoseuvestidobranco,ograndevéudaviagem,as loresde laranjeiras,aaliançalarga de ouro. João Magalhães, metido num fraque muito elegante,arrancava exclamações de admiração das mocinhas casadoiras. SinhôBadarópresidiaafesta,umpoucotriste,acompanhandocomoolharafilhaqueiadeumladoparaoutro,atendendoaosconvidados.

Noquartodosnoivos,anteacamarepletadepresentes,des ilavamos convidados.Havia aparelhosde chá,bibelôs, talheres, jogosde roupas,umrevólverColt38,canolongo,deaçocromadocomcabodemar im,umaobra-prima, presente de Teodoro ao capitão João Magalhães. Teodorobebiachampanha,faziapilhériascomocapitãosobreamaciezdocolchão.Osconvidadossaíamdoextasiamentonoquartoparaasaladebaile,ondea banda de música, em fardamento completo, tocava valsas e polcas, dequandoemquandoummaxixe.

Nahoraqueos recém-casados foramse recolher,pelamadrugada,JucaBadarósegurouasobrinhaeoamigo,recomendou-lhesrindo:

—Queroummenino,heinUmBadaródelei!A lua-de-mel, passada na fazenda, foi bruscamente interrompida

pela notícia do assassinato de Juca, em Ilhéus. Depois do casamento elesubira para a fazenda com os sobrinhos, se dirigira logo para dentro da

matacomumaturmadehomens.Voltaraácidadeparapassarosábadoeodomingo,tinhasaudadesdeMargot.

No domingo fora almoçar com ummédico recém-chegado a IlhéusquetrouxeraumacartadeapresentaçãoparaJuca,deumamigodaBahia.Omédicomoravanapensãodeumsírio,numaruacentral.AantigasaladevisitashaviasidotransformadaemrefeitórioeJucaeomédicoocupavamaprimeira mesa da sala, ao lado da porta da entrada. As costas de JucaBadaró davam exatamente para a rua. O cabra encostou o revólver naportaedeuumúnico tiro. JucaBadaró foi caindo lentamenteemcimadamesa, omédico estendeu os braços para segurá-lo, mas ele de súbito selevantou, comumamão se amparava na porta, com a outra sustentava orevólver.Ocabracorriaruaafora,pelopasseio,masostirosoalcançaram,foram três, ele se abateu como um fardo. Juca Badaró escorregou pelaporta,orevólversaltou-lhedamãoaobaternaspedrasdocalçamento.Sepassaratudonumarapidezdeminutos,oshóspedescorriamparaJuca,naruasejuntavagenteemtornoaocabracaído.

Juca Badaró morreu três dias depois, cercado pela família, tendoantes suportado com estoicismo a operação que o médico tentara paraextrair a bala. Faltavam todos os recursos em Ilhéus para uma operaçãosemelhante.Nemclorofórmiohavia. JucaBadarósorriuenquantodurouaoperação.Omédiconovofeztudoparasalvá-lo,Sinhôlhehaviadito:

—Sesalvarmeuirmão,podepedirquantoquiser.Mas não adiantou, como não adiantaram os outros médicos de

Ilhéus,nemDr.PedroqueveiodeTabocas.Antesdemorrer,JucachamouSinhô em particular, pediu que ele desse um dinheiro a Margot. DepoisfaloucomocapitãoeDon'Ana,agoraoquartoestavacheiodegente:

—Queroummenino,hein,nãoseesqueçam!UmBadaró!—epediuaDon'Anaalisandosuamão:—Ponhameunome...

Olgafaziaumberreiroescandaloso,masJucanãoligouimportância,morreu tranquilamente. Apenas lamentou nas suas últimas palavras, nãopoderveramatadeSequeiroGrandeplantadadecacau.

Depois do de Ester, não houvera em Ilhéus enterro com tamanhoacompanhamento. Também para ele viera um trem especial de Tabocas,António Vítor voltara a calçar as botinas rangedeiras, chorava como ummenino.ManuelOliveiraescreveraumnecrológiocheiodeadjetivosno"OComércio", Dr. Genaro botou discurso na beira da sepultura, discursoviolento contraHorácio. Teodoro dasBaraúnas jurava vinganças. Quandodesceram o caixão á sepultura, Don'Ana jogou um ramalhete de lores,Sinhôatirouaprimeirapádeterra.

A noite, na casa triste, Sinhô andava de um lado para outro.Imaginavacomosevingar.Sabiaquedenadaadiantavamandarderrubarcabras de Horácio, os lavradores que com ele se haviam associado, sóadiantavamandaracabarcomocoronel.SóumavidapoderiapagaravidadeJuca,eeraadeHoráciodaSilveira.Decidiuqueomandariamatarfossecomo fosse. Teve uma conversa com Teodoro e com o capitão, à dualDon'Anaassistiu.Dr.GenaroeodelegadoachavamqueHoráciodeviaserprocessado. O cabra que matara Juca era um Jagunço de Horácio, todagente sabia que trabalhava na sua fazenda. Mas Sinhô faz um gestoviolento com a mão não era caso para processo. Não só não icava fácilprovararesponsabilidadedeHoráciojáqueocabramorrera,comoSinhôBadaró não se sentiria vingado com ver Horácio no banco dos réus.Don'Anaeradamesmaopiniãoeocapitãoconcordoutambém.eleestavaumpoucoassustado,nãosabiacomotudoaquiloiaterminar.TeodorodasBaraúnassubiunodiaseguinteparatratardoassunto.

Mas,matarHorácio, não era tarefa fácil.O coronel sabia que, tantoas estradas como a cidade de Ilhéus, eram lugares perigosos para ele. Enãosaiaquasenuncadafazenda.QuandovinhaaFerradasouaTabocas,uma comitiva de muitos homens o rodeava, cabras de pontaria certeira,quase sempreBraz vinha a seu lado.A Ilhéusnão voltoudurantemeses,Virgílio era quem subia à fazenda para informar ao coronel sobre amarcha dos processos. Porque, com o correr dos dias, Dr. Genaroconvencera Sinhô de processar Horácio. Sinhô veio a concordar, tinhaagora as suas razões. O delegado fez um inquérito, se transportou aTabocas, arrolou uma série de testemunhas que a irmavam que o cabraqueassassinaraJucaeratrabalhadordafazendadeHorácio.Eumhomemdocais,queusavaumanelãofalsonodedo,nãotevedúvidasemrelataraodelegadoaconversaquemantiveranavésperadocrime,navendadeumespanhol, com o assassino. este tinha bebido muito e o de anelão falsopuxoupelasualíngua.Ohomemestavacheiodedinheiro,exibiaumanotade cem mil-réis, narrara em segredo que ia "fazer um trabalho deimportância a mando do coronel Horácio". Esta era a testemunha maisimportante contraHorácio. O promotor aceitou a denúncia, Sinhô Badarópressionavasobreo juiz, tudoqueVirgíliopodeconseguir foiqueHorácionãosofresseprisãopreventiva.OjuizsedesculpavaperanteSinhôBadaró:"quem se atreveria a ir prender Horácio na sua fazenda? Para bem dorespeito que a justiça devia mere cer era melhor que Horácio só fossepreso nos dias do júri. Virgílio prometera que Horácio compareceria aojulgamento”.

Dr. Genaro tinha grandes esperanças de conseguir um corpo dejurados que condenasse o coronel. Os Badarós estavam por cima napolítica,erapossívelatéapenamáxima.MasSinhôtinhaesperançaeradeliquidarcomocoronelantesdeleentraremjúri.Ou,noúltimocaso,comodissera a João Magalhães, no próprio dia do júri. Por isso admitira oprocesso.

Horácio parecia não se preocupar um minuto sequer com aqueleprocesso.Querianotíciaseradooutro,doqueelefaziacorrercontraSinhôe Teodoro pela propriedade da mata de Sequeiro Grande. No meio detodos esses processos os advogados enriqueciam, se insultavam naspetições,preparavamosdiscursosparaojúri.

Apesar de todas as di iculdades por duas vezes, a vida deHoráciocorreuperigo. Primeiro foi umhomemdeTeodoroque conseguiu chegaratéumagoiabeirapertodacasagrandedocoronel.EsperouaíváriashorasatéqueHorácioapareceunavarandaesentando-senumbanco,começoua cortar canaparaumabestaquepossuía,muitomansa.O tiropegounoanimal, Horácio, saiu correndo atrás do cabra mas não o alcançou mais.Noutra ocasião foi um velho que apareceu na fazenda dos Badarós seoferecendoaSinhôparaliquidarHorácio.Nãoqueriapagamento,tudoquequeria era uma arma. Tinha contas a ajustar com o coronel, informou.Sinhômandou que lhe dessem uma repetição. O velho foimorto quandotentava se aproximar da casa-grande de Horácio numa noite de lua.AlguémlembrouqueeleeraopaideJoaquim,queforadonodeumaroçaquehojepertenciaaHorácio.

Diantedessasameaças,Horácio reforçouaguardada fazenda, saíararamente,mas,nemporissoseushomensdeixaramdeabrirclareirasnamatadeSequeiroGrande.Nãotardaria,eseencontrariamcomoshomensdos Badarós que vinham pelo outro lado. Cada vez eramenos espessa aloresta, as mudas de cacau que deviam ser plantadas namata enchiamarmazénsnumaenoutrafazenda.QuandoaconteciacabrasdeHorácioseencontraremcomcabrasdosBadaróshaviatiroteionacerta,corriasanguenasestradas.

13

E,quando jáoshomensnamataouviamoruídodosmachadosdosadversários no outro lado do rio, Ilhéus despertou numa manhã com anotíciasensacionalqueotelégrafotrouxera:ogovernoFederaldecretaraa

intervençãonoEstadodaBahia. As tropas do exército haviamocupado acidade, o governador renunciara, o chefeda oposição, que chegoudoRionum vaso de guerra, tomara posse como interventor. Horácio agora eragoverno, Sinhô Badaró estava na oposição. O telegrama do novointerventordemitiaoprefeitodeIlhéus,nomeavaoDr.Jesséparaoposto.NoprimeironaviovindodaBahia,chegaramonovojuizeonovopromotore,comeles,anomeaçãodeBrazparadelegadodomunicípio.Oantigojuizfora designado para uma pequena cidade do sertão, mas não aceitou epediu renúncia do cargo. Murmuravam que ele já estava rico e nãoprecisavamaisdamagistraturaparaviver.A"FolhadeIlhéuspublicouumnúmeroespecial,aprimeirapáginaemduascores.

Foi só então que Horácio apareceu em Ilhéus, atendendo a umtelegrama do interventor que o convidava a ir a Bahia paraconferenciarem. Recebeu os cumprimentos dos amigos e dos eleitores,Virgílio embarcou com ele, umamultidão veio traze-los ao cais. A bordo,Horáciodisseaoadvogado:

—Pode-seconsiderardeputadofederal,doutor...Sinhô Badaró também veio a Ilhéus. Conversou à noite com Dr.

Genaro, com o ex-juiz, com o capitão João Magalhães. Ordenou a seushomensqueapressassemaderrubadamata.Voltounooutrodia,TeodorodasBaraúnasoesperavanafazendaSant'Ana

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OtelegramadeBrazarrancouHoráciodasconversaspolíticascomointerventor,dosbraçosdasmulheresnoscabarésdaBahia,dosaperitivoscompolíticosnosbaresmaischiques,eotrouxedevoltanoprimeironavio.Os homens dos Badarós não só haviam caído sobre os trabalhadores deHorácio que derrubavam a mata, fazendo uma verdadeira carni icina,comohaviamincendiadoumaquantidadederoçasdecacau.Durantetodaaquela luta as roças de cacau haviam sido respeitadas, como se osadversários obedecessem a um tácito compromisso. O fogo devoravacartórios, plantações de milho e mandioca. armazéns com cacau seco,matavam-sehomensmãoserespeitavamoscacaueiros.

PorémSinhôBadarósabiaqueestavajogandosuaúltimacartada.Amudança da situação política roubara seusmelhores trunfos. Uma provadisso era a desagradável surpresa que tivera ao ir vender a safravindoura, por adiantado, a "Zude, Irmão oz Cia." estes se mostraram

desinteressados falaram em di iculdades de dinheiro, propuseraminalmente comprar o cacaumas com uma garantia hipotecária. Sinhô seenfurecera:pedirumahipotecaderoçasaele,SinhôBadaró!Maximilianotemera que o coronel o agredisse, de tão violento que icara. Mas serecusou a comprar o cacau já que Sinhô não queria dar as garantiaspedidas. "Eramordens", dizia. E SinhôBadaró teveque vendero cacau ácasaexportadoradeunssuíços,porpreçosmiseráveis.Diantedisso tudo,deu carta branca a Teodoro para agir como quisesse em relação àmata.Teodoro, então, pegara fogo nas roças de Firmo, de Jarde, e mesmo emalgumas de Horácio. O incêndio durara dias, o vento o propagava, ascobrasfugiamsilvando.

No cais de Ilhéus os amigos de Horácio apertavam a sua mão,lamentavam as barbaridades dos Badarós. Horácio não dizia nada.ProcuravaBrazentreospresentes,foicomelequeconversoulongamentena sala da delegacia. Prometera ao interventor que tudo seria feitolegalmente. Daí os jagunços que assaltaram a fazenda dos Badarós, ecercaram a casa-grande, aparecerem nos jornais que noticiaram o fatotransformados em "soldados da polícia que procuravam capturar oincendiárioTeodorodasBaraúnas,quesegundoconstava,estavaacoitadonafazendaSant'Ana".

Ocercodacasa-grandedosBadarósfoio imdalutapelapossedasterras de Sequeiro Grande. Teodoro quis se entregar para assim tirar opretexto legaldequeHoráciosevalia.Sinhônãoadmitiu, fezcomqueeleembarcasseescondidoparaIlhéus,ondeamigosometeramnumnavioquesaía para o Rio de` Janeiro. Depois se veio a saber que Teodoro ixararesidênciaemVitóriadoEspírito-Santo,comumacasadecomércio.TalvezHorácio tenha sabido da fuga de Teodoro. Mas, se o soube, nada disse,continuava a cercar a casa-grande da fazenda Sant'Ana como se nelaTeodoro estivesse escondido. A mata de Sequeiro Grande estavaderrubada,agoraasqueimadasseconfundiamcomas roças incendiadas,não havia limites entre elas. Não existiammais nem onças nemmacacos,nãomais assombrações também.Os trabalhadoreshaviamencontradoosossosdeJeremiaseoshaviamenterrado.Emcimaplantaramumacruz.

SinhôBadaróresistiu,comseuscabras,quatrodiasequatronoites.E sóquandoele caiu feridoe foi, porordemdeDon'Ana, conduzidoparaIlhéus, é que Horácio pode se aproximar da casa-grande. Sinhô descerapelamanhãnumaredelevadonosombrosdoshomens,e,ànoite,ocapitãoJoão Magalhães fez com que Olga e Don'Ana montassem e viajassemtambém. Raimunda ia com elas, cinco jagunços as acompanhavam. Devia

naquela noite dormir na fazenda de Teodoro, no dia seguinte alcançar otremparaIlhéus.

JoãoMagalhães,comoshomensque lherestavam,seentrincheirounabeiradorio.AntónioVítor,aoseulado,dequandoemvezsuspendiaarepetição e disparava. O capitão, olhos acostumados á luz da cidade, nãodistinguia nada nas trevas daquela noite sem lua. Sobre quem o mulatoatirava?Maso tiroque respondiaprovavaqueAntónioVítor tinha razão,os olhos do mulato estavam habituados á escuridão das roças, viaperfeitamentedentrodanoiteoshomensqueseaproximavam.

Foram, por im, cercados, tiveram que recuar para a estrada, amaioria caiu namão dos cabras de Horácio. Recuaram JoãoMagalhães eseis homens, cada vez para mais longe, cada vez um número menor decabras, até que foram quatro somente. Então António Vítor desapareceu,quandovoltoutraziaumburroselado:

—Seucapitão,monteeváembora.Aquinãohámaisoquefazer.Eraverdade.OscabrasdeHorácio,comBrazáfrente,entravamno

terreirodacasa-grandedosBadarós.JoãoMagalhãesperguntou:—Evocês—Nósvaiapéguardandovosmecê...Nomesmomomentoqueelespartiram,Brazentravanavarandada

casa deserta. Havia um silencio completo na noite sem lua. Os cabras deHorácio estavam reunidos no terreiro, prontos para entrar na casa. Umdeles,obedecendoaumaordem,riscouumfósforoparaacenderum ifó.Otiro veio de dentro da casa, raspou na luz, nãomatou o homem por ummilagre.Osoutrosseatiraramnochão,foramentrandoderastrosnacasa.Dedentroalguématirava,procurandovisarHorácionomeiodoscapangas,Brazavisouocoronel:

—Emaisdeum...Entraram na casa, as armas namão, os olhos atentos, procurando.

Iam,comódio,queriamfazeraestesúltimosdefensoresmaisaindadoquehaviam feito aos que caíram na beira do rio e na estrada e dos quaishaviam arrancado os olhos e os beiços, as orelhas e os ovos. Correram acasa toda sem encontrar ninguém. Os tiros haviam cessado, Brazcomentou:

—Terminouamunição...Brazianafrente,doiscabrasaseulado,Horáciovinhalogoatrás.Só

restavao sótão.Foramsubindoaescadaestreita,Brazabriuaporta comumpontapé. Don'AnaBadaró atirou, um cabra caiu. E como era a últimabala que lhe restava, ela jogou o revólver para o lado deHorácio e disse

comdesprezo:—Agoramandemematar,assassino...Edeuumpassoà frente.Brazabriaabocanumespanto.Ele tinha

vistoquandoelapassaracomOlgaeRaimunda,guardadaporunspoucoshomens,fugindo.Eledeixaraqueacomitivapassasseaoalcancedasbalas,sem atirar. Comodiabo tinha voltado?Don'Ana deu outro passo à frente,seuvoltouencheuapequenaportadosótão.

Horáciosaiuparaumladodaescada:—Váembora,moça...Eunãomatomulher.Don'Ana baixou a escada, atravessou a sala, olhou a gravura, uma

bala quebrara o vidro, rasgara o peito damoça que bailava. Saiu para oterreiro,oshomensafitavammudos.ummurmurou:

—Diabodemulhercorajosa!Don'Ana tomou um dos cavalos que estavam arreados, olhoumais

umaveza casa-grande,montou, esporeouoanimalepartiunanoite semluaesemestrelas.Sóentão,depoisdoseuvultoterseperdidonaestrada,Horácio levantou o braço e a voz, deu uma ordem, os homens puseramfogonacasa-grandedosBadarós.

15

ODr.Genaro,queeraamigode frasesbrilhantes, costumavadizer,anosdepois,quandosemudaraparaaBahiaondepodiaeducarmelhorosfilhos,aosereferiraosbarulhosdeSequeiroGrande:

—Todaaquelatragédiaterminounumacomédia...Ele queria se referir ao julgamento de Horácio pelo júri de Ilhéus.

Pouco antes o juiz lavrara sentença no processomovido por Horácio emdefesadosseusdireitosdepropriedadedasterrasdeSequeiroGrande.Asentença reconheciaosdireitosdo coronelHoráciodaSilveiraedos seusassociados e entregavaTeodorodasBaraúnas à promotoria pública paraser processado pelo incêndio do cartório de Venâncio em Tabocas.TambémSinhôBadaróeocapitãoMagalhãeseramacusadosporhaveremregistradoumtítulo ilegaldepropriedade.EssenovoprocessonãoseguiuadianteporqueHorácio,aconselhodeVirgílio,nãoseinteressouporele.Afamília Badaró economicamente estava mal, devendo dinheiro aosexportadores, comduas safras sacri icadas, as suas fazendasnãohaviamaumentado nesse ano de barulho. Ao contrário, não só a casa-grande, asbarcaças e as estufas estavam destruídas como as mudas de cacaueiro

tinham sido queimadas, algumas roças sofreram grandes danos. OsBadaróslevariammuitosanosareconstruirumapartedaquiloqueforaasuagrandefortuna.JánãoeramadversáriosparaHorácio.

E o júri foi apenas um consagração do coronel. Ele se entregou áprisão na véspera do julgamento. Amelhor sala da PrefeituraMunicipal,queeraondefuncionavamtambémoforoeacadeia,foitransformadaemdormitório. Braz dispensou os soldados, ele mesmo fazia companhia aHorácio. Os amigos encheram a sala, o coronel conversava, mandava viruísque,foiumafarraanoitetoda.

Ojúrise iniciounooutrodiaàsnovehorasdamanhã,durouatéastrêsdamadrugadadodia seguinte.OsBadaróshaviam feitovirdaBahiaum advogado demuito renome, Dr. Fausto Aguiar para, comDr. Genaro,servir de ajudante da promotoria. O novo promotor, toda gente sabia, iafazer uma acusação muito de iciente, era correligionário político deHorácio.

O Juiz entrou na sala, acompanhado do promotor, dos escrivães edosmeirinhos,vestiaa toganegra, sentou-senaaltacadeirasobreaqualuma imagemdeCristo cruci icado vertia sanguede umvermelho escuro.Aoladodojuizsentou-seopromotor,puseramcadeirasparaoDr.Genaroe o Dr. Fausto, ajudantes de promotoria. Na tribuna da defesa seencontravam Virgílio e Dr. Rui. O juiz pronunciou as palavrasregulamentares, a sessão do júri estava aberta. Uma multidão invadiu asala sobrava gente pelos corredores. Um menino, que anos depois iriaescreverashistóriasdessaterra,foichamadoporummeirinhoparasacardaurnaonomedoscidadãosqueiriamconstituiroconselhodesentença.Sacouumcartão, o juiz leuonome,umhomemse levantou, atravessouasala, tomouassentonumadas sete cadeiras reservadasaos jurados.Maisoutrocartãosaiudaurna.Ojuizleu:

—ManuelDantas.O coronelManecaDantas se levantou,mas nem chegou a andar. A

vozdoDr.Genaroatravessouasala:—Recuso...—Recusadopeloórgãodeacusação...—anunciouojuiz.ManecaDantassentou-se,omeninocontinuavaatiraroscartões.De

vez emvezumnomeera recusado, orapelapromotoria, orapeladefesa,por im o conselho de jurados icou constituído. Entre os assistentes setrocavamcomentários:

—Absolvidoporunanimidade.—Nãoseinão...Hádoisvotosduvidosos...—ciciavamnomes.

—Talvez três—disseoutro.—JoséFarianãoémuitodeHorácio,não...Podevotarcontra...

—OntemDr.Ruiestavaemcasadele.Votapelaabsolvição.—Vaihaverapelação...—Unanimidadenacerta,queapelaçãoquenadaAs apostas eram sobre a possibilidade ou não de apelação. O

Supremo Tribunal do Estado respondia ainda ao governo derrubado. SehouvesseapelaçãotalvezHoráciofossecondenadoou,pelomenos,enviadoanovo júri. Amaioria dos assistentes, porém, achavaque o coronel seriaabsolvido por unanimidade não havendo, por consequência lugar para aapelação. Os jurados prestaram juramento de "julgar com justiça, deacordo com as provas e a sua consciência" e se sentaram.Omenino quetirara os cartões da urna deixou o estrado do juiz e veio se sentar pordetrás da tribuna de defesa. E desse lugar assistiu a todo o julgamento,escutando de olhos acesos os debates. Mesmo pela madrugada, quandoalguns assistentes cochilavam nos bancos, o menino seguia nervoso odesenrolardoespetáculo.

Os comentários pararam de súbito e um silencio se elevou na salaporque o juiz ordenava ao delegado que izesse entrar o réu. Braz saiupara logo voltar acompanhando o coronel Horácio da Silveira. Doissoldados o ladeavam.Horácio vestia um fraque negro, o cabelo penteadopara trás, o rosto sério, quase compungido. Parou em frente ao juiz, osilencio era pesado, os assistentes se dobraram para a frente. O juizperguntou:

—Seunome?—HoráciodaSilveira,coroneldaGuardaNacional.—Profissão?—Agricultor.—Idade?—Cinquentaedoisanos.—Residência?—FazendaBomNome,nomunicípiodeIlhéus.—Sabedoqueéacusado?Avozdocoroneleraclaraeforte:—Sim.—Temalgumacoisaaaduziremsuadefesa?—Osmeusadvogadosofarão...—Temadvogados?Quais?—ODr.VirgílioCabraleoDr.RuiFonseca.

Ojuizapontouopequenobancodosréus:—Podesentar-se.MasHorácio semantevedepé.Braz compreendeu retirouobanco

humilhante, trouxe uma cadeira. Ainda assim Horácio não se sentou. Foiumasensaçãopelasala.Dr.Ruipeticionouaojuizparaqueconcedesseaoacusado o direito de assistir ao julgamento de pé e não sentado naquelesimbólico banco dos criminosos. O juiz concedeu e de todos os cantos dasalasepodiavera iguragigantescadocoronel,asmãoscruzadassobreopeito, os olhos itos no juiz. Omenino se levantara para vê-lomelhor e oencontrousoberbojamaisoesqueceria.

O escrivão lia o processo. A leitura durou três longas horas, osdepoimentosdas testemunhasdes ilandoumaum.Dequandoemvezosadvogados tomavam notas em papéis. Ao lado do Dr. Genaro se elevavauma pilha de livros gordos de direito. Quando terminou a leitura doprocessoeraumadatardeeojuizsuspendeuasessãoporumahoraparao almoço. O conselho de jurados icou na sala, sem poder se avistar comninguém, o almoço para eles veio do hotel, pago pela Prefeitura. ApenasparaCamiloGóis veiode casa, já que ele sofriado estômagoe tinhaumadietaespecial.

Omeninoqueassistiaaojúri,saírapelamãodopai,masjáestavanaporta da sala quando o meirinho badalou a grande sineta chamando osadvogados e os escrivães. Novamente Horácio entrou e se postou de péante o juiz. Foi dada a palavra ao representante da promotoria pública.Como se esperava, não foi uma grande acusação. O promotor faloumeiahora,deixou inúmerassaídasparaosadvogadosdedefesa.Mas,comodehábito, terminoupedindoapenamáxima,queeramtrintaanosdeprisão.Dr. Genaro, ocupou a tribuna da promotoria depois dele. Falou duranteduas horas misturando citações lidas nos livros, algumas em francês,outras em italiano, com o exame demorado das declarações dastestemunhas que provavam, segundo ele de modo indiscutível, que oassassino era um cabra a serviço de Horácio. Fez cavalo de batalha dasdeclaraçõesdohomemdeanelãofalsoqueconversaracomoassassinonavéspera do crime. Historiou os barulhos de Sequeiro Grande, terminoudizendoque se "omandantenão fosse condenado, a justiça em terrasdeIlhéus não seria senão a mais trágica das farsas". Citou umas frases emlatime se sentou.Pelosassistentes,quepoucohaviamentendidodaquelaconfusãodelínguascitadaspeloDr.Genaro,iaumaadmiraçãopelaculturado advogado. Não discutiam a sua posição: estimavam-no como algumacoisadevalorquepertenciaaIlhéus.

Teve a palavra o Dr. Fausto e as cabeças se adiantaram curiosas.Esse advogado vinha precedido da fama de grande orador, defesas suasicaram célebres na Bahia. Verdade que o povo de Ilhéus teria preferidoescutá-lonumadefesaquenumaacusação. Constavaque SinhôBadaróocontrataraporquinzecontosde réis.Dr.Faustonão falou longamente, seguardavaparaaréplica.Foiumdiscursosonoro,ditocomumavozcortadadeemoção.Falavanaesposasemmarido,noirmãosemirmão,fezoelogiode Juca Badaró, cavaleiro andante da terra do cacau". Sua voz ora subia,orabaixava,seenchiadeódioaofalardeHorácio,"jagunçoquesetornouchefe de jagunços", se enchia de delicadeza ao falar de Olga "a pobreesposainconsolável".Fezumapelo inalaossentimentosnobresdejustiçadoconselhodejuradosEcomoseudiscursoasessãofoisuspensaparaojantar.

A noite a assistência foi muito maior e o menino teve di iculdadespara ocupar o seu lugar. Os empregados no comércio, que não haviampodidovirdemanhãeàtarde,lotavamagoraatéasescadasdaprefeitura.Toda gente queria ouvir os discursos dos advogados da defesa. Primeirofalou Virgílio e o seu discurso respondia ao Dr. Genaro. Esmagou astestemunhas.Provoua fraquezadoprocesso todoe fezsensaçãoquando,ao se referir ao homem de anelão falso, que era a pedra angular daacusação,revelouquesetratavaapenasdeumladrão,denomeFernando,chegadoa Ilhéusháalgunsanosondese transformaranummalandrodemeios de vida desconhecidos. Esta "testemunha tão cara à acusação" seencontrava naquele momento nos cárceres de Ilhéus, preso porvagabundagem e arruaças. Que valor podia ter a palavra de um homemdestes? Um ladrão, um vagabundo, um mentiroso. Dr. Virgílio leudeclarações que ele colhera do espanhol, dono da venda onde o cabraestiveraconversandocomohomemdoanelãofalso.Oespanholdiziaqueode anelão falso sempre tivera fama de mentiroso, gostava de contarhistórias, de inventar casos, e o espanhol descon iava que fora ele oresponsável pelo desaparecimento, em duas ocasiões do dinheiro paratroco, guardado na gaveta do balcão da venda. Que valor legal,testemunhal, podia ter a palavra de um tipo desta ordem? O Dr. Virgíliorelanceavaosolhosdesdeo juiz,passandopeloconselhodesentença,atéaosassistentes.Narrouele também,aseumodo,osbarulhosdeSequeiroGrande. Lembrou o outro processo, pela posse das terras, perdido pelosBadarós.LembrouoincêndiodocartóriodeVenâncio.Pediujustiçaao imde duas horas e sentou-se. Dr. Rui respondeu ao Dr. Fausto. Sua vozpoderosa, um pouco tremula devido á bebida, ressoou na sala. Tremeu,

chorou,seemocionou,acusou,defendeu,fezagentechorar,fezagenterir,foi violento com o Dr. Fausto que "ousara cuspir palavras mesquinhassobre a personalidade sem mácula desse Bayard de Ilhéus que era ocoronel Horácio da Silveira". Exceto os advogados e o menino, ninguémsabia quem era Bayard, mas todos acharam a imagem muito bonita.Horácio,deeosbraços sobreopeito,nãodemonstravanenhumcansaço.Por vezes sorria, quando as ironias do Dr. Rui contra o Dr. Fausto erammais ferinas e venenosas. E vieram as réplicas, falaram todos mais umavez, repetindo o que já haviam dito. De novo, apareceu apenas umdepoimento trazidopeloDr.Genaropara contraporaodoespanhol,donodavendacitadopeloDr.Virgílio.Dr.Genaro tambémconversaracomumconhecidodohomemdoanelãofalso,umoutrofrequentadordavenda,umdecoleteazul.Estedisseraqueodeanelãofalso"eraumaboapessoa,sebemnãoparecesse".Suashistóriaspodiamparecerinventadasmasmuitasdelas tinhamacontecidomesmo.EoDr.Genaro clamoucontraa "misériadapolícialocalquemeteranocárcereuminocentesóporquedepuseranoprocesso".Dr.Faustofezseugrandediscurso.Procuroutremeravozmaisque Dr. Rui, conseguiu que alguns assistentes chorassem também, deu omáximoquepode.Dr.Virgílio faloudezminutossomentesobreohomemdo anelão falso. Dr. Rui encerrou os discursos fazendo imagens entre ajustiçaeaestátuadeCristoquependia sobrea cabeçado juiz.Terminoucomumagrandefrase,queestudaradoisdiasantes.

"Ao absolver o coronel Horácio da Silveira provareis, senhores doconselhodesentença,a

todoomundocivilizado;cujosolhosestãovoltadosparaestasala,queemIlhéusnãoexiste

apenas o cacau, a terra fértil e o dinheiro, provareis que em IlhéusexisteaJustiça,mãede

todasasvirtudesdeumpovo!"Apesardoexagerodetodoomundovoltadoparaaquelasaladejúri

emIlhéus,outalvezporissomesmo,afrasearrancoupalmasqueojuizfezcalar por intermédio do meirinho que sacudia a sineta. O conselho desentençaseretiroudasalaparajulgardaculpabilidadeoudainocênciadoréu.Horáciofoiretiradotambém, icounocorredorconversandocomseusadvogados.Quinzeminutosdepoisosjuradosvoltaramásala,BrazchegouparaconduzirHorácio.EsteacabaradereceberanotíciapeloDr.Virgílio:

—UnanimidadeO juiz leu a sentença absolvendo o coronel Horácio da Silveira por

unanimidadedevotos.Alguns assistentes começarama se retirar.Outros

abraçavam Horácio e os advogados. Braz lavrou a ordem de liberdade,Horáciosaiuentreosamigosqueoiamacompanharàcasa.

O pai do menino tomou o ilho pelo braço, viu que ele estavacansado, suspendeu-o no ombro. Os olhos do menino ainda olharamHorácioquesaía.

—Dequefoiquegostoumais?—perguntou-lheopai.Omeninosorriulevemente,confessou:—Detudo,detudo,gosteimaisfoidohomemdeanelãofalso,oque

sabehistórias.Dr.Ruiquepassavapertoouviu,acariciouacabeçaloiradomenino.

Depois desceu as escadas correndo, para alcançar Horácio que saía pelaporta principal da Prefeitura penetrando namanhã clara que se elevavanomarsobreacidadedeIlhéus.

OProgresso

1

Meses depois, num princípio de tarde, inesperadamente o coronelHorácio de Silveira desmontou de um cavalo na porta da casa-grande deManeca Dantas. Dona Auricídia apareceu arrastando as banhas, muitosolícita,querendosaberseocoronel jáhaviaalmoçado.Horáciodissequesim,tinhaorostocerrado,osolhospequenos,abocarepuxadanumgestoduro.Umtrabalhador foichamarManecaDantasqueandavapelasroças,dona Auricídia icou fazendo sala. Falava quase sozinha, Horácio apenassoltavaum"sim"ouum"não"quandoelaparava.DonaAuricídia contavahistóriasdos ilhos,louvavaainteligênciadomaisvelho,oquesechamavaRui. Por im Maneca Dantas chegou, abraçou o coronel, icaramconversando.DonaAuricídiaseretirouparaprovidenciaruma"merenda".

Então Horácio levantou-se, olhou pela janela as roças de cacau.Maneca Dantas esperava. Sucederam-se os minutos em silencio. Horáciotinhaoolharperdidonaestradaquepassavanas imediaçõesdacasa.Derepentesevoltouefalou:

—AndeiarrumandoumascoisasnopalacetedeIlhéus.UmascoisasdeEster...

Maneca Dantas sentiu o coração bater mais apressado. Horácio oolhava com seus olhos baços, quase sem expressão. Só a boca estavacortadacomumtraçoduro.

—Encontreiumascartas...Completoucomamesmavozemsurdina:—EraamantedodoutorVirgílio...Disse,evoltouaolharatravésdovidrodajanela.ManecaDantasse

levantou,botouamãonoombrodocompadre:—Eusabia, faz tempo.Más,nessas coisas,nãovaleapenaagente

se meter... E a pobre da comadre pagou com juros morrendo daquelamaneira...

Horácio deixou a janela, sentou num banco da sala. Olhava o chão.Pareciarecordarfatosantigos,momentosbons,lembrançasfelizes:

— É engraçado... Primeiro, eu sabia que ela não gostava de mim.Vivia chorando pelos cantos dizia que eramedo das cobras. Na cama seencolhiaquandoeu tocavanela...Medava raivamaseunãodizianada, a

culpaeraminhamesmo,eufuicasarcommulhermoçaeeducada...Balançouacabeça,olhandoManecaDantas.Esteouviaemsilencio,o

rostodescansandonasmãos,semumgesto.—Derepenteelamudou, icouboa,euchegueiaacreditarqueela

tavagostandodemim.Anteseumemetianamata,memetiaembarulhos,era sópelodinheiro,umpoucopelomenino.Masdepois iz tudo, eraporela,tavacertoqueelagostavademim...

Estendeuodedo:—Tunãoteimagina,compadre,oqueeusentiquandoelamorreu.

Tavaalidandoordensaoshomensmastavapensandoemmematar.Esónãodeiumtironacabeçaporcausadomenino, ilhomeuedela, ilhodotemporuim,éverdade,mastudotinhapassado,ela icaracarinhosaeboa.Senãotinhamematadoquandoelamorreu...

Riuparadentroseurisoamedrontador:— E dizer que tudo era pelo outro, pelo doutorzinho. Tava boa e

carinhosa,eraporele.Eucomiaosrestos,eraassobras...Dona Auricídia entrava na sala, chamava para amerenda. Amesa

atestadadedoces,dequeijos,defrutas.Comeramouvindoopapagueardedona Auricídia que puxava pelo ilho mais velho, obrigando a criança aresponder a perguntas históricas, a ler corrido para o padrinho ouvir, arecitarunsversos.

Depois voltaram para a sala de visitas e Horácio não falou mais.Sentou-se numa cadeira, escutava sem atenção.ManecaDantas encheu otempo com conversas sobre a safra, sobre o preço do cacau, sobre asmudas plantadas na terra de Sequeiro Grande. Dona Auricídia sedesconsolava porque o compadre não ia icar para jantar. Já haviamandadopegarunsfrangosparaprepararummolhopardoque"eraumaespecialidade.

—Nãoposso,comadre...Assim correra a tarde. Horácio mascava uma ponta apagada de

cigarro que enegrecera ao contato com a saliva. Maneca Dantas falava,sabia que sua conversa não tinha interesse mas não conseguia outraspalavras, tinha a cabeça oca. Sabia apenas que Horácio não queria estarsozinho.

Outra vez, num dia já distante, fora Virgílio quem estivera assim,commedodeficarsozinho.ManecaDantasparoudefalar,selembrando.

Eveioocrepúsculo,ostrabalhadoresretornavamdasroças.Horáciose levantou,mais uma vez olhava pela janela a estrada que o crepúsculocobria de tristeza. Foi lá dentro, se despediu de donaAuricídia, deu uma

prata ao a ilhado. Maneca Dantas saiu com ele para o terreiro onde ocavalooesperava.Quandopôsopénoestribo,Horáciovoltou-se,avisouaManeca:

—Voumandarliquidarele...

2

ManecaDantas tinhavontadedearrancaroscabelos. "Doutorzinhoteimoso!" Já gastara todos os argumentos para convence lo de não ir aFerradasnessanoiteeVirgílioestavaaliempacadonaquelaideiadeir,deir por cima de tudo, empacado que nemum jumento que é o bichomaisburrodomundo.EissoquenãohaviaduasopiniõesemIlhéus:Dr.Virgílioeraumhomeminteligente

ManecaDantasnemsabiamesmoporquegostavatantododoutor...Mesmo quando tivera certeza de que ele era amante da comadre, quebotava os cornos no compadre Horácio, nem então deixara de estimá-lo,apesardequeHorácioeraquaseveneradoporManeca,deviaaocoronelmuitodoquepossuía.Horácio lhederaamãoquandoeleestavamal, lheajudara a subir na vida. Pois nem quando descobriu que o Dr. Virgíliodormia com Ester, nem assim Maneca Dantas tomou raiva dele. Passoudiasdeagonia,nomedodeHoráciodescobrirtudo,detomarumavingançaterrível contraEstereVirgílio.Quandoacomadremorrera, a sua tristezaestava misturada com uma certa alegria, fora uma morte triste, semdúvida: porém seria pior, muito pior, se Horácio descobrisse tudo e elamorresse ainda mais tragicamente. Como morreria, Maneca Dantas nãosabia. Mas imaginava, apesar de sua imaginação não ser grande, coisashorrorosas.Esterpostanumquartocomcobras,comonumahistóriaqueojornalpublicara certavez.Quandoa febrea levou,ManecaDantas sentiumuito,mas respirou aliviado: o caso estava resolvido. E não é que agora,tantosmeses passados, Horácio havia de descobrir cartas de amor, e de,com toda razãoquerermataroadvogado?...TambémManecaDantasnãosabeporquediaboessagentequeenganamarido,comtantoperigo,aindasedáoluxodeescrevercartinhasdeamor.Coisadeidiota...Eledequandoemvez tinhaumaamante, é claroquenuncamulheres casadas.Eraumaque outra rapariga bonita que enchia o olho deManecaDantas e ele lhemontavacasa. Ia lá,dormia,comiaebebia,masescrevercarta,nunca...Asvezes recebia uma ou outra... Eram quase sempre pedidos de dinheiro,maisoumenosurgentes.Pedidosdedinheiroquevinhammisturadoscom

beijos e frases carinhosas. O Coronel Maneca Dantas rasgava logo ascartas, antesqueoolfato inodedonaAuricídia sentisseo cheiro impurodeperfumebaratoquesempreasimpregnava...Pedidosdedinheiro,nadamais...

ManecaDantasselembradessascartasenquantoVirgílionasaladejantarserveumapinganoscálices.Destruía todas?Averdadeéqueumacartaelenuncadestruíraea levavanacarteira,atéhoje,escondidaentrepapéis. Era um perigo diário que corria: imaginem se dona Auricídiadescobrisse! Omundo vinha abaixo, com certeza.ManecaDantas, apesarde estar só na sala, olha em redor, se certi ica de que ninguém o espia,abre a carteira e saca, de entre contratos de venda de cacau, uma cartagaratujada comuma letra feia, cheiadeborrõesedeerrosdeortogra ia.Fora Doralice, uma pequena que ele tivera na Bahia, certa vez que sedemorara dois meses na capital fazendo um tratamento na vista.Conhecera-a num cabaré, viveram juntos aqueles meses, de todas asmulheresqueeletiveraelaforaaúnicaquelheescreveraumacartasempedir dinheiro, do princípio ao im. Por isso ele a guardara, apesar deDoralice ser apenas uma recordação vaga e distante, ainda assim docerecordação.OuveospassosdeVirgílio,meteacartanobolso.Oadvogadoentrou,oscáliceseagarrafaseequilibrandonumabandeja.

ManecaDantasbebeacachaça,voltaabaternapobrehistóriaquefora omáximo que sua imaginação conseguira: "que ouvira um boato dequeSinhôBadaroiamandartocaiarDr.Virgílionessanoite,nocaminhodeFerradas,parasevingardamortedeJuca".Virgíliori:

—Mas issoé idiota,Maneca...Totalmente idiota.E logono caminhodeFerradas,umaestradadocoronelHorácio...SeháumlugarseguroéocaminhodeFerradas... E eunão voudeixarmeu cliente esperando.Alémdeque,éumeleitor...

O que lhe parecia cômico era a ideia de uma tocaia contra ele nocaminhodeFerradas,feitaporgentedosBadarós:

—EnocaminhodeFerradas,nasbarbasdeHorácio?ManecasDantasselevantou:—Osenhorquerirporcimadetudo?—Vou,nãotenhadúvida...EntãoManecaDantasperguntou:—Esefosseoprópriocompadrequemquisesse...—OcoronelHorácio?— Ele descobriu tudo. — Maneca Dantas olhava para o lado, não

queriaverorostodoadvogado.

—Descobriuoque?—Osnegóciosdevosmecêmaisacomadre.Tambémessamaniade

carta... Ele foi remexer nas coisas dela. — olhava para o lado, a cabeçabaixa, parecia o culpado de tudo, não tinha coragem de itar o rosto deVirgílio.

Masestenão sentianenhumavergonhadoacontecido.FezManecaDantas sentar-se ao seu lado e lhe contou tudo. As cartas? Sim, escreviacartas, recebia dela também, era uma maneira de estarem próximosnaqueles dias em que não podiam se ver, não podiam estar juntos,entreguesumaooutro.Narroutodooromance,dissedasuafelicidade,dosprojetosdefuga,dasnoitesdeamor.Faloupalavrasapaixonadas,lembrouamortedela.Sim,eletinhacompreendidoodesesperodeHorácionaqueledia emque elamorrera e por isso se ligara a ele, não havia ido embora,ficaraaliparafazer-lhecompanhia.

—EraumamaneiradeestarpertodeEster,compreende?O coronel não compreendia direito, mas essas coisas de amor são

sempre assim... Virgílio fala sem parar. Por que não ia embora? Por quequeria estar ali, perto de Horácio, ajudando o coronel nos negócios? Alitudo lhe lembrava Éster a morte dela o prendera ali para sempre. Osoutros era o cacau que prendia, a ambição de dinheiro. Ele estava presopelocacautambém,masnãoporintermédiododinheiro.Estavapresopelalembrança dela, o corpo que estava no cemitério, a sua presença queestava em toda parte, no palacete de Ilhéus, na casa do Dr. Jessé, ali emTabocas, na fazenda, e em Horácio, principalmente em Horácio... Virgílionão tinha ambições, gastava o dinheiro como um louco, tudo o queganhava,nuncaquiseracomprarroçadecacau,queriaapenasestarpertodelaeelaestavaalinaquelespovoadosenaquelasfazendas,cadavezqueuma rã gritava na boca de uma cobra ele a tinha nos braços novamente,comonaquelaprimeiraveznacasa-grandedafazenda.

—Compreende,Maneca?Erimelancólico,edizqueManecaDantasnãopodecompreende-lo.

So quem teve um amor doido na vida, um amor desgraçado, poderáentender o que ele está dizendo. Maneca Dantas não encontra nadamelhor quemostrar-lhe a carta deDoralice, únicamaneira de expressarsuasolidariedade.

Virgílioalê,aspalavrasumedecemosolhosdeManeca

Dantas:Saudações

Meu querido Maneca estimo que esta mal traçada linha vá Liencontrargozandoperfeitasaúde.ManecavossefoimuitoingratoparamimnãoescreveuasuasempreesquecidaDoralicequeestáasuaespera.Manecaeu mando Li perguntar quando vosse vem para eu li esperar no caes dedesembarque. Maneca todas as noites quando eu vou dormir sonho comvosse. De todos nossos passeio que nós dava eu vosse, Editi e a DandacantandoomaxixedenomeDeiMeuCoração.ManecavossetáemIlhéusnãovápraruadasputasparanãovimfraco.Tumaraquevosse jácheguequeéparanósgozá.Meu ilinhoquandoéqueeutenhoasortedegozáuseubelocorpo???!!! Mas não tem nada u que é seu está guardado. Maneca escrevaparamimquantomaisbrevemilhor.Manecavossemeadisculpeoserronadamais,aceitimuitobeijodasuapretaDORALICE.Nadamais.Olheuendereço98rua2deJulho.Adeusdasua

ESQUECIDADORALICE.

Quandoterminoudeler,Virgílioperguntou:—Erabonita?— Era uma boneca... — a voz de Maneca Dantas está trémula.

Ficaramsemassunto,Virgílioolhandoo coronelqueguardavaa cartanomeio dos papéis que enchiam a carteira. Até ele, um coronel de Ilhéus,tinhaasuahistóriadeamor...Virgílioservemaiscachaça.ManecaDantasvoltaainsistir:

— Eu gosto do senhor, doutor, eu lhe peço que não vá. Tome umnavio,váparaaBahia,osenhoréummoçointeligente,emqualquerpartefazcarreira...

MasVirgíliodizquenão.Nãodeixaráde ir aFerradasnessanoite.Morrernãolheimporta,otristeéviversemEster.Ocoronelcompreende?Quelheimportaviver?Sesentiasujo,metidonaquelevisgodecacauatéopescoço... Quando Ester era viva, restava a esperança de ir embora comela... Agora, nada mais importa... Maneca Dantas lhe oferece tudo o quepodeoferecer:

— Se e for mulher, Doutor, eu lhe dou, se o senhor quiser, oendereçonovodeDoralice...Éumabeleza,osenhorvaiesquecer...

Virgílioagradece:—Você é um homembom,ManecaDantas... É curioso como vocês

podemfazertantasdesgraçase,apesardisso,seremhomensbons...Concluiudeummododefinitivo:—VouhojeaFerradas...Setivertempomorrereicomomandaalei

daqui,aleidocacau,levandoumcomigo...Nãoéassimmesmo?

E,pelanoiteManecaDantasoviupartirmontado,sozinho,rumodeFerradas,seurisotriste.Comentouparasimesmo:

—Tãomoço,coitado!Na estrada, Virgílio ouve a voz que canta sobre os barulhos de

SequeiroGrande:

“EuvoucontarumahistóriaUmahistóriadeespantar...”

Uma história de espantar, a história daquelas terras, a históriadaquele amor. Uma rã grita na boca de uma cobra. Uma vez Virgíliosonhara um sonho romântico: aparecera à noite, num cavalo preto, navaranda da casa-grande. Seria a enorme lua amarela no céu, sobre oscacaueiros e sobre a mata. Ester o esperaria medrosa e tímida, afoitaporém no seumedo e na sua timidez, ele nem pararia o cavalo. Tomariadela pela cintura e a poria na garupa, partiriam por entre as roças decacau, cortariam as estradas, os povoados e as cidades, cortariamno seucavalo negro o mar dos transatlânticos e dos cargueiros, iriam no seugalope para outras terras distantes. Silva a cobra, grita a rã assassinada.Ester vai na garupa do cavalo, de onde veio ela? Virgílio solta a rédea,deixaqueocavalocorra.Oventocortaseurosto.Estervaiseguranasuacintura.Umahistóriadeespantar.Irãoparao imdomundo,ospéslivresdovisgodecacaumolequeosprendeali...essecavalotemasas,irãoparamuito longedascobras,das rãsassassinadas,paramuito longedas roçasdecacau,doshomensmortosnaestrada,dascruzes iluminadasporvelasnasnoitesdesaudade.Pelosaresvaiocavalonegrosobreasroças,sobreasmatas, sobreasqueimadase clareiras.Estervai comVirgílio, gemerãode amor na noite de luar. Vão pelos ares, é desenfreado o galope docavalo... O luar envolve a noite, chega uma música de longe. Umhomemcanta:

"Eujáconteiumahistória,Umahistóriadeespantar."

E como umamarcha nupcial. Nunca ninguém saberá que o últimoverso daquela história seria escrito nessa noite, na estrada de Ferradas.Que importa a morte, um tiro no peito, uma cruz na estrada, uma velaacendidaporManecaDantas,seEstervaicomelenagarupadoseucavalonegroparaoutrasterrasquenãosejamessasterrasdocacau?Amúsicao

acompanhacomoumamarchanupcial.Umahistóriadeespantar.

3

A cidade de Ilhéus despertou emocionada. As ruas estavamatapetadasdeflores,bandeiraspendiamdasjanelasdossobrados,ossinosrepicavam festivos na manhã alegre. A multidão se encaminhava para ocais, enchia a ponte de desembarque. Vinham os colégios: as moças doGinásio Nossa Senhora da Vitória que era o colégio das freiras, recém-terminado e que dominava a cidade do alto do morro, os meninos emeninas dos colégios particulares, os mais pobres do Grupo Escolar.Vinham todos nos uniformes de festa, as moças do colégio das freirastraziamuma itaazulsobreosvestidosbrancos,símbolodecongregaçõesreligiosas. A Banda de Música passou também, no vistoso uniformevermelho e negro, tocando marchas na manhã movimentada. Brazcomandavaossoldadosdepolíciaquelevavamosfuzisaoombro.Napontese apertavam os homens mais importantes da cidade, envergando osfraques negros das grandes ocasiões. Dr. Jessé, atual prefeito de Ilhéus,suava sob o colarinho duro, recordando as frases do discurso que iapronunciar dentro em pouco e que levara dois dias decorando. SinhôBadaróveiotambém,coma ilhaeogenro,ocoronelcoxeavaumpoucodaperna direita, a que fora ferida no assalto à casa-grande. No porto,governistas e oposicionistas se confundiam, misturados entre padres efreiras.AtéFreiBentodesceradeFerradas,conversavacomasfreirasnasua língua atrapalhada. O comércio fechara nesse dia, a multidão seespalhavapelocais.

Avendadoespanhol,queerapertodaponte,estavacheiadegente.O de anelão falso, que perdoara generosamente ao espanhol as suasinformaçõesápolícia,diziaaodecoleteazul:

—OraumBispo...EoqueéumBispoparase fazer tantobarulho?UmavezeuconheciumArcebisponoSul.Sabeoqueparece?Pareceumalagostacozida...

Odecoleteazulnãodiscutia.Podiaserverdade,quemsabe?Nessedia chegava o primeiro Bispo de Ilhéus. Um recente decreto papalpromovera a paróquia de Ilhéus a diocese. Um cónego da Paraíba forasagradoBispo.OsjornaisdaBahiadiziamqueeraumhomemdegrandesvirtudes e grande saber. Para Ilhéus era o Bispo, era a importânciaadquirida pela cidade, era o progresso. Apesar da falta de religiosidade

que, segundo o cónego Freitas, caraterizava essa terra, Ilhéus estavaorgulhosadepossuirumBispoesepreparavapararecebê-loregiamente.

Genteveiocorrendopelapraia,jáseavistavaonaviopertodapedradoRapa.Pelasruasestreitaspassavamhomensemulheresapressados,acaminhodoporto.Asbeatas levavamxalesnegrosnacabeça,nãopodiamsequer falar de tão nervosas. Asmoças e os rapazes aproveitavam paranamorar. Até prostitutas tinham vindo,mas olhavamde longe, so haviamjuntadoemumgrupoalegrepordetrásdasbarracasde vendadepeixe.Passavam padres, os habitantes da cidade se perguntavam de ondehaviam saído tantos. Chegaram, dos povoados do interior, os vigários deItapiraedeBarradoRiodeContas,haviam feitoumaviagemdi ícilparavircumprimentaroBispo.

Um grande tapete se estendia na ponta de desembarque, era otapetedaescadarianobredaPrefeitura.SobreeleoBispopisaria.

O navio começou a cruzar a barra, vinha embandeirado, apitoulongamente. Foguetes espocaram no ar, na ilha do Pontal. Os soldadosdisparavam seus fuzis, num arremedo de salva. Os padres, o Prefeito, oscoronéis e as freiras, os comerciantes ricos também se adiantaram pelaponte.Onavioatracouentrevivas,osfoguetessubiam,explodiamporcimadacidade.Ossinosbadalavam,oBispodesceu,eraumhomenzinhobaixoegordo.Dr.Jesséiniciouseudiscursodeboas-vindas.

AmultidãoacompanhouoBispoatéácasadocônegoFreitas,ondehouve um almoço íntimo, as pessoas gradas apenas. A tarde rezou-sebênção solenenaCatedraldeSão Jorge.ManecaDantas levouos ilhos, oque se chamava Rui declamou uns versos saudando o "pai espiritual". Oprelado louvou a precoce inteligência da criança. Sinhô Badaró tambémvisitouoBispo,pediusuabênçãoparaonetoqueianascer.

Anoitehouvefogosdearti ício,enquantonaPrefeiturasecelebravaograndebanquetequeacidadedeIlhéusofereciaaoseuprimeiroBispo.O novo promotor falou em nome do povo, o Bispo agradeceu em brevespalavras, dizendo de sua satisfação em se encontrar entre os grapiúnas.Logodepoisdobanquete,obisposeretirou,estavacansado.Masafestaseprolongou,e,porvoltadasduasdamadrugada,Dr.Ruisaiu inteiramentebêbedo.Iatropeçandopelarua,nãoencontravaninguém,nocaisdeparoucomohomemdoanelãofalsoe,áfaltadeoutro,lheexplicouasuateoria:

—Emroçadecacau,nessasterras,meu ilho,nasceatéBispo,nasceestrada de ferro, nasce assassino, caxixe, palacete, cabaré, colégio nasceteatronasceatécobra.Essaterradátudoenquantodercacau...

OquenãoconcordavacomoartigoqueoDr.Ruipublicaranessedia

em"AFolhadeIlhéus".Aliás,pelaprimeiravez,opensamentode"AFolhade Ilhéus"coincidiacomode"oComércio".Exaltavamambosoprogressodo município e da cidade, ressaltavam a importância da vinda do Bispofaziam ambos profecias sobre o futuro esplendoroso reservado a Ilhéus.ManueldeOliveiraescrevia:"Aelevaçãoadiocesenãoésenãoumatodereconhecimento ao progresso vertiginoso de Ilhéus, conquistado pelosgrandes homens que sacri icaram tudo ao bem da pátria:' E Dr. Ruiconcordava no outro jornal: "Ilhéus, berço de tantos ilhos trabalhadores,de tantos homens de inteligência e de caráter que abriam clareiras decivilizaçãona terranegraebárbaradocacau."Eraaprimeiravezqueosdoisjornaisestavamdeacordo.

O entanto, se equilibrando no cais, Dr. Rui repetia, aos berros, aohomemdoanelãofalso:

—Tudoéocacau,meu ilho...NasceatéBispoempédecacaueiro...atéBispo.

Paraodoanelãofalsonadaeraimpossívelnomundo:—Edaí,quemsabe?

4

E,apósaseleiçõesquelevaramoDr.JesséFreitasàCâmaraFederalcomo deputado do governo ("que irá fazer lá essa cavalgadura?",perguntaraoDr.Ruiaosconhecidos),equetransformaraointerventoremgovernador constitucional do Estado, um decreto criou o município deItabuna,desmembrando-ododeIlhéus.Asededonovomunicípioeraoex-arraialdeTabocas,agoracidadedeItabuna.Umapontesobreorio ligavaosdoisladosdajovemcidade.

Horácio,quetinhaelegidoManecaDantasparaPrefeitodeIlhéusnavaga de Jessé, elegeu para Prefeito de Itabuna o seu Azevedo, aquelemesmodalojadeferragensqueforahomemdevotadodosBadaróseporeles se arruinara. Seu Azevedo não sabia estar por baixo em política eentrara em acordo com Horácio. Seus eleitores haviam votado para Dr.Jessé na chapa de deputados, seu Azevedo em troca ganhou a novaPrefeitura.

Nodiadapossearmaramcom lorese folhasdecoqueiroumarco-de-triunfo na Praça da Matriz. Num recorde de tempo havia sidoconstruído um prédiomoderno para a Prefeitura. De Ilhéus chegara umtremespecialtrazendoHorácio,oBispo,ManecaDantas,ojuiz,opromotor,

fazendeiros e comerciantes, senhoras e moças. Toda a gente importantedaquelaquepassouasera"cidadevizinha".Naestação,oshabitantesdaItabunaseempurravamparaapertaramãodeHorácio.

A posse do primeiro Prefeito foi solene. Seu Azevedo ao prestarjuramento, jurou também, no discurso que pronunciou, eterna idelidadepolítica ao Governador do Estado e ao coronel Horácio da Silveira,"benfeitor da zona cacaueira". Horácio o olhava com seus olhos miúdos.Alguémmurmurouao ladodocoronel, se referindoàpouca idelidadedeseuAzevedoaospartidos:

—Quemnãoteconhecequetecompre,cavalovelho...MasHorácioacrescentou:—Elevaiandarcomarédeacurta.A tarde houve quermesse na praça, leilão de prendas, retreta. A

noite o grande baile no salão principal da Prefeitura. As moças e osrapazes dançavam. O Bispo não achou conveniente icar no salão dedanças, foi para outra sala, onde estavam servindo o buffet. Doces inosencomendadosàs irmãsPereiras, "verdadeirasartistas", segundoManecaDantas que era conhecedor. E toda classe de bebidas desde champanhaaté cachaça. Em torno ao Bispo se formou uma roda, Horácio, ManecaDantas,seuAzevedo,ojuiz,Braz,váriosoutros.Encheram-seastaçasmaisinas com o mais ino champanha. Alguém brindou pelo Bispo, depois opromotordeIlhéus,quequeriaagradaraHorácio, levantousuataçaparabrindarpelocoronel.Fezumbrevediscursoexaltandoa iguradeHorácio.Terminou lamentando inocentemente que "não estivessem ali ao lado docoronelHorácioda Silveira, nestahorado seugrande triunfode cidadão,nem a sua dedicada esposa, a sempre recordada dona Ester, vítimaabnegadadoseudevotamentoeamoraoesposo,nemaqueleinesquecívelcidadão que tanto trabalhara pelo progresso do novel município deItabuna,Dr.VirgílioCabral,quemorreranasmãosdemesquinhosinimigospolíticos!"Ooradora irmouqueissosederanostempos,próximosejátãodistantes,emquetodaviaacivilizaçãonãoalcançaraessasterras,quandoItabuna ainda era Tabocas. "Hoje esses fatos, disse, são apenasrecordaçõestristeselamentáveis:'

Suspendeuataçabrindando.Horácioestendeuamão, levantousuataça também, bateu com ela na do promotor bebendo em lembrança deEsteredeVirgílio.Quandooscálicesseencontraram,sonoridadesclarasepequenasseelevaramnoar.

—Cristalbacarat...—disseHorácioaoBispoqueestavaaseulado.Esorriuumsorrisocheiodedoçuraedesatisfação.

5

Cincoanosdemoravamoscacaueirosadarosprimeirosfrutos.MasaquelesqueforamplantadossobreaterradeSequeiroGrandeenfloraramno imdoterceiroanoeproduziramnoquarto.Mesmoosagrónomosquehaviam estudado nas faculdades,mesmo osmais velhos fazendeiros queentendiamdecacaucomoninguém,seespantavamdotamanhodoscocosdecacauproduzidos,tãoprecocemente,poraquelasroças.

Nasciamfrutosenormes,asárvorescarregadasdesdeostroncosatéosmaisaltosgalhos,cocosdetamanhonuncavistoantes,amelhorterradomundoparaoplantiodocacau,aquelaterraadubadacomsangue.

FIM


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