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Sem Vestígios

Date post: 21-Jul-2016
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Description:
"Caso algum dia alguém reúna esses documentos que deixarei escritos ou, quem sabe gravados, eu recomendo que, com cuidado, os fatos sejam analisados e revelados para o povo brasileiro e a quem interessar, como a única forma que tenho de me redimir, mesmo após minha morte”. A fala é do Carioca, o narrador principal do livro Sem Vestígios, da jornalista Taís Morais, autora do também polêmico Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha. A autora, que recebeu este diário confidencial, deu voz ao militar, ex-agente secreto da ditadura, que nos traz revelações espantosas sobre as ações de quem, em nome da defesa da democracia, combatia os grupos de esquerda prendendo, interrogando, torturando e executando pessoas, algumas delas inocentes. “Sem vestígios – revelações de um agente secreto da ditadura militar brasileira” é um livro quase inacreditável, de embrulhar o estômago.
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Transcript
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tAÍS MoRAIS

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TAÍS MORAiS

SEM VESTÍGIOS

Copyright © 2008 by Taís Morais

1ª edição – outubro de 2008

Editor e PublisherLuiz Fernando Emediato

Diretora EditorialFernanda Emediato

Capa………

Projeto Gráfico e Diagramação Alan Maia

RevisãoMarcia Benjamim de Oliveira

Índice OnomásticoMarcia Benjamim de Oliveira

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Morais, TaísSem vestígios : revelações de um agente secreto

da ditadura militar brasileira / Taís Morais. --São Paulo : Geração Editorial, 2008.

ISBN 978-85-61501-09-9

1. Agentes secretos 2. Brasil – História 3. Comunismo 4. Ditadura – Brasil – História 5. Guerrilhas – Araguaia, Rio, Vale

6. Manuscritos 7. Militarismo – Brasil 8. Reportagem investigativa I. Título.

08-09689 CDD: 070.44932098108

Índices para catálogo sistemático

1. Brasil : Ditadura militar : Reportagem investigativa070.44932098108

GERAÇÃO EDITORIAL

ADMINISTRAÇÃO E VENDAS

Rua Pedra Bonita, 870 CEP: 30430-390 – Belo Horizonte – MG

Telefax: (31) 3379-0620Email: [email protected]

EDITORIAL

Rua Major Quedinho, 111 – 20º andarCEP: 01050-030 – São Paulo – SP

Tel.: (11) 3256-4444 – Fax: (11) 3257-6373Email: [email protected]

www.geracaoeditorial.com.br

2008Impresso no Brasil

Printed in Brazil

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Esclarecimento do editor ...............................................................9

Agradecimentos ................................................................................13

Um manuscritos solto .....................................................................15

IntRodução

Refeição especial para um homem com pressa ................................. 19

Um homem e suas memórias, em total solidão ................................. 23

Vara de marmelo cortando a pele ......................................................27

Cacos de espelho na memória ............................................................30

“Minha mãe não pode saber” ............................................................. 32

Ida e volta ao inconsciente .................................................................. 35

O quartel, um país à parte .................................................................. 37

A lógica da farda ..................................................................................40

Os donos da vida e da morte ..............................................................42

Criatividade para seguir as regras ......................................................45

O providencial tampão .......................................................................47

O batismo de fogo ...............................................................................49

Segurança da autoridade máxima ...................................................... 53

O apartheid ainda mais evidente ........................................................ 55

Parte 1

DA INFÂNCIA À FORMAÇÃONO APARTHEID

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Aprendendo com o inimigo ...............................................................59

Atirou no que viu e acertou no que não viu ......................................62

Discreta perseguição a Manuel ...........................................................64

Uma solene especialidade ...................................................................67

Atenção, qualidade básica de um agente ............................................69

Lábia e dinheiro para aliciar informantes .......................................... 74

A morte como “acidente” de trabalho ................................................79

Linha-dura com acessos de brandura ................................................ 83

Nos braços da jovem boiadeira ..........................................................86

Arranjos internos, sem vestígios à superfície .....................................88

Agente se dá mal, denunciando corrupção ........................................93

Jibóias incomodam muita gente .........................................................96

Sumiram com o homem, de madrugada ...........................................99

A sucuri aperta o cerco ..................................................................... 105

Perigo entre o nada e lugar nenhum ................................................. 112

Teatro burlesco, em plena missão ......................................................118

A tortura, para começo de conversa ..................................................121

Cabra corajoso, não abriu o bico ...................................................... 124

O mal cortado pela raiz, sem exceções ............................................. 128

Do sono induzido à morte .................................................................134

“Agora sou um assassino” ..................................................................138

Cremação, para evitar o culto aos mártires ..................................... 142

Um deslize acaba com o Destacamento A ....................................... 146

O macabro adubo na Serra das Andorinhas ..................................... 151

A chacina da Rua Pio XI ....................................................................156

Parte 2

As PRIMEIRAs MIssõEs,NEM sEMPRE ORTODOxAs

Parte 3

CAÇADA FINAl NO ARAguAIA

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Noite avançada, “Juritis” de armas em punho ..................................163

De volta à civilização, com os mistérios de sempre ......................... 166

UM CADÁVER ENTERRADO EMBAIXO DA BANANEIRA ...... 169

Carnificina na serra de Petrópolis .....................................................172

Mucuna pruriens para os estudantes ................................................ 178

Improviso com chapéu alheio ...........................................................185

Seqüestro à altura das chanchadas da Atlântida .............................. 190

Contribuições providenciais dos empresários ................................. 197

Uma bomba explode no colo da repressão ......................................200

O casamento desmorona, também ..................................................202

Do diário de um atormentado I... ....................................................205

A terrível sina da aposentadoria .......................................................209

As descobertas, no ostracismo .......................................................... 212

Do diário de um atormentado II... ................................................... 214

Do diário de um atormentado III... ................................................. 216

Nota da autora ................................................................................... 219

ANExOs

Confidências de um coronel ............................................................. 225

A Estrutura do CIE nos anos de repressão.......................................230

As principais agências de inteligência do mundo ............................ 232

Índice Onomástico ........................................................................ 235

Parte 4

O lENTO E gRADATIvOOCAsO DO REgIME

Parte 5

O PREsENTE sEM FuTuRO

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DA INFÂNCIAÀ FORMAÇÃO

NO APARTHEID

Parte 1

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Carioca é, ao mesmo tempo, um brasileiro típico e uma exceção.

Exemplo claro de migrante que saiu da vida rural para a urbana. No

momento em que acontecia essa transição, o país aos poucos altera-

va o perfil de sua população. A constante migração foi transformando as

cidades em aglomerados de intenso contraste entre a riqueza mais ostensiva

e a pobreza absoluta. O trabalho, em determinados segmentos, podia fazer

diferença no destino de miséria.

Não necessariamente alçava um cidadão ao topo da pirâmide, mas ao

menos não o condenava a viver para sempre em uma favela ou cortiço, ex-

posto às piores mazelas de um ambiente hostil pela degradação social.

Foi esse o caminho traçado por Carioca. Ele nasceu em uma casinha

simples no Rio de Janeiro. Pouco recorda da sua infância, mas mantém viva

a memória mais agradável: o cheiro forte de melaço de cana misturado com

farinha, refeição básica, servida pela mãe, enquanto ele ainda não podia ma-

nejar direito a colher e a vasilha.

Seu pai foi embora quando ele completou dois anos de idade. Desapareceu

do imaginário do menino, que, em seguida, foi acolhido pelos parentes mater-

nos, enquanto a mãe recuperava-se da perda. Seu terceiro ano de vida foi marca-

do pela volta ao lar, quando seus tios trouxeram ao mundo sua primeira filha.

Mas o motivo do regresso não foi o bebê e sim o pedido da mãe — que-

ria o filho de volta. Naquele curto espaço de tempo, ela unira-se com Séba,

um trabalhador rural, empregado na fazenda de dois irmãos. O filho de um

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deles, batizado com o nome do personagem bíblico Noé, foi um dos grandes

companheiros de infância de Carioca. Brincavam construindo carrinhos

com carretéis vazios de linha de costura. O nome do amigo era um convite

à imaginação, porque as crianças ouviam histórias do livro sagrado, e o ho-

mem que construiu a grande arca, salvando animais do dilúvio universal,

Noé, assumia proporções heróicas para a molecada.

A família de Carioca logo se mudou da velha e triste casa de pau-a–pi-

que, onde ele nasceu, para as acomodações de empregados na fazenda de

um dos patrões, Nicolau, ou Lalau, como era conhecido. Foi um progresso,

mas aquele lugar ficou marcado por um acontecimento doloroso. Um dia

seu padrasto chegou em casa cego de raiva e, sem nenhuma explicação, agar-

rou o garoto e lhe deu uma surra que parecia interminável. A vara de mar-

melo cortava a pele fina da criança, quase chegando aos ossos. Uma tortura

que o menino enfrentou urrando de dor. O choro aos poucos foi se transfor-

mando em tremenda indignação, e Séba jamais foi perdoado. O fato — inex-

plicável e gratuito — marcaria a relação de ambos dali em diante.

A vida no interior não dava margem a muita conversa. Levar uma surra

sem saber o motivo não era lá uma raridade naquelas plagas, da mesma

forma que a independência das crianças que se viravam como podiam, sol-

tas pelos campos desde cedo. Ninguém ficava vigiando seus passos, como

acontece com as famílias da cidade. Nem queria saber dos acontecidos quan-

do a filharada estava longe de suas vistas.

Assim, o que vivia, Carioca guardava para si, com medo das conseqüên-

cias. Mesmo que fosse um acidente, por isso nunca contou em casa a tarde

em que esteve próximo da morte. Vagando pelos campos, viu um grupo de

mulas e se aproximou para conferir de perto a estrutura dos animais. Sua

memória guardou uma de cor cinza, com linha preta, que ia do pescoço ao

rabo. Ele ficou bem perto dela e, de repente, um potente coice o atingiu, por

sorte apenas de raspão. Sentiu o casco poderoso triscar sua virilha. Se pegas-

se em cheio, podia ter lhe matado. Ele, assustado, tratou de correr para casa

com o coração saindo pela boca. Ninguém soube de nada. Ele tinha pavor de

levar uma surra pela ousadia. Aos poucos aprendia a guardar seus segredos.

No futuro, esse exercício seria de grande valia...

Carioca teve uma infância sem grandes privações. A comida farta sempre

esteve à mesa. E não só arroz e feijão, também carne para a mistura. Havia

criação no quintal, mas Séba — junto com alguns conhecidos — gostava de

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roubar galinhas e porcos em fazendas vizinhas. Quando soube disso, por

acaso, o menino entendeu a razão de tal abundância. Tinha mesmo de exis-

tir um motivo extra, porque o dinheiro do trabalho mal dava para as despe-

sas básicas: calçados, roupas, ferramentas.

Além de aliviar a vizinhança de uma ou outra criação, Séba era excelente

caçador de tatu, macaco, porco-do-mato. Usava uma arma de ripa flexível

em forma de arco, tendida por dois cordões, com uma esteirinha no centro.

Um bodoque peculiar. Certo dia, sem prestar atenção no alvo, abateu uma

macaca que carregava o filhotinho nas costas. Ao ver o animalzinho desam-

parado, sentiu pena e remorso. Levou o bichinho para casa, e ele se tornou

de estimação. Nunca mais atirou em macacos. No fundo, não era mau. Ape-

nas um sertanejo endurecido pela rotina, e que vez ou outra se enchia de

ternura pela própria natureza.

Carioca também era bom caçador. Aprendeu a armar arapucas e captu-

rar pássaros sem a culpa que atormentava seu tio Álvaro, vítima de uma

doença crônica no estômago.

Um dia, Álvaro, muito católico e martirizado pelo desconforto, fez pro-

messa: se sarasse, nunca mais abateria juriti, o tipo de pombinha que mais

apreciava em suas refeições. E não é que a tal da promessa funcionou? Foi aí

que Álvaro parou de caçar juritis, ao contrário do sobrinho, que vivia caçando

essas e muitas outras aves características daquele mundão: sabiás, bem-te-vis,

sanhaços. Matava, limpava e pendurava em cima do fogão à lenha, gostava de

comê-las bem fritinhas. Tão bom... O sabor nunca lhe saiu da memória, nem

o dos quitutes incomparáveis de sua mãe, que tirava um dia da semana para

fazer quitandas. Biscoitos de polvilho e bolos. Ah, o aroma do bolo de fubá

quentinho, servido com café coado na hora ainda habita sua memória!

Muitas vezes, os parentes vinham para um dedo de prosa na hora do

lanche. Os primos se reuniam em algazarra. Tardes cheias de delícias e ale-

gria, para quebrar a solidão e o silêncio do interior.

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Até os cinco anos de idade, Carioca nunca usara sapato ou botina.

Nem sabia direito o que era aquilo, acostumado a correr pelos cam-

pos com os pés descalços, já calejados pelo trato direto com a terra.

Um dia sua mãe apareceu com um presente: um calçado parecido com as

botas dos donos da fazenda. Ao provar, ele se sentiu desengonçado, mas ex-

perimentou. Não tardou a sentir o conforto. Que maravilha estar a salvo de

ferir os pés na vegetação ou nas pedras do caminho!

Daqueles tempos, ficaram gravados poucos momentos. Em especial, os

mais dramáticos. Mesmo assim, picados como cacos de espelho. De uma

seqüência, fragmentos e sensações, como a de um mergulho no riacho frio e

turvo nas proximidades da fazenda. Ele fora a um passeio com seus tios e

primos. Para juntar-se à brincadeira dentro d’água, mergulhou... sem saber

nadar... Seu frágil corpo foi afundando enquanto ele tentava desesperada-

mente se agarrar a algo que não existia. Com olhos esbugalhados, nada en-

xergava, somente sentia a água entrando pela boca, nariz e ouvidos. Perdeu

a consciência e só acordou com a relva macia debaixo dele. Sem saber ao

certo quem o havia tirado da água, sentia um alívio misturado ao desconfor-

to do peito dolorido, e a dificuldade de respirar, mas feliz por ter seu corpo

escorado em terra firme, e o céu bem azul lá em cima. Os parentes assusta-

dos tratavam de reanimá-lo. Por pouco não partiu desta para melhor... Mal

recuperou o fôlego, pegaram o caminho de volta para casa. Uma boa cami-

nhada que, em condições normais, era uma delícia, mas com a roupa

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encharcada e a sensação de enjôo e zonzeira, virou um martírio. Bastou

entrar na cozinha, se deparar com os cheiros familiares e com a quentura

confortável do fogão à lenha, para esquecer sua desventura daquele dia.

Entre os cacos espalhados na memória, a triste lembrança dos longos

períodos de ausência da escola. Ele gostava demais daquele ambiente de car-

teiras envernizadas e do quadro negro cheio de palavras. A professora, dis-

posta a fazer os alunos decifrarem os mistérios das palavras e dos números,

apresentava-lhe um mundo novo, interessante e vasto. Tão diferente da ro-

tina interiorana. De quando em quando, para desespero do menino, era

afastado desse convívio gratificante com mestres e colegas. Sua mãe deixava

a cidade e voltava para a antiga vila natal e depois partia para outro núcleo

urbano, em idas e vindas que ele demorou a compreender: tinham a ver com

o desgaste do casamento. As relações com Séba estavam cada vez mais ten-

sas. Não tardariam a separar-se, mas, até esse triste final de caso, eram dis-

cussões diárias, observadas por uma criança impotente para prestar qualquer

ajuda à mãe.

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Quando finalmente a mãe de Carioca ficou sozinha, fixou residência

em outra cidade. Ele estava entrando na adolescência e tornou-se

um sincero e dedicado praticante da religião católica. Certo de que,

ajudando nas missas, como coroinha, se aproximaria de Deus, não tardou a

ser admitido em um seminário. Tornou-se um aluno em vias de seguir a

carreira religiosa. A instituição ficava em outra cidade. Inteligente e observa-

dor, mais tarde perceberia — graças a um nefasto acontecimento — que a

garotada passava por uma lavagem cerebral. Apenas os ensinamentos ali

apresentados eram corretos. Do cerimonial complexo à obediência cega à

vontade de Deus. Todos eram obrigados a seguir rigorosamente os Dez

Mandamentos, acrescidos das normas e regulamentos estipulados pela Igre-

ja. Com a promessa de que vivendo uma vida “perfeita”, à luz dos cânones,

iriam para o céu direto, sem escalas.

Enquanto ainda se empenhava em cumprir toda a liturgia, admirava os

santos que haviam se dedicado a uma vida simples, casta e desapegada,

como Francisco de Assis, Domingos Sávio e Luís Gonzaga. Aos onze anos,

procurava praticar uma boa ação a cada dia. Ajudava os outros com aguçado

espírito de solidariedade. Não tinha dúvidas sobre aquele caminho pontua-

do pela oração e renúncia aos desejos do corpo escolhido por ele. Para um

jovem tão ingênuo, ele viveria uma tremenda decepção aos treze anos.

Certo dia machucou-se jogando bola. Por causa da dor, começou a man-

car. Dispensado do trabalho de preparação da missa, saiu em busca de ajuda.

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A pessoa certa a procurar era o admirado monsenhor Marcos, responsável

pelas verbas públicas que alimentavam o Colégio Monfort e o Seminário

Menor dos Irmãos de São Gabriel. Ele pediu que o garoto lhe mostrasse

onde doía e que seria preciso fazer um curativo. Estranhamente, não na en-

fermaria, mas no quarto do padre. Tão logo ficaram sozinhos, com a porta

fechada, a volúpia incendiou os olhos daquele homem. Começou a tocar o

pênis do menino, que, apavorado e tomado pelo asco, repeliu a investida e

saiu às pressas da cela, que antes era tida como um santuário.

A partir daquele momento, nada mais foi como antes. Comungar tor-

nou-se uma experiência demoníaca. Ele olhava os colegas e, sabendo que

muitos aceitavam o assédio com medo de falar a respeito, pediu para ir em-

bora. Nunca mais voltou e nem deu explicações sobre sua saída.

De volta à terra natal, e ao convívio com a mãe, passou a trabalhar como

servente de pedreiro. Tinha de ajudar nas despesas da casa e cuidar do seu

próprio sustento. Era uma tarefa penosa. Ficava com os pés e as mãos corro-

ídos pela cal. Quando não agüentava mais a dor das chagas abertas, se afas-

tava até sarar, vivendo de suas economias. À procura de uma tarefa menos

sofrida, acabou mudando para uma cidade no interior de São Paulo, traba-

lharia como lavrador. O salário era bem melhor e o primeiro foi todo gasto

em roupas, sapatos, meias, loção de barbear e até perfume. Resultado: ne-

nhum tostão até o próximo pagamento.

Certo dia resolveu fazer as malas e voltar. Não sabia que sua mãe se muda-

ra para uma vila próxima àquela em que haviam morado. Depois de um tem-

po sozinha, encontrara um novo amor. Seu companheiro a ajudava muito,

inclusive na obtenção de trabalho. Mas a relação não foi muito duradoura, e

depois de separar-se dele, sem jamais contar o porquê, ela voltou para a antiga

casa e nunca mais quis ter outro namorado. Perdera o interesse pelo amor?

À margem das vivências de sua mãe, aos 16 anos Carioca já sabia bastan-

te sobre a vida, mas não estava totalmente preparado para todas as surpresas

vindouras. Como o episódio que tratou de manter em segredo. Por compai-

xão, e a pedido de sua mãe, foi visitar uma amiga da família que andava se

queixando muito de solidão e de uma doença. Ao entrar na casa, encontrou

um ambiente lúgubre e pesado. Os poucos cômodos eram pintados de um

azul descontínuo, manchado. A tinta estava descascada, aqui e ali. Enquanto

atravessava aquele lugar sombrio, quase arrependido da gentileza, ia sentin-

do um peso estranho, quase asfixiante, pena da solidão e decadência do local.

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Até mesmo para ele que vivia em condições tão pobres, aquilo pareceu triste

demais. Era muito jovem para entender certas coisas, estava diante do des-

conhecido e do imponderável.

Devagar, e tentando abafar o ruído dos próprios passos, aproximou-se

da cama onde a mulher — ainda mais pálida pelo contraste da pele com os

cabelos escuros espalhados no travesseiro — parecia dormir, com a respira-

ção alterada. Ele ouvia nitidamente o arfar do peito. Sentou-se com todo o

cuidado ao lado dela, pronto para confortá-la de alguma maneira. Sem uma

única palavra, mas com um gesto rápido e decidido, ela puxou o garoto para

si. Surpreso, ele se deixou abraçar, acariciar, apertar e despir. Nada fez para

detê-la. Entregou-se submisso e inebriado. Entre a excitação e a culpa, sua

primeira experiência sexual. O cheiro asfixiante daquele quarto nunca mais

se apagou da sua memória. Nem os fragmentos captados de relance, como o

revelador espelho de cristal da penteadeira, repleta de vidros de perfume e

batons. Não se recorda como se preparou para ir embora, certamente a rou-

pa fora vestida às pressas. Mas a sensação sim, essa ficou. Saiu dali flutuando,

e com uma única frase na cabeça: “Minha mãe não pode saber”.

Realmente, nunca soube. Carioca jamais tocou no assunto. Ambos, sem-

pre estavam em busca de trabalho, com pouco lazer, e sem o hábito de con-

versar amenidades. Para ganhar um dinheirinho a mais, aceitava qualquer

emprego. Trabalhou no bar da rodoviária, em uma pensão e até em uma

oficina de recapeamento de pneus.

Em 1962, Carioca aceitou o convite para trabalhar como frentista num

posto de gasolina. Logo foi promovido, de tão esperto que se mostrava. Em-

bora desse plantão nas bombas, uma noite por semana, passou a comprar

combustíveis também. Naquelas longas madrugadas, conheceu duas prosti-

tutas que faziam ponto nas proximidades. Elas, enquanto aguardavam o

aparecimento de algum interessado em seus serviços, gastavam as horas

conversando com o jovem. Falavam sobre anseios, mágoas, tristezas, alegrias

e dificuldades. Quando amanhecia, elas se despediam. Vez por outra, uma

delas seguia com ele para seu quarto de pensão. Era sempre a jovem Marli,

uma índia Carajá de cabelos negros e lisos, corpo firme e moreno. Ele gosta-

va de estar ao lado daquela mulher. Não era bem um namoro, e sim um

alívio para a solidão de ambos. Durou alguns meses, mas ela foi embora da

mesma forma como havia aparecido. Sem aviso nem despedida. Jamais a

veria novamente. Apenas em suas lembranças.

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L ogo Carioca mudou-se para Niterói. Arranjara um emprego de re-

cepcionista em um hotel. Além de cuidar da entrada e registro de

hóspedes, administrava as refeições para assegurar que tudo corres-

se bem. Não raro, conversava com os hóspedes. Assim, conheceu um médico

especializado no inconsciente. Sempre disposto a falar a respeito do tema

que o apaixonava, discursou para aquele jovem atento e inteligente. Carioca

sorvia os ensinamentos como se fosse água fresca da nascente.

O doutor dizia, com uma certeza contagiante, que a capacidade intelec-

tual do ser humano é ilimitada. E que é possível — para qualquer pessoa

— alcançar as profundezas dos outros. Para provar, uma tarde chamou a

esposa, que o acompanhava na viagem, e, diante de Carioca, disse:

“Vem cá, vou te hipnotizar.”

“Não, pelo amor de Deus, não faz isso agora”, ela sussurrou, praticamen-

te suplicando, com olhos tristes e uma expressão de medo no rosto.

“Vou fazer, sim”, ele afirmou, sem dar a ela nenhuma margem de

contestação.

No mesmo instante, com uma seqüência de frases ele a hipnotizou. Ela,

obviamente estava condicionada a entrar em transe com aquela seqüên-

cia-chave de palavras. Ele fez a esposa dançar com uma vassoura como se

ele a estivesse conduzindo. Ela se entregou aos movimentos com uma ele-

gância ímpar, como se deixasse conduzir pelo parceiro ao ritmo de uma

trilha imaginária. Assim permaneceu pelo tempo que ele quis, e só saiu

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daquele estado quando o marido ordenou que voltasse ao normal, com

outra série de palavras.

A cena ficou gravada na mente do jovem de forma completa, e não como

um quebra-cabeças. A partir daquele momento ele decidiu conhecer tudo

sobre o inconsciente; um exercício que o acompanharia por toda a vida. Lia

tudo que lhe caísse nas mãos, e tratava de experimentar qualquer coisa que

tivesse a ver com o controle da mente, fosse por instrumentos pouco orto-

doxos, como a ioga, ou por duvidosas apresentações de mágicos dispostos a

provar que podiam usar a hipnose coletiva com absoluto sucesso. Aos pou-

cos foi aprendendo como funcionavam os processos de convencimento.

Descobriu que se conseguisse invadir o inconsciente de uma pessoa, ob-

teria dela o que quisesse, contudo, ao mesmo tempo, havia quem fosse mais

facilmente hipnotizável e não impunha barreiras para deixar-se persuadir.

Leu em algum estudo que cerca de dez por cento dos seres humanos, ao

contrário da maioria, são imunes à sugestão. Usaria esse arcabouço de co-

nhecimentos em sua vida profissional, mais tarde, para obter as mais terrí-

veis confissões. Com sucesso.

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