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IGOR POLATSCHEK HIP HOP VERSUS...

Date post: 11-Oct-2020
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA BACHARELADO EM PRODUÇÃO E POLÍTICA CULTURAL IGOR POLATSCHEK HIP HOP VERSUS NECROPOLÍTICA Jaguarão 2019
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA

BACHARELADO EM PRODUÇÃO E POLÍTICA CULTURAL

IGOR POLATSCHEK

HIP HOP VERSUS NECROPOLÍTICA

Jaguarão

2019

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IGOR POLATSCHEK

HIP HOP VERSUS NECROPOLÍTICA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

como requisito parcial e obrigatório para a

obtenção de título de bacharel em Produção e

Política Cultural, pela Universidade Federal do

Pampa.

Orientador: Prof. Dr. Walker Douglas Pincerati

Jaguarão/RS

2019

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Ficha catalográfica elaborada automaticamente com os dados fornecidos

pelo(a) autor(a) através do Módulo de Biblioteca do

Sistema GURI (Gestão Unificada de Recursos Institucionais) .

P586h

Polatschek, Igor

Hip Hop Versus Necropolítica / Igor Polatschek.

34 p.

Trabalho de Conclusão de Curso(Graduação)-- Universidade Federal do

Pampa, PRODUÇÃO E POLÍTICA CULTURAL, 2019.

"Orientação: Walker Pincerati".

1. Necropolítica. 2. Hip Hop. 3. Guerrilha cutural. I. Título.

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IGOR POLATSCHEK

HIP HOP VERSUS NECROPOLÍTICA

Trabalho de conclusão de curso

apresentado na Universidade Federal

do Pampa, campus Jaguarão, como

requisito parcial para obtenção do Título

de Bacharel em Produção e Política

Cultural.

Trabalho defendido e aprovado em: 11 de dezembro de 2019.

Banca examinadora:

__________________________________________________________________

_

Prof. Dr. Walker Douglas Pincerati

UNIPAMPA

Prof. Dra. Anselma Garcia de Sales

FACULDADE IESCAMP

Prof. Dra. Sátira Pereira Machado

UNIPAMPA

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RESUMO

A partir de uma relação feita entre o conceito de necropolítica, cunhado por Achille

Mbembe e a produção política e cultural de algumas lideranças centrais do

movimento Hip Hop, estadunidense e brasileiro, o presente trabalho tem por objetivo

fundamentar a seguinte hipótese: que o movimento Hip Hop estrutura uma guerrilha

cultural contra a necropolítica. Para tanto, será explicado o que se entende por

necropolítica, de maneira a resenhar a obra de Achille Mbembe da qual o termo se

origina. Em seguida, serão elencadas algumas articulações políticas e letras de rap

performadas por tais lideranças, afim de demonstrar o combate que estas

estruturam contra a necropolítica em seus respectivos contextos.

Palavras-chave: Necropolítica. Hip Hop. Guerrilha cultural.

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ABSTRACT

Based on a relationship between the concept of necropolitics, coined by Achille

Mbembe and the political and cultural production of some central leaders of the

American and Brazilian Hip Hop movement, this paper aims to substantiate the

following hypothesis: that the Hip Hop movement structures a cultural guerrilla

against necropolitics. To this end, it will be explained what is meant by necropolitics,

in order to review the work of Achille Mbembe from which the term originates. Then,

some political articulations and rap lyrics performed by such leaders will be listed, in

order to demonstrate the struggle they structure against necropolitics in their

respective contexts.

Keywords: Necropolitics. Hip Hop. Cultural guerrilla.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 8

2. O QUE É NECROPOLÍTICA? 9

2.1. Soberania 9

2.2 Biopoder e Estado de exceção 10

2.3 A ocupação colonial contemporânea: fragmentação territorial e a guerra

infraestrutural 12

2.4 Máquinas de guerra 13

2.5 Heróis VS Mártires 15

2.6 Síntese 15

3. A BATALHA DO HIP HOP CONTRA A NECROPOLÍTICA 17

3.1. Hip Hop VS Necropolítica nos EUA 18

3.1.1. Afrikaa Bambaata - a tecnologia social de mediação de conflitos 18

3.1.2. Snoop Dogg e The Game - representando todos os gangsters do mundo 20

3.2. Hip Hop VS Necropolítica no Brasil 23

3.2.1. Racionais MC’s – a mitologia do exército dos Vida Loka 23

3.2.3. MV Bill - construindo instituições faveladas 26

4. CONCLUSÃO 32

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1. INTRODUÇÃO

Comecei este estudo para tentar entender o meu papel enquanto MC branco, não

oriundo de periferia no movimento Hip Hop. Meu objetivo era investigar a

problemática da minha presença nos espaços de protagonismo desse movimento

com base em conceitos como apropriação cultural e lugar de fala, analisando, para

aprofundar-me em exemplos concretos, a atuação de rappers brancos de grande

visibilidade e seus discursos reprodutores (acredito que na maioria das vezes

inconscientemente) de preceitos racistas. Isto seria um esforço em prol de, em

primeiro lugar, não cair nos mesmos erros dos casos analisados, em segundo lugar,

me posicionar de maneira adequada no interior do movimento Hip Hop

caracterizado pela luta contra o racismo e, em terceiro lugar, produzir uma reflexão

crítica acerca das relações raciais, com foco nas posturas da branquitude, no interior

desse movimento.

Quando comecei o estudo, porém, ao apresentar algumas letras de rap para o

professor Walker Douglas Pincerati, meu orientador, homem negro da área das

letras que estuda o caráter bélico das formações discursivas que caracterizam as

relações raciais, este me apresentou o conceito de necropolítica. Percebi,

relacionando o conceito com meus conhecimentos empíricos acerca do Hip Hop, a

possibilidade de uma chave de entendimento, através da seguinte hipótese: o

movimento Hip Hop tem tido como seu foco principal, desde seus primeiros anos

através de suas lideranças mais proeminentes, o combate àquilo que Achile

Mbembe definiu como necropolítica.

O intuito de demonstrar o desvio que alguns rappers brancos (muitas vezes não

oriundos de periferias) de grande visibilidade produziram / produzem no movimento

Hip Hop permanece e pretendo fazê-lo em um estudo posterior. Mas para

demonstrar esse desvio, senti antes a necessidade de mostrar o rumo que este

movimento estava / está desenvolvendo, antes, paralelamente e apesar desse

desvio. A minha hipótese é que uma das caracterizações desse "rumo" do

movimento Hip Hop é de movimento em direção a uma guerrilha cultural

transnacional contra a necropolítica. É desse rumo que se trata o presente estudo.

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2. O QUE É NECROPOLÍTICA?

O objetivo deste trabalho é o de propor que um dos significados possíveis

para a nome Hip Hop é: movimento cultural de luta contra a necropolítica. Tem,

assim, como hipótese fundamental que a música rap estrutura uma guerrilha cultural

contra a necropolítica. Para mostrar isso, antes de tratar do Hip Hop e do rap, é

preciso delimitar e precisar o que se entende por necropolítica. É o que será feito

neste capítulo.

O filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe (1957 - ) cunhou o

termo necropolítica para descrever o processo de articulação de políticas de morte

desempenhado na manutenção da soberania. Reflete sobre o exercício do direito

de matar, deixar viver ou expor à morte a partir da racialização de grupos específicos

de pessoas. Corpos e povos são categorizados como alvos matáveis e tecnologias

sociais, políticas públicas e maquinário são mobilizados num processo de

industrialização da morte.

Mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido. Esse processo foi, em parte, facilitado pelos estereótipos racistas e pelo florescimento de um racismo baseado em classe que, ao traduzir os conflitos sociais do mundo industrial em termos raciais, acabou comparando as classes trabalhadoras e os "desamparados pelo Estado" do mundo industrial com os "selvagens" do mundo colonial. (MBEMBE, 2016, p. 129.)

2.1. Soberania

O autor demonstra a existência de um discurso herdado da tradição filosófica da

modernidade (é possível acrescentar a palavra eurocêntrica) que traduz a ideia de

soberania baseada nas seguintes premissas:

a) o conceito de razão é elemento central do projeto de modernidade e território

da soberania;

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b) “a expressão máxima da soberania é a produção de normas gerais por um

corpo (povo) composto por homens e mulheres livres e iguais” (Ibid., p. 124.);

c) o sujeito é autor e controlador do seu próprio significado;

d) a política é o exercício da razão na esfera pública.

Divergindo radicalmente da concepção de soberania descrita acima, para o autor a

soberania na verdade é exercida através da “instrumentalização generalizada da

existência humana e a destruição material de corpos e populações” (Ibid., p. 125.).

Deixando de lado a abstrata categoria razão, o autor elege as categorias vida e

morte para descrever o espaço político em que ainda vivemos. Para Mbembe, a

soberania, ao contrário da submissão, calcada na necessidade de evitar a morte, “é

expressa predominantemente como o direito de matar" (Ibid,. p. 128.). O soberano

é, portanto, a figura transgressora de limites por excelência e a política é

caracterizada não por um “avanço do movimento dialético da razão”, mas sim pela

“diferença colocada em jogo pela violação de um tabu.”

Em suma, o que Mbembe desenvolve é uma definição da política enquanto “o

trabalho da morte.” (Ibid., p. 127.) A partir desta perspectiva, o que nos fica de lição,

penso eu, é que a característica essencial da política é, não o embate entre

interesses divergentes que culmina em um interesse comum, mas sim a soberania

em exercício através de um jogo que envolve o abate daqueles que são marcados

para morrer por aqueles que detêm o poder soberano de matar.

2.2 Biopoder e Estado de exceção

Um projeto de engajamento do poder (estatal ou não) em políticas de morte só é

possível através da elaboração de uma espécie de mitologia, que cria um inimigo

idealizado e instaura um imaginário favorável ao exercício do terror. Se trata da

“percepção da existência do outro como um atentado contra minha vida, como uma

ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria o potencial

para minhas vida e segurança [...]” (Ibid., p.128-129.) O que se desenvolve nesse

sentido é uma ideologia que associa de maneira intrínseca a capacidade de matar

à possibilidade de viver.

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Utilizando-se da noção foucaultiana de biopoder, Mbembe reflete como “a divisão

da espécie humana em grupos e a subdivisão da população em subgrupos e o

estabelecimento de uma censura biológica entre eles” (Ibdi., p. 128.) define as

fronteiras entre quem deve viver e quem deve morrer. A ideia de raça, mais do que

a noção de classe, é, para o autor, sempre determinante na dominação do chamado

Ocidente sobre outros povos.

Segundo Mbembe, não é possível fazer um relato histórico sobre o surgimento da

necropolítica sem se tratar dos regimes coloniais. A noção de raça é demonstrada,

nesse contexto, como origem do imaginário jurídico que diz respeito aos territórios

onde são praticadas as políticas de morte: “da negação racial de qualquer vínculo

entre conquistador e nativo provém a ideia de que as colônias possam ser

governadas na ilegalidade absoluta.” (Ibid., p. 133.)

O autor demonstra que a partir do estabelecimento de uma ordem jurídica europeia,

dois princípios jurídicos começam a ser exercitados: o primeiro de igualdade jurídica

entre os Estados “civilizados". Estes Estados desempenham, nesse contexto, o

papel de símbolo de moralidade e modelo de organização política. Uma guerra entre

dois deles estaria sujeita a regras, como o uso da violência estar subordinado a

objetivos racionais e as formas de matar serem “civilizadas".

Fora dos limites territoriais dessa ordem jurídica estariam os territórios disponíveis

à apropriação colonial. Mbembe salienta que as colônias são pensadas, nessa

ordem jurídica, como não detentoras de organizações estatais soberanas; por

consequência, suas guerras não são disputadas por exércitos regulares. Com isso,

a distinção entre combatentes e não combatentes é dissolvida. Portanto, seria

impossível firmar paz com elas. Nesse sentido, abre-se espaço para o exercício de

um segundo princípio jurídico: é nas colônias que o dispositivo jurídico de Estado

de Exceção deixa de ser uma suspensão temporal do Estado de Direito para ser

aplicado a um espaço permanentemente fora da normalidade da lei.

[...] no pensamento filosófico moderno e também na prática e imaginário político europeu, a colônia representa o lugar em que a

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soberania consiste fundamentalmente num exercício de um poder a margem da lei (ag leigibus solus) e no qual tipicamente a “paz" assume a face de uma “guerra sem fim”. (Ibid., p. 132.)

2.3 A ocupação colonial contemporânea: fragmentação territorial e a guerra

infraestrutural

Poderíamos pensar que as ideias recém-desenvolvidas dizem respeito a um passado distante. No passado, com efeito, guerras imperiais tiveram como objetivo destruir os poderes locais, instalando tropas e instituindo novos modelos de controle militar sobre as populações civis. Um grupo de auxiliares locais poderia participar da gestão dos territórios conquistados anexados ao Império, as populações vencidas obtinham um status que consagrava sua espoliação. Em configurações como essas, a violência constitui a forma original do direito, e a exceção proporciona a estrutura da soberania.

Para descrever como se dá a ocupação colonial na atualidade, esse período

chamado de modernidade tardia, Mbembe argumenta que o poder se desenvolve

agora numa conjunção de métodos: disciplinares, biopolíticos e necropolíticos. Uma

das características essenciais dessa nova forma de dominação descrita pelo autor

é a relação entre soberania e espaço na fragmentação territorial.

O autor descreve aqui uma dinâmica espacial complexa, em que “acesso proibido

e expansão de assentamentos” (Ibid., p. 136.) trazem ao ambiente duros entraves

à livre circulação, que fica subordinada a uma lógica segregacionista. Ele salienta

que não se trata, porém, de divisões conclusivas entre duas nações, mas sim de

“redes complexas de fronteiras internas e células isoladas” (Ibid., p. 136.), como

Weizman (apud MBEMBE, 2016, p. 136.) descreve a respeito do exemplo da

Cisjordânia: “múltiplas separações, limites provisórios que se relacionam mediante

vigilância e controle.” Mbembe nos revela que é por meio dessa separação de

comunidades, a partir de uma coordenação vertical, que se proliferam os espaços

de violência.

Muito distante de concepções como a de “guerra justa", a realidade dos conflitos

bélicos na ocupação colonial contemporânea é demonstrada pelo autor tendo como

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um de seus elementos-chaves o que ele chama de guerra infraestrutural. Se trata

de uma espécie de tática de sítio medieval adaptada a ambientes urbanos,

performada a partir de um abismo tecnológico entre as forças envolvidas no conflito

que consiste na “sabotagem orquestrada e sistemática à rede de infraestrutura

estrutura social e urbana do inimigo”. Ataca-se o sistema de sobrevivência do

inimigo, os sistemas de comunicação, os transformadores de energia elétrica e até

tanques de água. Instituições civis não são poupadas e símbolos político-culturais

são saqueados.

A tática é a de fazer o que Mbembe chama de terra arrasada, no estabelecimento

de um estado de sítio. Este é uma instituição militar. É descrito por ele da seguinte

forma:

[...] permite uma modalidade de crime que não faz distinção entre o inimigo interno e externo. Populações inteiras são alvo do soberano. As vilas e cidades sitiadas são cercadas e isoladas do mundo. O cotidiano é militarizado. É outorgada liberdade aos comandantes militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar. O deslocamento entre células territoriais requer autorizações formais. Instituições civis locais são sistematicamente destruídas. A população é privada de seus meios de renda. Às execuções a céu aberto somam-se matanças invisíveis. (Ibid., p. 138.)

2.4 Máquinas de guerra

As guerras contemporâneas, Mbembe, se valendo da obra de Zygmunt Bauman,

diz: “não incluem em seus objetivos conquista, aquisição e gerência de um território.

Idealmente, são abordagens-relâmpago.” (Ibid., p. 138) Não raro, explicita, parte da

mão de obra militar envolvida não faz parte de um exército regular. São as

chamadas máquinas de guerra.

Estamos na era da mobilidade global e a dificuldade de uma única corrente se firmar

enquanto autoridade suprema, ainda que localmente, no espectro político

contemporâneo, o autor mostra, dá lugar a “um mosaico de direitos de governar

incompletos e sobrepostos” (Ibid., p. 139.). Mbembe nos traz o emblemático caso

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de alguns países da África que, a partir de um ambiente de instabilidade política,

vê-se Estados que perdem o monopólio sobre o uso da violência e o poder de

coerção passa a figurar como artigo passível de ser adquirido no mercado.

Nesse cenário, acontece a emergência de uma pluralidade de grupos reivindicando

o direito de matar. Eles são o que o autor chama de máquinas de guerra.

Combinando “características de uma organização política e de uma empresa

mercantil”, as máquinas de guerra são descritas como grupos armados marcados

pela sua “capacidade de metamorfose” (Ibid., p. 140.).

É possível detectar no texto de Mbembe algumas das seguintes características no

que diz respeito às máquinas de guerra:

a) relação fluida com o ambiente - segmentação e desterritorialização;

b) relações com organismos estatais – podem ser desde autônomas até

incorporadas pelo Estado;

c) frequentemente têm relações diretas com redes transnacionais

d) alto grau de mercantilização dos grupos armados - “A mão de obra militar é

comprada e vendida num mercado em que a identidade dos fornecedores e

compradores não significa quase nada.” (Ibid. p. 139.);

e) desempenham controle econômico sobre determinadas regiões, com

possibilidade de estabelecimento de “enclaves econômicos” - “formação de

economias de milícia” (Ibid., p. 141.);

Além disso, Mbembe demonstra que por vezes ocorre inclusive ajuda de

organismos estatais na criação desses exércitos irregulares, as máquinas de

guerra; incorporação dos mesmos por organismos estatais, e até mesmo Estados

que se tornam, eles mesmos, uma máquina de guerra. Uma das consequências

possíveis de se perceber, devido ao processo que faz proliferar as máquinas de

guerra ressaltada pelo autor, é a generalização da insegurança, aprofundando a

distinção social entre quem porta ou não armamento.

Cada vez mais, a guerra não ocorre entre exércitos de dois Estados soberanos. Ela é travada por grupos armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, mas que

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controlam territórios bastante distintos; ambos os lados têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como milícias. (Ibid., p. 141.)

2.5 Heróis VS Mártires

Por fim, Achille Mbembe nos demonstra o antagonismo entre duas lógicas bélicas

presentes na contemporaneidade - a lógica da sobrevivência em oposição à lógica

do martírio.

A lógica da sobrevivência é demonstrada no texto como a visão que enxerga que

“o grau mais baixo da sobrevivência é matar” (Ibid., p. 142). O “herói” (tomo a

liberdade para atribuir essa irônica nomenclatura ao agente dessa lógica) usa

uniforme, exibe armamento, ganha medalhas, dispõe de helicópteros, mata de

longe. Para ele “cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do

sobrevivente.” (Ibid., p. 142).

O mártir por sua vez é descrito como uma espécie de soldado oculto que depende

de se infiltrar nos locais da vida cotidiana do inimigo para matar. É o homem bomba

que faz de seu corpo arma. Nesse caso, em oposição ao primeiro, Mbembe diz:

“matar requer a aproximação extrema”. “O corpo se torna o uniforme do mártir”

(Ibid., p. 143.) e sua resistência se constitui como sinônimo de sua autodestruição.

“Na lógica do martírio a vontade de morrer se funde com a vontade de levar o inimigo

consigo”. (Ibid., p. 143.) Mbembe nos mostra que nessa lógica matar é entrar para

a eternidade, é se libertar da condição do corpo sitiado, é se relacionar com o futuro.

2.6 Síntese

Entendemos até aqui, que a política enquanto trabalho da morte se desenrola na

contemporaneidade através de um processo que tem como duas de suas mais

marcantes características a guerra infraestrutural e a mercantilização da mão de

obra militar. Que tal configuração bélica depende, em primeiro lugar, de uma noção

extremamente racializada de grupos humanos para emergir na realidade, onde a

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lógica dos “heróis” se defronta com a lógica dos “mártires”, e em segundo lugar, de

um arranjo jurídico que evoca a paradoxal permanência do status de estado de

exceção imposto a determinadas zonas territoriais. Por fim, entendemos que esse

projeto de industrialização da morte na manutenção da soberania, é o que Achille

Mbembe chama de Necropolítica.

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3. A BATALHA DO HIP HOP CONTRA A NECROPOLÍTICA

Durante sua explanação, Mbembe cita os emblemáticos casos de países como

Palestina, Kosovo e Cisjordânia para demonstrar exemplos de exercício do

necropoder na contemporaneidade. Há outros autores que sustentam que também

existe uma necropolítica em curso nos Estados Unidos, onde Samantha Ann

Sharman (2014) mostra que o Complexo Prisional Industrial é uma ferramenta

necropolítica na produção de mortes entre negros e latinos. Quanto ao Brasil,

Cristen A. Smith (2013) escreve: “The epidemic of police violence in Brazil, its

economy of death, and its hegemonic racial logic, all suggest that the spectacular

display of the mutilated, tortured, and dead body in Brazil is a symbol of the state’s

necropolitical tactics.” [A epidêmica violência policial no Brasil, essa economia da

morte, e sua lógica racial hegemônica, tudo sugere que o espetacular dispositivo do

corpo mutilado, torturado e morto no Brasil é um símbolo da tática necropolítica do

Estado.] Todavia, não se pretende aqui esmiuçar o modus operandi dessa

necropolítica estadunidense ou brasileira.

Também não tenho a pretensão de traçar a gênese do movimento Hip Hop ou

demonstrar seus diversos elementos artísticos e culturais, afinal, isso já foi

brilhantemente feito por Jorge Hilton (2015). Basta-me, por hora, dizer que esta

complexa cultura, que tem como trilha sonora a música rap, foi gestada nos bairros

negros de Nova York, que suas principais lideranças (tanto nos EUA quanto no

Brasil) foram e são homens negros e que essa devida autoria (ontem e hoje) merece

ser extremamente respeitada.

O que quero com esse capítulo do trabalho é propor a hipótese de que, dentre as

variadas características e possíveis definições a respeito do movimento Hip Hop,

uma delas pode ser: guerrilha cultural transnacional contra a necropolítica. Para

sustentar esta hipótese, demonstrarei alguns exemplos de ações desenvolvidas e

estruturas criadas por lideranças centrais do Hip Hop estadunidense e brasileiro no

combate ao exercício do necropoder. Como forma de demonstrar a centralidade das

lideranças a serem mencionadas, serão usados critérios como: envolvimento em

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fundação de instituições ligadas à cultura Hip Hop, expressiva presença midiática,

títulos a que são nomeadas por outras lideranças da cultura, dentre outras formas

de mensurar a elevada relevância que esses agentes têm no interior do movimento

Hip Hop.

3.1. Hip Hop VS Necropolítica nos EUA

O que será feito nesse tópico do trabalho é uma breve apresentação de três figuras

enquanto lideranças centrais do movimento Hip Hop nos EUA, uma breve descrição

de alguns dos motivos que me levam a reconhecer esse aspecto de centralidade

nessas lideranças e uma breve descrição de suas ações em prol de estruturar uma

guerrilha cultural contra a necropolítica.

3.1.1. Afrikaa Bambaata - a tecnologia social de mediação de conflitos

Malcolm X foi assassinado em 1965 e Martin Luther King em 1968, seguramente

duas dentre as maiores lideranças negras estadunidenses do século XX. 5 anos

depois, em 1973, ocorre a primeira festa da cultura Hip Hop. Martin Lamotte nos

fala do contexto da época: “after the decline of the civil rights movement, the poorest

African American populations lived through a period of disillusionment. The black

ghettos became increasingly segregated” – [Depois do declínio do movimento pelos

direitos civis, as populações afroestadunidenses mais pobres viviam um período de

desilusão. Os guetos negros se tornaram crescentemente segregados.] (LAMOTTE,

2014)

O contexto nos guetos negros de Nova York, como a região do South Bronx, era de

intensificação dos conflitos entre as gangues. Neles que surgem, como forma de

lazer e também como meio de demarcação territorial, as chamadas Block Parties,

grandes festas de rua organizadas pelos próprios membros de gangues em

associação com DJ’s. “The first hip‐hop movement was thus linked to the

development of gangs and urban informality.” [O primeiro movimento hip-hop

estava, portanto, ligado ao desenvolvimento das gangues e da informalidade

urbana.] (Ibid.)

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Em 1971, foi estabelecido um acordo de paz entre gangues negras e latinas na

South Bronx, em Nova Iorque (EUA). Afrika Bambaataa (1957 - ), à época um dos

líderes da gangue Black Spades (Ibid.), estava envolvido nas negociações que

geraram esse acordo. “This peace treaty had a profound impact on the South Bronx”

– [Este acordo de paz teve um profundo impacto no South Bronx] (Ibid.).

Afrika Bambaataa performa a arte de DJ e é considerado um dos pioneiros do

movimento Hip Hop. É dado a ele o crédito pelo nome “Hip Hop” e portanto atribuído

a ele o título de Padrinho do movimento¹. Foi sob sua liderança que foram dados os

primeiros passos decisivos da espontaneidade do novo tipo de festas de rua, as

Block Parties, em direção a um movimento organizado, através da organização que

ele mesmo criou e nomeou de Universal Zulu Nation - ou Nação Zulu Universal. “In

1975, Bambaataa launched the Universal Zulu Nation which put on evening parties

— the block parties — mobilizing gang discipline and support in organizing them.

This movement was the core of hip-hop” – [Em 1975, Bambaataa lançou a Universal

Zulu Nation que ergueu festas noturnas - as block parties - mobilizando disciplina e

suporte de gangue na organização destas. Este movimento foi o núcleo do hip-hop.]

(Ibid.)

Lamotte (2014) nos demonstra que as Block Parties foram servindo como maneira

de deixar a cultura das gangues mais pacífica. O territorialismo da cultura de

gangues foi impactado por uma política das ruas performada pela Zulu Nation que

transformou a forma de disputa destes territórios. A dança da cultura Hip Hop, o

Break Dance, as rimas das batalhas de MC’s e os grafites começaram a entrar em

cena como maneiras de disputar territórios no ambiente urbano:

[...] the cipher in which the dancer competes represents a territory that has to be conquered. Often, two crews battle around a circle, the cipher, with each individual performing for the cause of the crew, until one of them wins the spot. Graffiti artists directly practice this street politics by tagging sides of trains or walls to show belonging as an art of presence. (Bayat, 2010.) (Ibid.) [o círculo no qual o dançarino compete representa um território que tem que ser conquistado. Frequentemente, duas crews² batalham ao redor de um círculo, a roda, na qual cada indivíduo performa pela causa da sua crew, até que uma delas conquiste o local. Grafiteiros põem em prática diretamente essa política das ruas assinando

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laterais de trens ou paredes para mostrar pertencimento como uma arte da presença. (Bayat, 2010.)] (Ibid.)

Aos poucos, a gangue Black Spades, uma das maiores gangues novaiorquinas da

época, foi sendo suplantada pela Zulu Nation, que atingiu territórios bem mais

vastos, através de uma nova estratégia de ganhar espaço. (Ibid.)

Most of all, the Universal Zulu Nation experience was an attempt to empower the excluded. As a new mystique, it was adopted by an army of Bboys, graffitists and MCs, who surpassed Bambaataa in creating a new culture, and above all a new way of being part of society. (Ibid.) [Acima de tudo, a experiência da Universal Zulu Nation foi um esforço para empoderar os excluídos. Como uma nova mística, foi adotada por um exército de Bboys (dançarinos de Breakdance), grafiteiros e MC’s, que procederam Bambaataa na criação de uma nova cultura, e acima de tudo um novo jeito de ser parte da sociedade.]

3.1.2. Snoop Dogg e The Game - representando todos os gangsters do mundo

Snoop Dogg (1971 - ) e The Game (1979 - ) são dois MC’s de carreiras bastante

robustas a nível internacional associados, o primeiro, aos Crips e, o segundo, aos

Bloods (as duas gangues de rua mais conhecidas dos Estados Unidos, ambas com

origem na cidade de Los Angeles). Em alguns dos videoclipes dos artistas é

possível perceber essa associação de suas imagens às das gangues através de

diversos signos: sinais das gangues performados com as mãos, as cores das

vestimentas (azul em referência aos Crips e vermelho em referência aos Bloods),

versos que explicitam territórios de atuação dessas gangues, etc. Apesar da

sangrenta rivalidade entre estas duas gangues, estes dois MC’s protagonizam já a

mais de uma década um processo de tentativa de unificá-las, ainda que

simbolicamente, sob uma única bandeira: a West Coast.

Em 13 de abril de 2005 os dois MC’s, em associação com diversas outras figuras

negras da costa oeste estadunidense de grande relevo na indústria cultural, como

o comediante Steve Harvey, realizaram a West Coast Peace Conference³ –

Conferência da Paz da Costa Oeste. O evento consistiu em uma reunião com o

objetivo de apaziguar os conflitos entre os rappers da costa oeste estadunidense e

incentivar parcerias na música e nos negócios entre os mesmos.

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No ano seguinte, 2006, essa bandeira de união entre os rappers se estendeu a uma

bandeira de união entre as gangues de rua. Snoop Dogg lançou o álbum Tha Blue

Carpet Treatment, ([O Tratamento do Carpete Azul], tendo a cor azul aqui como

nítida referência aos Crips) contendo, em parceria com The Game, a música

Gangbangin’ 101, que explicitamente conclama a união entre os Crips e os Bloods.

A música começa com Snoop dizendo:

West Coast, it’s time to stand up nigga! We gon’ unite ‘round this motherfucker one time! I’m callin every real crip nigga, and every real b-dogg, to the table right now! Yeah, we gon’ push a real line right now, see if y’all with this real gangsta guerrilla shit. [Costa Oeste, é hora de se levantar, nego! Nós vamos nos unir nessa porra uma vez! Eu tô chamando todo mano Crip de verdade, e todo mano real Blood, para a mesa nesse momento! É, nós vamos traçar um objetivo real agora, vamos ver se vocês todos estão nessa merda de guerrilha gangster de verdade!]

The Game, por sua vez, lançou no mesmo ano o albúm Doctor’s Advocate,

contendo o hit California Vacation, em parceria com Snoop e Xzibit. Este último teve

participação lírica na faixa de forma emblemática nesse contexto de união entre

gangues:

for what I seen, red and blue can make green (...) since jelousy breeds hatred, hatred breeds violence, violence breeds enemies more permanente silence, California aliance is more important than ever, so throw it up, we are low riding togheter! [Pelo que eu vejo, vermelho e azul podem fazer verde (...) Desde que inveja gera ódio, ódio gera violência, violência gera inimigos, mais silêncio permanente. Aliança da Califórnia, é mais importante do que nunca, então jogue isso pra cima, nós estamos dando rolê juntos!]

Todo esse processo de agenciamento simbólico foi estratégico e culminou na

chamada operação H.U.N.T. Após um ciclo de violência com 4 pessoas

assassinadas pela polícia e 5 policiais assassinados nos EUA, Snoop Dogg e The

Game lideraram, em 8 de julho de 2016, uma marcha pacífica de lideranças dos

Bloods e dos Crips rumo à sede do Departamento de Polícia de Los Angeles,

durante uma cerimônia de formatura de recrutas. Foi feita uma reunião com a

presença do então chefe de polícia do distrito, Charlie Beck, e do então prefeito da

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cidade, Eric Garcetti, na busca de construir um melhor diálogo entre a polícia e as

comunidades pobres. Nas palavras de Snoop Dogg:

“For many years, there’s not been any dialogue,” Snoop continued as a group of about 100 or so bystanders shouted for unity. “It’s just been violence and misunderstanding. We want to bridge the communication gap between the community and the police. That’s what I’m here for, because I could definitely turn it up and go violent. But we wanted to come out here to initiate love and peace. The mayor and chief of police offered us a room inside where we could talk. And they listened to us.” [4] [Por muitos anos, não tem tido nenhum diálogo,” continuou Snoop com um grupo de cerca de 100 apoiadores gritando por unidade. Só tem tido violência e desentendimentos. Nós queremos abrir caminho para uma ponte de comunicação entre a comunidade e a polícia. É para isso que eu estou aqui, porque eu definitivamente poderia aumentar o tom e ficar violento. Mas nós desejamos vir até aqui para introduzir amor e paz. O prefeito e o chefe de polícia nos ofereceram uma sala lá dentro onde nós pudemos conversar. E eles nos ouviram.] [4]

Dias depois desse acontecimento político, em 17 de julho do mesmo ano, os dois

MC’s deram outro importante passo da chamada operação H.U.N.T. Lideranças de

todas as gangues da região de Los Angeles foram por eles convocadas a se reunir

em um centro comunitário na zona sul da cidade, onde foram discutidas formas de

deixar os guetos mais seguros e assinado um acordo de paz entre os Crips e os

Bloods.[5]

Escolhi o subtítulo de “representando todos os gangsters do mundo” para este

tópico em referência ao verso de Snoop Dogg, no refrão da música Still Dre, da qual

participa (“I’m representing for them gangstas all across the world”), para demarcar

uma diferença fundamental entre o agenciamento descrito no presente tópico em

relação ao anterior: a expressão midiática. Se trata aqui de dois dos rappers mais

famosos do mundo. O albúm Documentary de The Game, por exemplo vendeu mais

de 8 milhões de cópias em todo o mundo, e Snoop Dogg, além dos exorbitantes

números de sua carreira musical, já estrelou em diversos filmes de circulação global,

como o caso de Todo Mundo em Pânico 5, por exemplo. Suas ações, portanto, têm

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repercussão midiática internacional e seu combate à necropolítica em solo

estadunidense serve como agenciamento discursivo internacional.

3.2. Hip Hop VS Necropolítica no Brasil

O que será feito nesse tópico do trabalho é uma breve apresentação de duas figuras

enquanto lideranças centrais do movimento Hip Hop, dessa vez no Brasil, uma

breve descrição de alguns dos motivos que me levam a reconhecer esse aspecto

de centralidade nessas lideranças e uma breve descrição de suas ações em prol de

estruturar uma guerrilha cultural contra a necropolítica.

3.2.1. Racionais MC’s – a mitologia do exército dos Vida Loka

O primeiro grupo a ser levado em consideração no presente trabalho para

apresentar a luta do movimento Hip Hop brasileiro contra a necropolítica será

Racionais MC’s. Formado por Mano Brown (1970 - ), Ice Blue (1969 - ), KL Jay

(1969 - ) e Edi Rock (1970 - ), todos homens negros, criados nas periferias de São

Paulo, se juntaram sob o emblema de Racionais em 1988.

Se trata do grupo mais influente do rap brasileiro. Os Racionais fazem sucesso: têm

dois trabalhos na lista dos 100 maiores discos da história da música brasileira da

revista Rolling Stones. Um deles, o álbum Sobrevivendo no Inferno, atingiu a marca

de mais de 1.500.000 cópias vendidas (número bastante expressivo para um

lançamento independente no Brasil), uma delas dada de presente por Fernando

Haddad, à época prefeito de São Paulo, outra ao Papa Francisco durante uma visita

do político ao Vaticano em 2015,[6] e figura atualmente como “a primeira referência

fonográfica a constar entre as obras de leitura obrigatória da lista do vestibular da

Unicamp.” (SALES, SILVA, 2019)

As músicas dos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” (SALES, SILVA, 2019)

constituem uma espécie de cânone do rap nacional. Uma forma de observar isso é

a grande recorrência de intertextualidades produzidas através de produções de

outros MC’s em diálogo com as letras dos Racionais. É o caso de BK, que na música

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Quadros utiliza o verso “Viver pouco como rei ou muito com um Zé”, contido

anteriormente na música Vida Loka parte 2; de Emicida na música Hoje Cedo, que

canta: “Eu lembrei do Racionais, reflexão, os próprio preto não tá nem aí com isso

não” em referência à música Jesus Chorou; de Djonga na música Esquimó que

canta “Enquanto Brown é 157, eles 171”, em referência à música Artigo 157; de

Yung Buda que tem uma música chamada Jesus Chorou Parte 2 também em

referência à música Jesus Chorou.

Poderia se fazer aqui todo um esforço em catalogar as articulações políticas dos

Racionais MC’s em ações de combate à necropolítica. O momento em que eles se

pronunciaram na campanha de Fernando Haddad, então candidato à prefeitura de

São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores em 2012, onde Brown abre sua fala

dizendo que eles não foram falar de cultura, mas de extermínio, demandando

atitudes por parte do poder público que diminuíssem os assassinatos nas periferias

da cidade, é um emblemático exemplo que se tem registrado de ações desse tipo.

[7] Mas, no caso dos Racionais, a própria música que produzem é o elemento mais

potente inserido nesse combate.

A música Diário de um Detento, por exemplo, foi ressaltada pela filósofa Djamila

Ribeiro, em entrevista concedida à Racionais TV [8] (canal oficial do grupo no You

Tube), como importante registro histórico do Massacre do Carandiru em um Brasil

fortemente marcado pela não preservação de sua memória. A introdução da música

cita a data de 1° de outubro de 1992 e seu final se faz com o verso “dia 3 de outubro,

diário de um detento", em referência ao dia anterior e ao dia seguinte do massacre

que foi no dia 2. A música marca o acontecimento histórico do ponto de vista

justamente do corpo sitiado. Foi lançada no álbum de 1997, antes do filme Carandiru

que só viria em 2003. Sua composição se deu em parceria com o ex-detento

Jocenir, sobrevivente do massacre, que compartilhou seus diários escritos no

cárcere com os Racionais (BEREZOSCHI. 2017).

Era a brecha que o sistema queria avisa o IML chegou o grande dia Depende do sim ou não de um só homem que prefere ser neutro pelo telefone Ratatatá, caviar e champanhe

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Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!

Além de referências ao episódio do massacre, a letra narra o cotidiano da cadeia e

elabora reflexões acerca da situação de privação de liberdade partir do ponto de

vista do preso:

tem uma cela lá em cima fechada Desde terça-feira ninguém abre pra nada Só o cheiro de morte e pinho sol Um preso se enforcou com o lençol (...) O ser humano é descartável no Brasil Como módice usado ou Bombril Cadeia, guarda o que o sistema não quis Expõe o que a novela não diz Ratatatá sangue jorra como água.

Além do registro histórico que denuncia um exemplo concreto de necropolítica em

prática no Brasil, os Racionais elaboram também um eloquente discurso mitológico

que serve como sustentação para uma guerrilha cultural daqueles que são os alvos

desse necropoder. É a formação daquilo que Berezoschi (2017) chama de

comunidade Vida Loka:

A vida é loka para aquele que precisa sobreviver no inferno e que vive em um estado de exceção permanente, em que existe um investimento do Estado no aprimoramento das tecnologias de morte. Morte de quem é negro, pobre e favelado, como já foi evidenciado tantas outras vezes em meu trabalho. O homo sacer, esse que pode ser morto sem que sua morte seja criminalizada, é o vida loka que sobrevive ― em meio às honras e covardias‖ (Negro Drama, 2002). (BEREZOSCHI, 2017)

A percepção da condição de alvos é explicitada na música Vida Loka Parte II de

maneira a gerar solidariedade entre o grupo que partilha dessa mesma condição.

Um coro de vozes masculinas canta:

Programado pra morrer nós é Certo é, certo é, dê no que der

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(Racionais MC's – Vida Loka Parte II)

A crucificação de Jesus Cristo funciona como uma alegoria na música. Ao aplicar o

uso de gírias periféricas atuais (Zé Povinho) e características contemporâneas

(farda, promotor) para descrever os personagens da cena, cria-se um simbolismo

que liga o sagrado acontecimento antigo ao contexto necropolítico de hoje.

O promotor é só um homem, Deus é o Juiz enquanto Zé Povinho apedrejava a cruz O canalha, fardado, cuspiu em Jesus Ó! Aos 45 do segundo arrependido Salvo e perdoado é, Dimas o bandido.

A figura do personagem bíblico de nome Dimas aparece no contexto da música

como uma espécie de arquétipo da comunidade dos Vida Loka. “Dimas, portanto, é

o primeiro ladrão da história a ser perdoado por Jesus Cristo, dessa forma, para os

Racionais MC’s é também o primeiro Vida Loka da história.” (BEREZOSCHI, 2017)

A música termina com uma performance que evoca um brinde a Dimas. Entre o som

de taças batendo se diz:

A Dimas o primeiro! Saúde guerreiro! Dimas...

Dessa forma, os Racionais criam uma simbologia povoadora do imaginário dos

corpos sitiados de que nos fala Mbembe (2016). Para além de um sentimento de

identificação, por igualdade de condição, há uma positivação da identidade desse

grupo, uma vez que o perdão de Cristo unge Dimas, seu arquétipo fundamental. “E

vida loka, dentro do rap, passa a ser um conceito, um estilo de vida e um código de

honra e conduta entre os manos.” (BEREZOSCHI, 2017.)

3.2.3. MV Bill - construindo instituições faveladas

MV Bill (1974 - ) MC da Cidade de Deus, favela situada na cidade do Rio de Janeiro,

teve seu primeiro disco lançado em 1998 com o título: Traficando Informação. Sua

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carreira se desdobra em uma gama de áreas além do rap, também é reconhecido

enquanto ator, escritor e ativista.

Com 9 discos, 3 livros e 3 filmes no currículo, MV Bill é uma figura de amplo

destaque na cena rap nacionalmente. Uma forma de demonstrar sua notoriedade é

o sucesso de suas produções artísticas: foi premiado duas vezes como melhor

cantor de rap e uma pelo melhor videoclipe (o da música Soldado do Morro) pelo

Video Music Brasil. Sua abrangência midiática é dentre as mais imponentes para

figuras ligadas ao rap brasileiro, o MC já participou diversas vezes de programas de

auditório da Rede Globo de Televisão, como o Domingão do Faustão e o Altas

Horas, além de ter sido parte do elenco de uma das novelas da emissora durante

uma temporada inteira, estrelando como o personagem Antônio, da Malhação, em

2010. Caetano Veloso, seguramente um dos nomes mais consagrados da MPB,

chegou a sugerir que MV Bill se candidatasse ao Senado, dada sua relevância

política. [9]

Desde seu primeiro disco, a dinâmica do que aqui denominamos necropolítica é

exposta pelas letras de seus raps:

Seja bem-vindo ao meu mundo sinistro saiba como entrar Droga, polícia, revólver, não pode, saiba como evitar Se não acredita no que eu falo então vem aqui Pra ver a morte de pertinho para conferir Vai ver que a justiça aqui é feita a bala a sua vida na favela não vale de nada. (MV Bill - Traficando Informação, In: Traficando Informação. 1998.) MV Bill, DJ TR: sobreviventes Da guerra interna dentro da favela Só morre preto e branco pobre que faz parte dela O sistema faz o povo lutar contra o povo Mas na verdade nosso inimigo é outro (MV Bill - Traficando Informação, In: Traficando Informação. 1998.)

Um exemplo mais contundente de Bill tratando especificamente da necropolítica

pode ser observado em seu disco Declaração de Guerra. A primeira faixa do álbum

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se chama Soldado Morto e se contrapõe à última, de mesmo nome do álbum,

Declaração de Guerra.

Transcrevo a seguir trechos da faixa Soldado Morto:

A minha marra foi lavada de vermelho Matador não percebe que atirou no próprio espelho É só pra isso que a gente tem valor Achar que matou o cara certo que é da sua cor Guerrilha burra, ignorância cometida Por causa de inveja, drogas ou intriga (MV Bill - Soldado Morto, In: Declaração de Guerra. 2002) Fato estarrecedor Os inimigos são pobres e da mesma cor Vai vendo… Enquanto nossa carne é sublinhada por terra Alguém mais poderoso se diverte com a nossa guerra. (MV Bill - Soldado Morto, In: Declaração de Guerra. 2002.)

Daqui em diante, transcrevo alguns trechos da música Declaração de Guerra:

Quero mais guerrilheiros pra essa noite Vida longa aos pretos, fim do açoite. Vou maquinar mais homicídios presse dia Fim de vida aos brancos da covardia (MV Bill - Declaração de Guerra, In: Declaração de Guerra. 2002.) Uma criança pede o fim da guerra entre vermelhos e terceiros Me lembra que somos brasileiros Mais ideologia, menos conflito Não façam de nós mais um grupo de risco O alemão não habita na favela Confira você mesmo e olhe pela sua janela (MV Bill - Declaração de Guerra, In: Declaração de Guerra. 2002.) Adestrador prepare os cães não tem comida Avise aos lobos que a pele é branca e a carne é viva Fazendeiro, não há mais tempo pra remorso Vamos transformar seu paraíso em destroços A luta é racial, a luta é social, mas ninguém se espanta porque a guerra é santa É preta, marrom, mestiça e branca

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E quem não decide de que lado está, vira planta! (MV Bill - Declaração de Guerra, In: Declaração de Guerra. 2002.) Se foi torturado, siga-me! Se tá rebelado, siga-me! Se tiver bolado, siga-me! An! Siga-me! An! Siga-me! (MV Bill - Declaração de Guerra, In: Declaração de Guerra. 2002.)

Se analisarmos as duas músicas, Soldado Morto (primeira faixa) e Declaração de

Guerra (última faixa), em contraste, podemos perceber que um discurso se abre a

partir da conjunção desses dois polos opostos do mesmo disco. Soldado Morto tem

como introdução um diálogo entre vozes representando um garoto comprando um

doce em uma venda, algo banal, cotidiano, quebrado a seguir pelos barulhos de

tiros. Em comparação, Declaração de Guerra se inicia com um som fantasmagórico,

uma voz feminina de cantora de ópera, criando uma mórbida atmosfera onírica. O

cotidiano da “guerrilha burra” descrita na primeira faixa onde os “inimigos são pobres

e da mesma cor” se opõe ao sonho da unidade, onde os “guerrilheiros” são

convocados a atacar os verdadeiros inimigos, os “brancos da covardia”, aqueles

que “não habitam na favela” e fazer do “paraíso” destes, “destroços”.

Assim como a música Diário de um Detento, dos Racionais, serve como um registro

histórico do massacre do Carandiru, ocorrido em São Paulo, a música O Soldado

Que Fica, de MV Bill, serve como registro histórico dos massacres realizados nos

conflitos armados decorrentes da instalação das UPPs em algumas favelas do Rio

de Janeiro. A vereadora carioca assassinada em 2018, Marielle Franco, descreveu

em sua dissertação de mestrado como se deu esse processo: “As investigações até

a conclusão deste trabalho demonstram confronto entre os envolvidos, seguido de

execuções sumárias, ainda que fossem noticiadas como resultado de confrontos

armados entre policiais e traficantes.” (FRANCO, 2014). Novamente, esse tipo

registro quando feito no rap destoa da narrativa da mídia hegemônica e narra de

forma poética a situação do ponto de vista do “corpo sitiado” (MBEMBE, 2016). No

caso dessa música o eu lírico é o traficante que narra seus sentimentos e os

acontecimentos que antecedem sua execução:

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Eu sou notícia que alimenta a imprensa Câmeras do mundo inteiro aqui marcam presença Em cadeia mundial mostram o crime acuado Elite da tropa a serviço do Estado Armamentos pesados em minha direção Programados pra matar pra alívio da nação.” (MV Bill - O Soldado Que Fica. 2012.)

A professora Sayonara Amaral (2014) descreve Bill como um intelectual negro

insurgente, na medida em que este se coloca organicamente a serviço de sua

comunidade ao passo que conta com o suporte da mesma. Quando ele rima sobre

o empenho assassino do Estado enquanto condição para o “alívio da nação”,

demonstra um link com a mentalidade que Mbembe (2016) define como necessária

ao exercício do necropoder, isto é, a visão da morte do outro como condição para o

bem viver.

Mas a luta de MV Bill contra a necropolítica pode ser melhor explicitada para além

de sua atividade artística. O MC é um ativista de respaldo internacional, já premiado

pelo Troféu Raça Negra, Ministério da Justiça do Brasil e até Unesco por suas ações

sociais. Desenvolveu e desenvolve sua luta contra a necropolítica a partir do

desenvolvimento de diálogos com as mais diversas instâncias do poder, se valendo

das instituições midiáticas e governamentais já existentes para criar e desenvolver

novas instituições, instituições faveladas, isto é, lideradas por pessoas oriundas de

favelas (em sua maioria pessoas negras), atuantes nas favelas e com objetivos

intrinsecamente ligados a um projeto de poder que beneficie os(as) favelados(as).

É a partir desse tipo de articulação que desenvolveu, em conjunto com Celso

Athayde, produtor culturalm grande co-responsável pelo sucesso de sua carreira, a

CUFA – Central Única de Favelas. Se trata de uma organização de grande porte

reconhecida nacional e internacionalmente dedicada a desenvolver projetos

culturais e sociais nas favelas. Dentre as diversas realizações da CUFA, uma delas,

o Prêmio Hutuz, se tornou a maior premiação do movimento Hip Hop na América

Latina, e foi fundamental para ajudar a estruturar o movimento no Brasil.

A CUFA desenvolve mais de um tipo de agenciamento anti-necropolítico. A Taça

das Favelas, por exemplo, é um projeto no qual a entidade promove a integração

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de jovens de moradores de diversas favelas, de forma a realizar a gestão de uma

competição futebolística que “visou à valorização do espaço e do indivíduo nele

inserido, a cultura de paz e o canal para sensibilização de causas importantes

demandadas pelas comunidades”. (RIBEIRO, MANDARINO, 2012)

A criação de pontes de comunicação entre polícia e comunidade em um processo

de mediação de conflitos também é um dos métodos da CUFA, descrito no relatório

da UNESCO chamado Sociabilidades Subterrâneas, de 2013. A instituição

apresenta uma postura conciliadora, e busca parcerias e patrocínios nas mais

diversas instâncias do poder, mas se coloca como representante dos moradores

das favelas nessas articulações.

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4. CONCLUSÃO

Ciente de que o movimento Hip Hop é um fenômeno mutante e bastante complexo.

Já foi analisado por diversos prismas, análises sobre seus fazeres artísticos, a

ancestralidade de suas produções, sua influência na moda, etc., procurei me

dedicar nesse estudo a um aspecto que considero de central relevância no

movimento: sua luta contra a necropolítica. Elencando figuras centrais, ativas e

decisivas na história do movimento, atuantes em lugares também centrais (Nova

Iorque por ser berço do movimento, Califórnia, na Costa Oeste dos EUA por ser um

centro midiático de relevância global onde fica Hollywood, e Rio de Janeiro e São

Paulo por serem eixos centrais da circulação econômica e por consequência

também de bens simbólicos no Brasil), procurei demonstrá-las enquanto lideranças

não só de um agenciamento discursivo anti-necropolítico, mas de uma verdadeira

guerrilha cultural contra a política da morte.

Se o movimento Hip Hop estrutura uma guerrilha cultural contra a necropolítica, este

faz política, a política dos corpos sitiados, ao fazer produção cultural. O Breakdance,

o Grafite e o Rap são produtos dessa produção e quanto maior o alcance deles,

maior o alcance dessa política que eles ativam.

NOTAS

1. É assim que o MC Monge, por exemplo, estudioso brasileiro do Hip Hop e integrante do movimento se refere à Bambaataa: https://www.youtube.com/watch?v=KwDz0drMyFo&t=11s

2. A ideia de crew dentro da cultura Hip Hop traduz a união de alguns agentes dentro de uma mesma célula, sob um mesmo emblema, um mesmo nome, um compartilhamento de uma identidade local. Poderia ser traduzida pela palavra coletivo, clã ou bonde, por exemplo.

3. A MTV estadunidense fez uma matéria sobre o evento: http://www.mtv.com/news/1500129/snoop-dogg-holds-summit-to-squash-beefs-unify-west-coast/ (acessado em 8/12/ 2019)

4. Link da cobertura da imprensa sobre o acontecimento: https://www.billboard.com/articles/columns/hip-hop/7431182/snoop-dogg-the-game-initiate-dialogue-with-lapd-after-week-of (acessado em 8/12/ 2019)

Page 33: IGOR POLATSCHEK HIP HOP VERSUS NECROPOLÍTICAcursos.unipampa.edu.br/cursos/llpead/files/2020/05/... · 2.5 Heróis VS Mártires 15 2.6 Síntese 15 3. A BATALHA DO HIP HOP CONTRA A

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5. Link da cobertura da imprensa sobre o acontecimento: https://hiphopdx.com/news/id.39658/title.snoop-dogg-the-game-organize-l-a-gang-forum-with-the-nation-of-islam (acessado em 8/12/ 2019)

6. Link da cobertura da imprensa sobre o acontecimento: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/07/disco-dos-racionais-e-presente-da-prefeitura-de-sao-paulo-para-o-papa.html (acessado em 8/12/ 2019)

7. Link do registro audiovisual do acontecimento: https://www.youtube.com/watch?v=yrOmMozAwBA (acessado em 8/12/ 2019)

8. Link da entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=rrImxSr0mQo&t=269s (acessado em 8/12/ 2019)

9. Link da cobertura da imprensa sobre o acontecimento: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,politica-e-um-troco-chato-mas-necessario,357294 (acessado em 8/12/ 2019)

Page 34: IGOR POLATSCHEK HIP HOP VERSUS NECROPOLÍTICAcursos.unipampa.edu.br/cursos/llpead/files/2020/05/... · 2.5 Heróis VS Mártires 15 2.6 Síntese 15 3. A BATALHA DO HIP HOP CONTRA A

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