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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS (UFSCar) CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS (CECH)
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO (PPGE)
OS SEM TERRA E A EDUCAO: um estudo
da tentativa de implantao da Proposta Pedaggica do MST em escolas de
assentamentos no Estado de So Paulo
SIDINEY ALVES COSTA
SO CARLOS SP 2002
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SIDINEY ALVES COSTA OS SEM TERRA E A EDUCAO: um estudo
da tentativa de implantao da Proposta Pedaggica do MST em escolas de
assentamentos no Estado de So Paulo
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao do Centro de Educao e Cincias Humanas da Universidade Federal de So Carlos como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, na rea de Concentrao em Metodologia de Ensino, sob a orientao do Prof. Dr. Csar Augusto Minto.
SO CARLOS SP 2002
Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar
C837st
Costa, Sidiney Alves. Os sem terra e a educao: um estudo da tentativa de implantao da proposta pedaggica do MST em escolas de assentamentos no Estado de So Paulo / Sidiney Alves Costa. -- So Carlos : UFSCar, 2002. 103 p. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2002. 1. Educao rural. 2. Movimento dos sem-terra. 3. Proposta pedaggica. 4. Assentamentos rurais. 5. Escolas rurais. I. Ttulo. CDD: 370.19346 (20a)
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Desconfieis do mais trivial na aparncia singelo. E examineis, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: No aceiteis o que de hbito como coisa natural, Pois em tempo de desordem sangrenta, De confuso organizada, De arbitrariedade consciente, De humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossvel de mudar.
Bertold. Brecht
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AGRADECIMENTOS
Um trabalho acadmico no realizado apenas por quem o escreve. Muitas pessoas contribuem direta ou indiretamente para a sua realizao, com idias, leituras, incentivos, crticas... Assim, agradeo algumas delas. Ao orientador Prof. Dr. Csar Augusto Minto que, dividido entre a docncia e a militncia, soube encontrar tempo para orientar-me e tambm corrigir meus desacertos com o cuidado de um cirurgio. Profa. Dra. Dulce C. A. Whitaker, de quem recebi estmulos para o incio e a conduo da dissertao, pela participao no Exame de Qualificao e na Defesa deste trabalho. Profa. Dra. Petronilha Beatriz Gonalves e Silva, professora do PPGE e do DME/UFSCar, por encorajar o meu caminhar na Ps-Graduao e pelas sugestes no Exame de Qualificao. Profa. Dra. Maria Waldenez de Oliveira, professora do PPGE e do DME/UFSCar, por acreditar e incentivar a realizao desta pesquisa e pela participao na Banca de Defesa. Agradeo especialmente Silvia Regina Marques Jardim, valorosa companheira afetiva e intelectual, por acompanhar atentamente a realizao deste trabalho, por dividir os momentos de dvidas e de alegrias e por cuidar de boa parte dos meus deslizes para com a lngua escrita. minha me Sidlia Rosa Costa, mulher de minha vida e a meu pai Jos Alves Costa, exemplo de determinao. s minhas irms Luciana e Juliana Alves Costa, grandes mulheres! Aos meus irmos Aparecido e Valguineis Alves Costa, pela humana hombridade! Algumas pessoas marcaram profundamente a minha vida, devo agradec-las por isto. Talvez no seja possvel citar todas por falta de espao e de memria! - Dulce e Mrio Whitaker, Elis Fiamengue, Deco, Santi, Kiko, Lelo, Marivaldo, Solange... Agradeo aos colegas que dividiram comigo as certezas e incertezas da vida intelectual: Nazar, Ivani, Helma, Leilany, Marcos, Samira, Dolores. Agradeo Karina P. Guimares, ao Fernando Cosenzo, Moema Cotrin, ao Klaiton Ramalho e ao Elsio Vieira, este pela leitura, da FAIMI/Mirassol. Ao CNPq pela concesso de bolsa de I/C e A/T no projeto AI: Assentamentos de Trabalhadores Rurais: a construo de um novo modo de vida num campo de possibilidades e diversidades e CAPES pela concesso de Bolsa/DS durante o mestrado. Incentivos fundamentais pesquisa. Agradeo aos professores do PPGE/UFSCar, em especial os da rea de Metodologia de Ensino. Agradeo o carinho e a dedicao dos funcionrios da secretaria do PPGE e do Departamento de Metodologia de Ensino -DME.
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Aos Sem Terra do MST que lutam para ocupar o latifndio e derrubar as cercas da ignorncia. Lutadores do povo que aprendem e ensinam as perenes artes de educar.
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RESUMO A presente dissertao de mestrado aborda a forma especfica de luta pela terra que deu origem espacializao e territorializao do MST e construo de seu projeto de reforma agrria, efetuando um recorte especial para a questo educacional. Neste sentido, a pesquisa tem como eixos as temticas Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST e Educao. Privilegia o modo como o movimento ocupou-se da histria da luta pela terra e de seu percurso nesta e as conjuga com a histria da educao brasileira, principalmente com a educao rural, o que resulta na tentativa de implantar a sua proposta pedaggica, denominada Proposta Pedaggica do MST. Estuda, assim, as sistematizaes pedaggicas feitas pelo movimento, a partir de suas experincias educacionais nos acampamentos e assentamentos do Brasil. Em especial, busca compreender as dificuldades de espacializao das experincias educacionais em assentamentos do Estado de So Paulo, bem como as contribuies pedaggicas do MST educao brasileira, notadamente s escolas do meio rural e s escolas dos assentamentos de reforma agrria.
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ABSTRACT The present research studies the fight for the land that caused the space (espacializao) and the territory (territorializao) of MST and construction of its agrarian reform project. In this time, MST had a special care about Education. So, this researchs themes are Landless Rural Workers Movement (MST) and Education. It is a study about the manner how the movement engaged in the history of fight for the land and MSTs trajectory in it, as well as MST makes a junction with Brazilian Education History, mainly rural education which results in the tentative in introduce its Pedagogic Proposal, called MSTs Pedagogic Proposal (Proposta Pedaggica do MST). So, this research studies pedagogic systematizations by the movement to start by its educational experiences in encampments and settlements of Brazil. In special, this work searches to understand difficulties about space of educational experiences in settlements of State of Sao Paulo (Estado de So Paulo), as well MSTs pedagogic contributions to Brazilian Education, mainly schools of agrarian reform settlements.
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SUMRIO
Introduo..................................................................................................9 1 - Situando o pesquisador..........................................................................9 2 - Situando o objeto e o objetivo de pesquisa..........................................11 3 - O papel da teoria..................................................................................15 3.1 - Definies conceituais de espao e territrio....................................15 3.2 - Educao e Movimentos Sociais......................................................18 4 - A memria e os caminhos da pesquisa...............................................22 4.1 - A participao do pesquisador no processo de pesquisa e a dinamizao do trabalho de pesquisa..................................26 CAPTULO 1 Um olhar sobre a histria da terra no Brasil...............33 1.1 Civilizao do novo Mundo...............................................................33 1.2 Terra de liberdade terra comprada ...............................................36 1.3 Vrios conflitos pela terra ................................................................40 1.4 Movimentos de Canudos e Contestado...........................................41 1.4.1 O movimento de Canudos ............................................................43 1.4.2 A Guerra do Contestado................................................................45 1.5 Os conflitos em Trombas, em Formoso e em Porecatu...................47 1.6 As Ligas Camponesas......................................................................49 1.7 As Polticas pblicas de assentamentos em So Paulo...................52 1.8 O perodo de redemocratizao.......................................................54 CAPTULO 2 Mudanas ocorridas na educao rural brasileira...................................................................................................56 2.1 Educao na poca Colonial...........................................................56 2.2 - Educao no Perodo Imperial..........................................................61 2.3 Educao no Perodo Republicano..................................................62 2.4 Movimentos de educao popular dos anos 60 ..............................67 2.5 Educao rural no final do sculo XX...............................................68 2.6 Agrupamentos das escolas rurais paulistas.....................................68 2.7 Reformas educacionais no final dos anos 90...................................74
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CAPTULO 3 A construo do MST e a elaborao de uma forma de luta pela terra.............................................................77 3.1 - A construo do MST no Estado de So Paulo................................81 3.2 Ocupao e acampamento: formas de luta do MST........................86 3.3 Assentamento: sociabilidade e socializao....................................95 3.4 Formao da identidade Sem Terra do MST.................................100 3.5 O modo de vida e o projeto sociocultural do MST..........................107 Captulo 4 Uma nova forma de aprendizado: a construo da Proposta Pedaggica do MST....................................113 4.1 Preocupao com as crianas (1979 1984)................................114 4.2 - Articulao educacional (1985 1988)...........................................118 4.3 Avano educacional no MST (1989 1994)..................................122 4.4 Novas frentes de atuao educacional (1995 2000....................130 4.5 A Resistncia Proposta Pedaggica do MST..............................135 CAPTULO 5 A Proposta Pedaggica do MST como horizonte .....................................................................................139 5.1 A Espacialidade do Setor de Educao do MST no Estado de So Paulo.................................................................139 5.2 A difcil implantao da Proposta Pedaggica do MST no Estado de So Paulo............................................................142 5.3 A direo tomada pela Proposta Pedaggica do MST no Estado de So Paulo.................................................................161 A Caminho da Concluso.....................................................................169 1 A crtica ao modelo urbano de escola aplicado no meio rural............................................................................................169 2 Os Sem Terra como centro da ao pedaggica..............................174 3 A formao do professor para implantar a Proposta Pedaggica do MST.................................................................177 4 A ao pedaggica como uma ao coletiva....................................179 5 A transformao do tempo e do espao da escola...........................180 6 A centralidade da ao pedaggica na identidade dos Sem Terra.........................................................................................181 7 O questionamento das matrizes pedaggicas..................................183 8 O MST como parte do processo educacional...................................184 Concluindo: amarrando os fios do horizonte.....................................186 Fontes Bibliogrficas.........................................................................................192
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INTRODUO
Mire e veja: Isto no o de um relatar passagens ...Conto o que fui e vi, no levantar do dia (Guimares Rosa).
1 - Situando o pesquisador
No poeta Guimares Rosa, busco inspirao para dizer que
esta dissertao no um relatar passagens e sim parte da experincia
deste pesquisador, iniciada no levantar do(s) dia(s) em uma ocupao.
Trata-se de um estudo que tem seu nascedouro na vivncia em um
acampamento de luta pela terra, no qual pude compartilhar do empenho
do MST na questo educacional dos acampados e dos assentados.
Em maio de 1992, participei de ocupao que ocorreu na
cidade de Iper, regio de Sorocaba/SP, e l permaneci at agosto de
1993. Neste perodo, conheci o MST mais de perto. Como membro do
Acampamento Ipanema, participei de sua equipe de educao, do
coletivo regional de educao1 e, ao mesmo tempo, fui aluno do Curso de
Magistrio de Frias,2 o que tornou possvel conhecer parte da
organizao educacional no MST.
1 O MST organiza os assentamentos em regionais, sendo os assentamentos de Ipanema, de Porto Feliz e de Itapetininga pertencentes Regional Sorocaba/SP. O ideal que cada acampamento e cada assentamento tenham sua equipe de educao unida aos coletivos regionais de educao, estes, por sua vez, participam do Setor de Educao do seu Estado. E os membros do Setor de Educao integram o Coletivo Nacional de Educao. 2 Curso de nvel mdio (2 Grau), amparado em legislao educacional do Rio Grande do Sul, que intercala o Tempo Escola (jul.;jan./fev. perodo de frias) e Tempo Comunidade (meses restantes). Na poca que dele participei (07/1992 e 01-02/1993), foi realizado em parceria com a FUNDEP/DER, na cidade de Braga/RS. Atualmente ministrado no ITERA/MST, na cidade de Veranpolis/RS (CALDART, 1997; FUNDEP, 1994; MORAES, 1997).
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Assim, uma raiz desta dissertao tem sua origem nessa
participao, que, naquele momento, foi totalmente desinteressada no
que diz respeito a realizar um trabalho acadmico. No entanto, mais tarde,
impulsionou esta pesquisa.
O aprofundamento das experincias deu-se com minha vida
acadmica. O interesse em compreender as questes sociais motivou o
meu ingresso no curso de Cincias Sociais da Faculdade de Cincias e
Letras - FCL/UNESP - de Araraquara/SP, em 1995. Desde ento, temas
como Educao, Reforma Agrria, Movimentos Sociais foram se
constituindo no universo das minhas indagaes.
Tais indagaes foram amadurecidas com a participao no
Ncleo de Pesquisa e Documentao Rural - NUPEDOR3, coordenado
pela Prof Dr Vera L. S. Botta Ferrante. Neste ncleo, fui pesquisador do
Grupo de Educao, coordenado pela Prof Dr Dulce C. A. Whitaker,
mediante participao no projeto AI/CNPq "Assentamento de
Trabalhadores rurais: a construo de um novo modo de vida num campo
de possibilidades e diversidades".
A participao no projeto mencionado, inicialmente como
bolsista de Iniciao Cientfica e posteriormente como bolsista de Apoio
Tcnico, possibilitou-me estudar os temas Educao e Reforma Agrria
com base em teorias sociolgicas teorias que procuram situar o
assentamento como um novo espao social e os assentados como novos
atores sociais.4 Desta participao, originou-se, entre outros
aprendizados, a compreenso de que a anlise das possibilidades e das
diversidades existentes nos assentamentos, bem como a apreenso do
modo de vida dos assentados requer a reformulao de teorias ou a
construo de teorias especficas.
3Ncleo de Pesquisa e Documentao Rural da UNESP - Araraquara/SP, que h mais de treze anos vem fazendo anlises dos novos atores sociais, dos novos espaos sociais e das possibilidades e diversidades do novo modo de vida dos assentados. 4Sobre as teorias sociolgicas referidas (WHITAKER & FIAMENGUE, 1995; ARAJO, 1996; DANTAS, 1997; FIAMENGUE, 1997; FERRANTE, 2000).
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O ingresso, em 1999, no Mestrado do PPGE da UFSCar, na
rea de concentrao em Metodologia do Ensino, permitiu aprofundar-me
no estudo das temticas mencionadas, possibilitando acrescentar viso
sociolgica um olhar para a educao e chegar a esta dissertao.
2 Situando o objeto e o objetivo de pesquisa
A questo da terra est inserida no movimento mais amplo
da histria brasileira, como veremos no captulo 1, que abrange desde os
primrdios do processo de colonizao europia no novo mundo, passa
pela constituio da propriedade privada (1850), pelas guerras de
Canudos e Contestado, tem reflexos nas Ligas Camponesas, durante o
final dos anos 50 e incio dos anos 60 do sculo XX, e outras lutas e
desemboca no processo de complexificao das relaes sociais no
campo at chegar na retomada da luta pela reforma agrria dos anos 70 e
80 do sculo XX.
Neste contexto, um dos fatores fundamentais foi a
Revoluo de 30, perodo a partir do qual o Brasil passou a implementar
uma poltica de substituio de importaes e estimular a industrializao
crescente.
A partir de meados da dcada de 50, o campo brasileiro
comeou a sentir fortemente os reflexos desta opo industrializante.
Houve grande aprofundamento de relaes capitalistas no campo
brasileiro e o incio do processo de transformao da agricultura.
Processo este que foi ampliado com a ditadura militar iniciada em 1964,
principalmente na regio sul e sudeste do Brasil (FERNANDES, 1996). A
intensificao das relaes capitalistas no campo nos anos 70 e 80 deu
origem modernizao dolorosa, que aumentou a utilizao de
mquinas e insumos na agricultura, avultou a concentrao da
propriedade privada da terra e ampliou a excluso e a explorao no
campo brasileiro (G. SILVA, 1982).
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Em resposta excluso e explorao, a luta pela terra e
pela reforma agrria foi retomada a partir do final dos anos 70 e incio dos
anos 80. Perodo no qual os trabalhadores rurais decidiram retomar a
bandeira da reforma agrria, de forma mais organizada. A luta pela
reforma agrria renasceu, assim, da organizao e da atuao dos
movimentos rurais, sendo seus membros considerados novos
personagens5 no novo contexto da redemocratizao brasileira.
Outros estudos tm procurado abranger um conjunto de
dimenses diretamente ligadas valorizao dos sujeitos envolvidos na
luta pela terra e aos impactos positivos que esta questo desencadeou na
sociedade e no meio acadmico. Tais estudos tm procurado elucidar,
entre outras coisas: o surgimento dos movimentos sociais rurais e a
fundamentao de suas concepes polticas (TORRENS, 1994;
FERNANDES, 1996); a construo e a reconstruo cultural promovida
pelos movimentos sociais e as rupturas nas trajetrias dos sujeitos
(WHITAKER & FIAMENGUE, 1995; DANTAS, 1997; FIAMENGUE, 1997;
BOGO, 2000; CALDART, 2000a e 2000b; CASTELO BRANCO, 1999).
A retomada da luta pela terra, pelos movimentos sociais,
serviu para problematizar duas perspectivas de anlises que utilizaram a
teoria marxista das classes fundamentais (burguesia x proletariado) para
interpretar, de forma conservadora, o papel da populao moradora do
meio rural brasileiro. Uma produziu interpretaes que apontaram a
necessria transformao da populao do campo em mo-de-obra
assalariada. A outra procurou tratar o campo numa tica que privilegia
exclusivamente a racionalidade capitalista: ora considerando a reforma
agrria uma ao que impedia a modernizao da sociedade; ora uma
ao que acelerava o desenvolvimento da acumulao capitalista e,
portanto, fortalecia o capitalismo. Ambas as interpretaes negavam aos
5 Os novos personagens do processo de redemocratizao dos anos 80 sculo XX so retratados por E. SADER (1998) Quando os novos personagens entram em cena.
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atores sociais em luta pela terra o papel de protagonista de uma luta pela
transformao social.
Importa ressaltar aqui que a experincia de conduzir a luta
pela terra permitiu iniciar a construo do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra MST, no final de 1979, no Rio Grande do Sul
movimento que tem se empenhado para que um conjunto de aes,
valores e idias que compem seu projeto sociocultural6 seja vivenciado
de forma embrionria nos acampamentos e de maneira enraizada com a
conquista do assentamento.
A educao um dos elementos deste projeto sociocultural.
Partindo de uma perspectiva que considerada humanista e socialista, o
MST formulou a sua Proposta Pedaggica, a qual no esconde sua forte
ligao com as teorias do educador Paulo Freire.
Educador comprometido com seu tempo e com seus
educandos, Paulo Freire defendeu, ao longo de sua vida, a necessidade
de uma educao que contribusse com o educando na ao humana de
transformao do mundo, enquanto sujeito da histria de sua prpria
emancipao. Em sua obra Pedagogia do Oprimido (1996), o autor
proclama a necessidade de uma educao que tenha como ponto de
partida a relao opressor-oprimido. Nesta relao, os opressores
transformam os oprimidos em objetos. Se os oprimidos forem capazes de
ao poltica consciente de transformao da realidade, deslocam os
primeiros de sua posio, o que pode vir a restaurar a humanidade de
ambos.
A educao bancria no contribui para essa
transformao, visto que ela monologa e conduz opresso, pois nela
os estudantes so objetos. A educao libertadora, pelo contrrio, pode
6O projeto sociocultural do MST envolve os elementos de uma reforma agrria que inclua um programa de assentamento, uma poltica de financiamento e crdito e uma infra-estrutura social e cultural. Sobre o assunto veja-se: MST (1995) Programa de Reforma Agrria; BOGO (1998) A vez dos Valores, BOGO (2000) O MST e a cultura; CALDART (2000a) Pedagogia do MST; MST (1999) Como fazemos a escola de ensino fundamental.
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levar os oprimidos liberdade, pois ela dialgica, problematizadora.
Voltada para ao poltica consciente e para as relaes entre reflexo e
ao. O que exige uma postura crtica do educador e do educando para,
juntos, compreender a desumanizao, caracterizada pela injustia,
explorao e violncia, e, ao mesmo tempo, transformar esta realidade
cultural e fsica de opresso.
A Proposta Pedaggica do MST foi elaborada medida que
os Sem Terra7 perceberam que conquistar e ampliar o nmero de escolas
no foi suficiente para implementar uma forma ou maneira de educar que
cultivasse e projetasse a emancipao e a cidadania de seus membros.
Diante disto, os Sem Terra iniciaram a construo de
coletivos para refletir o que queriam com a escola de assentamento e
decidiram que as mudanas na instituio escolar devem vincul-la ao
projeto social dos Sem Terra, portanto, assim como o projeto foi uma
elaborao coletiva tambm as aes de mudana na escola devem ser.
O depoimento de uma professora de assentamento mostra
esta disposio de mudana, que deve ser realizada com a participao
da comunidade: a comunidade a nica capaz de exigir uma
transformao real no jeito de ensinar do professor (apud CALDART &
SCHUWAAB, 1991, p. 88).
Entendemos que o MST criou sua forma de ver e conceber a
educao e, ao mesmo tempo, organizou uma estrutura coletiva para
realizar a expanso desta educao. A este conjunto que inclui a
Proposta Pedaggica do MST (forma) e os coletivos (estrutura) para
implement-la (a proposta) denominamos espacialidade da Proposta
Pedaggica do MST.
Neste sentido, analisamos as aes educacionais do MST e
procuramos compreender, principalmente, a construo da Proposta
Pedaggica do MST, como ela adquire espacialidade e o tipo de
espacialidade que adquire nos assentamentos do Estado de So Paulo. 7Sobre o uso da grafia Sem Terra e/ou sem-terra ver item 3.2 desta dissertao.
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Neste sentido, formulamos os seguintes questionamentos: Como ocorre e
quais os sujeitos da construo e a espacializao da Proposta
Pedaggica do MST? Quais as dificuldades da espacializao da
Proposta Pedaggica? Que contribuies a ao pedaggica do MST tem
trazido para a educao brasileira?
A dissertao diz respeito a um estudo da relao entre MST
e Educao, ou seja, ao modo como o movimento ocupou-se da histria
da luta pela terra e de seu percurso nesta histria e as conjuga com a
histria da educao brasileira, principalmente a educao rural,
resultando na construo da Proposta Pedaggica do MST. Tratamos de
compreender como os Sem Terra se apropriam dos aprendizados
informais adquiridos com a luta de seu movimento e como se ocupam da
educao formal fornecida nas escolas de assentamentos rurais e
constri uma proposta pedaggica para modificar a educao oferecida
nas escolas dos assentamentos.
Em outras palavras, este estudo se refere maneira de os
Sem Terra buscarem espacializar sua proposta pedaggica em escolas
de assentamento rural e, desse modo, formularem contribuies
pedaggicas que no dizem respeito somente s escolas dos
assentamentos rurais, mas tambm escola rural e educao brasileira.
3 - O papel da Teoria
Maria Conceio D'Incao ressalta o papel da teoria na busca
do conhecimento: a relao dialtica desta com os fatos. Segundo este
entendimento, a teoria projeta e antecipa a pesquisa e, ao mesmo tempo,
oferece uma gama de conceitos com os quais o pesquisador reflete e
registra os resultados de uma pesquisa. A teoria elemento de mediao
na busca do conhecimento, ajuda a sair do plano da percepo imediata,
passar por uma abstrao analtica e voltar, ao final da pesquisa, ao
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concreto explicado como um todo ricamente articulado e compreendido
(D'INCAO, 1976, p. 18).
Nesta pesquisa, o embasamento terico, entendido como
um conjunto conceitual, mediou a compreenso da construo, da
espacializao e das contribuies educacionais do MST. Neste sentido,
apontamos a definio de alguns conceitos utilizados na pesquisa, a
reviso bibliogrfica e os caminhos percorridos na realizao desta
dissertao.
3.1 - Definies conceituais de espao e territrio
O conceito de espao est, muitas vezes, relacionado com o
conceito de territrio, mais, freqentemente, este confundido ou adotado
como sinnimo daquele. Para evitar equvocos, apresentamos a
significao dos conceitos de espao e territrio adotados neste trabalho.
O espao est relacionado com o fsico, com o palpvel,
com uma rea de terra ou rea de uma nao, para citar alguns
exemplos. O espao, em sentido amplo, a dimenso material
preexistente a todo conhecimento e a toda prtica humana. Enquanto
palco da ao humana, o espao um local que passa a existir a partir do
momento em que um ser humano manifesta uma viso intencional sobre
ele.
Conforme Fernandes, no interior de um espao ocorre a
espacialidade enquanto a forma e a estrutura da vivncia dos indivduos
ou dos grupos no interior de um espao. O autor considerou a
espacialidade dos Sem Terra como a forma e a estrutura que eles
utilizam para construir e recriar saberes e experincias que atendam s
suas necessidades e a seus interesses na disputa pela reforma agrria
(FERNANDES, 1996, p. 225ss.). Assim, a espacialidade forma de
organizar a sociabilidade do acampamento, de modo a humanizar o
espao e transform-lo em ambiente de identificao dos indivduos na
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disputa pela reforma agrria. A espacialidade , ento, um primeiro
espao, um espao que no definitivo, mas serve aos interesses de
iniciar a primeiras prticas sociais e, conseqentemente, as primeiras
formas de socializao dos Sem Terra.
J a espacializao designa os Sem Terra carregando suas
experincias por diferentes lugares do territrio, na busca do recomeo
como novos sujeitos (FERNANDES, 1996, idem). Na espacializao est
contida a idia de espalhar a luta, ou seja, levar para todos os cantos do
territrio nacional e todos os ambientes sociais, econmicos e polticos, os
ideais defendidos pelos Sem Terra. Com esse deslocamento da luta, os
Sem Terra podem carregar para novos espaos as experincias de
sociabilidade do acampamento e tambm herdar as experincias
acumuladas em outras lutas. O deslocamento das experincias sobre o
territrio nacional vai transformando cada espao um espao no qual os
sem Terra tentam estabelecer um novo espao de relao entre si e com
os outros. Enfim, uma nova forma de ordenar a luta para alm do prprio
espao de luta efetiva o acampamento e o assentamento vai
surgindo.
Corroborando M. Chenais e Y. Barel, respectivamente, Zil
Mesquita definiu o territrio como o espao de um sistema social no
interior do qual uma prtica social se sabe ou se cr eficaz, competente e
legtima. Tais contribuies fundamentam a concepo da autora de
territrio como um espao que necessita ser apropriado pelo homem,
concretamente ou abstratamente e, portanto, receber atributos de valores,
considerados fundamentais para ele se dar ao territrio: o territrio a
priso que os homens se do. O territrio designa, assim, um espao
selecionado pelo homem para a existncia de um agrupamento
(MESQUITA, p. 80-2).
Enquanto espao humanizado, o territrio tem seu limite na
territorialidade, que a vivncia num espao semiologizado, ou seja, a
territorialidade o territrio no qual o humano pode expressar sua
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conscincia ou projet-la sob a forma de significado, por meio da imagem,
da linguagem, do sistema de signos e de cdigos (MESQUITA, p. 76 -
83).
Maria de Lourdes Bandeira (1988), no livro O territrio Negro
em espao Branco,8 tratou a territorialidade como relao do homem com
um territrio cheio de significados e de possibilidades de significao, no
qual possvel reelaborar a identidade. Apesar de no incluirmos a
questo tnica neste estudo, a obra forneceu-nos uma slida referncia
para tratar da influncia do territrio na formao e reconstruo da
identidade Sem Terra. Neste sentido, pontuamos aqui suas contribuies
que recebero a devida reflexo no momento oportuno.
Para o que nos interessa aqui, apontamos, juntamente com
a autora, que na rea rural existe vida comunitria em todas as instncias
da vida social. Nesta convivncia social total, a territorialidade um
componente e amlgama da tradio rural que permite o constituir e o
transformar da identidade, justamente porque a territorialidade possibilita
a classificao das instituies e dos modos de vida entre nossos e
deles. Neste sentido, a gesto de um espao contribuiu decisivamente
para a redefinio positiva da identidade dos membros da comunidade
rural. 8A autora trata da definio e atualizao da identidade tnica do grupo negro na tenso dialtica da oposio preto X branco em trs momentos: Vila Bela Capital da Provncia ou Vila Bela dos Brancos; Vila Bela dos Pretos ou a constituio da comunidade negra e, finalmente, Vila Bela como palco da alteridade preto X branco na expanso da fronteira capitalista. Vila Bela foi fundada as margens do Rio Guapor, em 1748, como capital da provncia de Mato Grosso e serviu para que a Coroa Portuguesa garantisse a posse e domnio sobre os territrios aurferos de Cuiab e Mato Grosso e, ao mesmo tempo, a posse da bacia amaznica. A transferncia da capital do Mato Grosso para Cuiab ocorreu em 1835, marcando a sada dos brancos da Vila Bela e formao da Vila Bela dos Pretos. A sada dos brancos ensejou uma situao atpica, circunstanciando a resistncia dos pretos que manipularam semelhana/diferena como fundamento da energia criadora do enegrecimento de um espao branco constitudo. O retorno do branco ocorreu com a frente extrativista e o patronato e/ou com o avano das frentes pioneiras sobre o municpio de Vila Bela [no final do sculo XIX e incio do sculo XX]. Estes personagens e as relaes que encarnam atingiram radicalmente o modo de produo tradicional dos pretos de Vila Bela, desorganizando as estruturas comunitrias de produo e desintegrando, no seu rastro, as estruturas tradicionais de distribuio e consumo dos pretos, exigindo a mudana na identidade em funo das transformaes da territorialidade, amalgama desta comunidade de pretos.
20
O conceito de territorializao significa a conquista de
fraes de um territrio. Neste sentido, a territorializao da luta pela terra
um processo de conquistas de fraes do territrio pelos Movimentos
Sociais e expressa concretamente o resultado das conquistas da luta e,
ao mesmo tempo, apresenta os novos desafios a superar (FERNANDES,
1996, p.225 42).
A conquista do assentamento de reforma agrria resultou na
territorializao do MST, possibilitou certa espacialidade dos ideais e dos
valores construdos pelo movimento, bem como serviu de base para a
realizao de um trabalho de socializao poltica, o que pode levar
formao de novos grupos. A conquista do territrio ou territorializao da
luta tambm permitiu a organizao e a gesto do espao do
assentamento conquistado, fatores importantes para a conquista da
cidadania. Segundo Milton Santos, a possibilidade de a populao
organizar e gerir o espao so instrumentais a uma poltica de justia
social, permitido criar o que ele chama de modelo cvico - territorial (M.
SANTOS, 1999, p. 6).
Definidos alguns conceitos com os quais realizaremos nossa
interpretao sobre o espao e o territrio da luta pela terra, nos
deteremos sobre algumas abordagens acerca de Educao e Movimentos
Sociais.
3.2 - Educao e Movimentos Sociais
Os estudos sobre Movimento Social e Educao podem ser
divididos, para efeito explicativo, em dois grandes grupos, cada qual
abrangendo os mais diversos aspectos.
Consideramos do primeiro grupo os estudos e as obras que
abordam a atuao dos movimentos sociais e apontam os prprios
movimentos como agncias formadoras, portanto, tais estudos vem os
movimentos sociais como espaos informais de aprendizado, de
21
educao e de socializao de seus membros. Destacamos os livros e as
teses relacionadas a seguir.
Maria da Glria Gohn, no seu livro Movimentos Sociais e
Educao, constata o carter educativo dos movimentos sociais urbanos
e revela processos educativos que ocorrem fora dos canais institucionais
de educao, ou seja, os aprendizados no esto restritos aos contedos
especficos e nem so transmitidos por meio de tcnicas e instrumentos
do processo pedaggico.
A autora ressalta que o carter educativo dos movimentos
sociais urbanos ocorre por meio de trs dimenses: a dimenso da ao
organizada, que tem como substrato a defesa de uma cidadania
coletiva, levando elaborao de tticas e estratgias; a dimenso
da cultura poltica, que fundamenta a prtica cotidiana em um movimento
social e tem a questo pedaggica como instrumento que ilumina as
aes presentes e projeta os passos futuros e a dimenso
espao/tempo, que envolve conhecimentos que permitem compreender
as aes historicamente, bem como apreender a desumanizao ocorrida
no tempo e no espao (GOHN, 1992, p. 18-20).
Roseli Saleti Caldart, em seu livro Pedagogia do Movimento
Sem Terra, busca compreender a experincia de formao dos sujeitos
do MST, assim como a experincia de produo da identidade social,
cultural e poltica, enquanto estes constitui o MST. A autora considera que
os processos formativos no movimento social vo alm daquilo que a
escola propica. Apesar disso, reconhece a importncia do papel da
escola para a formao dos sujeitos do MST.
Na anlise desta autora, sobressai uma pedagogia que tem
como sujeito educador principal o MST, que educa os sem-terra
enraizando-os em uma coletividade forte, e pondo-os em movimento na
luta pela sua prpria humanidade. E assinala a existncia de uma
dialtica educativa no movimento, que tem permitido identificar nos seus
membros uma conscincia de sujeitos sociais vinculados a uma luta social
22
e a uma luta de classe e a um projeto de futuro um sentido sociocultural
(CALDART, 2000a, p. 11ss.).
Na tese de Clia Regina Vendramini, Conscincia de Classe
e Experincias scio-educativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra, h uma anlise sobre os sujeitos em formao no interior do
MST, na qual se percebe a tentativa de compreender a conscincia de
classe construda a partir de experincias scio-educativas dos sujeitos
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Embora os conceitos de conscincia de classe, classes
sociais e novos movimentos sociais tenham sido forjados para explicar os
acontecimentos ligados ao urbano, a autora acredita ser possvel utiliz-
los para a interpretao dos sujeitos que atuam na luta pela reforma
agrria (VENDRAMINI, 1999, p. 1-13).
Maria Teresa Castelo Branco, em sua tese Os Jovens Sem-
Terra: Identidades em Movimento, pesquisou a formao da identidade
de Jovens Sem Terra, membros do MST no Estado de So Paulo e
constatou que ela se constri coletivamente na luta realizada por suas
famlias.
Castelo Branco afirma que a formao da identidade
construda em funo de prticas de enfrentamento coletivo da ordem
instituda. Isto , a identidade Sem Terra construda medida que eles
necessitam desvendar as contradies sociais com as quais se
defrontam. Muitas vezes, desvendar tais contradies significa subverter
as imagens negativas que lhes so impostas. Algumas vezes, esta
subverso necessita da estruturao de novas relaes no acampamento
e no assentamento, em meio aos quais as novas geraes vo constituir
um conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmas (CASTELO
BRANCO, 1999, p. 11-16).
Consideramos do segundo grupo os estudos e obras que
tratam desde a influncia dos movimentos sociais nos processos e
espaos formais pblicos e privados de ensino, de educao e de
23
formao, at os processos de aprendizagem e ensino que ocorrem na
escola ou fora dela. Os livros e as dissertaes que se encaminharam
nesta direo so relacionados a seguir.
Nilma Lino Gomes, em seu texto A contribuio dos Negros
para o Pensamento Educacional Brasileiro, mostra que as aes dos
movimentos sociais no campo educacional no se restringem apenas aos
aprendizados realizados fora dos canais institucionais, pois h muito
tempo suas aes incluem os canais institucionais. Em seu estudo sobre
o movimento negro, a autora afirma que os movimentos sociais
sensibilizam pesquisadores, tericos e educadores sobre alguns
aspectos da realidade educacional.
Da mesma forma, os movimentos sociais procuram
introduzir novas temticas, novos olhares e novas nfases na pesquisa,
na teorizao e nas propostas de interveno sobre a questo
educacional (GOMES, 1997, p.20).
No livro de Roseli S. Caldart, Educao em Movimento:
formao de educadoras e educadores no MST, so abordados os
aspectos relativos formao de educadores e construo de uma
proposta de educao, vinculadas s necessidades e aos desafios da luta
pela Reforma Agrria. A obra focaliza, ainda, os processos por meio dos
quais os sujeitos sociais (trabalhadores/as do campo) passaram a se
constituir como sujeitos sociais de sua prpria educao, sem
desconsiderar a necessidade de transformaes sociais mais amplas em
nosso pas (CALDART, 1997, p. 15).
Nesta obra de Caldart h uma descrio sobre a formao
de educadores/as da reforma agrria para atuarem nas escolas de
assentamento e de acampamentos conquistados pelo MST e sobre a
tentativa de articular os/as trabalhadores/as que se envolveram
diretamente com a escola e com a proposta de educao do MST. A
anlise privilegia as experincias de formao desenvolvidas atravs do
MST, com vista formao de professoras/es que valorizasse a cultura
24
do meio rural, contribuindo para solucionar os desafios enfrentados na
luta pela terra e na terra conquistada (CALDART, 1997, p. 15).
Na dissertao de Clia Regina Vendramini, Ocupar,
Resistir e Produzir: Um Estudo da Proposta Pedaggica do Movimento
dos Sem Terra, na qual a autora pesquisa a educao em assentamentos
do MST no Estado de Santa Catarina, constata-se a necessidade de
relacionar a organizao poltica, educativa e produtiva dos sujeitos do
movimento com a totalidade social. Seu trabalho se consubstancia numa
anlise crtica da Proposta Pedaggica do MST e de sua aplicao no
interior de algumas escolas.
A autora aponta a necessidade de se buscar uma totalidade
relacionando os princpios pedaggicos e metodolgicos da Proposta
Pedaggica do MST com a reforma agrria e com a cooperao agrcola
defendida pelo MST (VENDRAMINI, 1992, p. 8).
Na dissertao de Isabela Camini, Cotidiano Pedaggico de
Professores e Professoras em uma Escola de Assentamento do MST:
Limites e Desafios, a autora aborda o cotidiano pedaggico de
professores/as pertencentes ao ensino pblico estadual em uma escola
de assentamento do MST no Estado do Rio Grande do Sul e constata que
a luta por Educao neste Movimento Social j tem reconhecimento e
que a escola j faz parte da luta maior pela conquista de um pedao de
terra (CAMINI, 1998, p. 19-52).
Os estudos citados tornaram-se importantes referncias
para compreender a educao pretendida pelos Sem Terra, ou seja, para
apreender a tentativa do MST em espacializar para as escolas de
assentamentos de reforma agrria, mantidas pelo poder pblico paulista,
as elaboraes terico-pedaggicas e terico-metodolgicas da Proposta
Pedaggica do MST.
4 A memria e os caminhos da Pesquisa
25
Nas cincias, tanto as pesquisas quanto as temticas so
construes histricas, dizem respeito a escolhas feitas por seres
humanos situados no tempo/espao de que necessitam resolver
determinados problemas. Concomitantemente, ao selecionar temas e
teorias, o pesquisador elege as metodologias, os caminhos para a
realizao da pesquisa, estes tambm resultados de opes.
A escolha da metodologia de pesquisa constitui, assim, uma
necessidade daqueles que pretendem empenhar-se no trabalho de
sistematizar e/ou produzir conhecimentos. E os caminhos so diversos.
Mas alguns passos so fundamentais: ter clareza da direo tomada para
se chegar ao tema, ao objeto e ao problema de pesquisa; escolher o
referencial terico que dar suporte s suas pesquisas; elaborar o
instrumental (ferramenta) necessrio para a realizao de pesquisas. Na
maioria dos casos, a pesquisa propriamente dita se inicia quando tais
fatores j foram preliminarmente definidos. Contudo, no decorrer da
pesquisa alguns desses passos so redefinidos ou merecem melhor
questionamento. Tudo isso faz parte do trabalho de pesquisador.
Na tentativa de estabelecer um dilogo a respeito da
realizao desta pesquisa, faremos algumas consideraes sobre os
passos seguidos desde nossas proposies iniciais at chegar ao
presente texto de dissertao.
Segundo Suely Ferreira Deslandes, as atividades que
compem a fase exploratria, alm de antecederem construo do
projeto, tambm a sucedem (in MINAYO, 1994, p. 31). Na fase
exploratria desta pesquisa, algumas leituras foram fundamentais para
uma melhor aproximao do objeto e do objetivo de pesquisa. Com tal
inteno, procurei entrar em contato com professores que realizavam
pesquisas na rea de sociologia da educao, bem como passei a
realizar leituras sobre educao, sobre a luta pela terra, sobre a reforma
agrria e sobre os movimentos sociais.
26
Nesta fase foi tambm fundamental a participao no
NUPEDOR, no qual realizamos reflexes coletivas sobre a questo rural,
relativos ao preconceito contra o homem rural e referentes metodologia
de pesquisa no meio rural. Na oportunidade, iniciamos a escrita de um
livro relatando nossa experincia metodolgica de um olhar poliocular
para a compreenso da totalidade humana dos sujeitos assentados de
reforma agrria (WHITAKER, 2002). O amadurecimento neste processo
foi um dos grandes impulsionadores para a realizao desta dissertao e
dos rumos que ela tomou.
Munido da inteno de pesquisa, prossegui realizando
pesquisa bibliogrfica sobre as temticas arroladas. Boa parte das leituras
realizadas se encontram mencionadas no corpo da dissertao, mas
algumas merecem ser citadas, a ttulo de exemplo: a dissertao de
Mestrado de Bernardo Manano Fernandes, depois publicada sob o ttulo
MST: formao e territorializao (Editora Hucitec, 1996); o livro
Assentamentos Rurais, organizado por Leonildes Servolo de Medeiros
(Editora Unesp, 1994); o livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire
(Editora Vozes, 1996); o livro O que mtodo Paulo Freire, organizado
por Carlos Rodrigues Brando (Editora Brasiliense, 1981); o livro
Educao e escola no campo de Jacques Therrien e Maria Nobre
Damasceno (orgs.) (Editora Papirus, 1993). Alm destas obras
mencionadas, outras foram consultadas.
As leituras, realizadas ao longo da minha vida acadmica,
forneceram elementos para a elaborao desta dissertao. lgico que
nem tudo se aproveitou de pronto, mas muitas das vivncias
mencionadas serviram de substrato ou se constituram em referncias
obrigatrias na escolha do objeto e na realizao da pesquisa.
Tanto a participao em congresso, palestras, atividades de
pesquisa e de reflexo em grupo, quanto a minha experincia de vida
ajudaram na realizao desta dissertao: 1) A consulta ao dirio de
campo, elaborado numa das etapas do Curso de Magistrio de Frias
27
(DER, jan./fev. de 1993), foi fundamental para auxiliar nas recordaes
sobre a questo educacional no MST; 2) As observaes e vivncias
registradas em dirio de campo (NUPEDOR/UNESP-Araraquara, 1
semestre de 1998), durante a pesquisa de iniciao cientfica realizada
em assentamentos na regio central do Estado de So Paulo, auxiliaram
na recuperao das relaes dos assentados com seu espao e com os
agentes do governo, com atacadistas (ou atravessadores) e com outras
lideranas; 3) A participao como recenseador no I Censo de Reforma
Agrria (INCRA, final 1996 e incio de 1997) contribuiu para conhecer
alguns assentamentos como o Timbor e o Primavera, em Andradina/SP;
o Assentamento gua Vermelha, em Turmalina/SP; o Assentamento de
Pereira Barreto/SP; 4) As visitas a acampamentos e assentamentos do
MST do Estado de So Paulo, as participaes em eventos de formao
ou em reunies com lideranas do MST, o retorno a assentamentos
visitados anteriormente foram serviu para uma aproximao com os
sujeitos e com a realidade pesquisada.
Parte dos dados foram coletados por meio de trs
entrevistas semi-estruturadas e gravadas, sendo duas realizadas no incio
de janeiro de 2001, no Assentamento Pirituba, regional Itapeva/MST
SP. A entrevista com BN, assentada em Itapeva/SP, rea I do
Assentamento Pirituba, foi realizada em sua casa. Esta entrevistada foi
uma das primeiras dirigentes do Setor de Educao do MST/SP. Quando
fomos para esta regional j tnhamos a inteno de entrevist-la, pois
poderamos obter um panorama da construo do Setor de Educao no
Estado de So Paulo. Atualmente esta entrevistada agente de sade do
municpio, desenvolve esta atividade no assentamento e participa do
Setor de Sade do MST/SP.
A entrevista com JA e BL, filho e filha, respectivamente, de
assentados em Itapeva/SP, rea III do Assentamento Pirituba, foi feita ao
mesmo tempo (uma s entrevista). A realizao desta entrevista foi
decidida quando j me encontrava na regional de Itapeva. Num primeiro
28
momento, a inteno era entrevistar apenas o JA, que recentemente
havia sido escolhido para participar do coletivo regional de educao
regional de Itapeva. Como, na hora da realizao da entrevista, estava
presente sua irm BL, que ex-participante do SE e atualmente faz parte
do Setor de Formao do MST/SP, consideramos importante registrar seu
depoimento.
A terceira entrevista foi realizada com KL, em julho de 2001,
no escritrio da Regional Nordeste do MST, na cidade de Ribeiro
Preto/SP. A entrevistada realizou trabalhos na escola do Assentamento
de Sumar/SP, depois, enquanto cursou Pedagogia na Unesp/Marlia-SP,
estreitou sua relao com o MST, apoiando-o em suas aes. Aps o
trmino de Pedagogia entrou para o MST e foi trabalhar na equipe de
educao em acampamento da regio do Vale da Paraba/SP, em
seguida fez parte da direo do SE/SP. Atualmente liderana do MST,
atuando no Setor de Frente de Massa e acompanha o Setor de Formao
e o Setor de Educao do MST do Estado de So Paulo.
As entrevistas, as bibliografias, a memria e o Dirio de
Campo foram instrumentais empregados na coleta dos dados. O dilogo
com sujeitos que vivenciam ou vivenciaram acontecimentos semelhantes
aos referidos nesta dissertao tambm foram considerados fonte de
dados ou elementos para melhor apreender a realidade e os temas
pesquisados.
Tais dados foram submetidos a uma descrio densa
(GEERTZ, 1993), numa tentativa de melhor compreender a realidade
estudada e, ao mesmo tempo, o uso de diferentes formas de coleta de
dados objetivou a triangulao dos dados (DANDR, 1999).
4.1 - A participao do pesquisador no processo de pesquisa e a dinamizao do trabalho de pesquisa
29
A compreenso de uma realidade pesquisada nas Cincias
Humanas ampliada e aprofundada quando h a interao de pelo
menos trs fatores: o olhar atento sobre a realidade; a relao entre o
pesquisador, os sujeitos da pesquisa e a realidade pesquisada; e a teoria
como elemento de mediao entre os dados e os objetivos perseguidos
(S. COSTA e outros in WHITAKER, 2002).
Contudo, a postura de neutralidade, atribuda cincia
moderna, dificultou, se no impediu, a considerao pelo ser humano
como uma totalidade holstica. O filsofo Ren Descartes, em Discurso do
Mtodo, defendeu a separao entre corpo e mente como sinnimo de
objetividade cientfica, acabando por ser reconhecido como o idelogo
que justificou os pressupostos da cincia cartesiana, elaborada pelos
cientistas do sculo XVII.
O questionamento desta concepo pelas Cincias
Humanas serviu para recolocar o humano e a totalidade holstica no
centro das preocupaes cientficas. E a totalidade dos processos
humanos e naturais, que h muito se encontrava sufocada, foi
redescoberta nestas cincias. No Brasil, a Cincias Humanas j
desistiram dessa neutralidade desde meados do sculo XX Socilogos
tm discutido o papel dos sujeitos desde os anos 70/80, um exemplo
pode ser buscado em Eder Sader (1998).
A memria e seu uso nas Cincias Humanas um dos
caminhos metodolgicos que tem recebido ateno dos pesquisadores.
Por estar presente na cena da pesquisa, a memria do pesquisador no
deve ser deslegitimada pelo fato de o pesquisador ter estado ou estar
imerso na realidade a que se prope investigar. Contudo, o encontro entre
o sujeito pesquisador com a realidade e o sujeito pesquisado no deve
ser elemento de confuso. O pesquisador necessita diferenciar a sua
memria (que deve passar por controle epistemolgico) da memria do
pesquisado (que tem que ser respeitada). O pesquisador controla
30
epistemologicamente a sua memria e utiliza a teoria para analisar,
refletir, as representaes/dados do pesquisado.
Uma detida ateno a qualquer dos fenmenos sociais
revela a presena maior ou menor do pesquisador. Alis, por demais
conhecido que o pesquisador est, ele prprio, imerso na realidade
pesquisada, isto faz parte da realidade humana. E, quando se considera
esta questo fundamental, salta aos olhos a humanidade do pesquisador
e do pesquisado, exceto nos casos em que se pretende desconsiderar um
ou outro, quer figuradamente, quer por uma questo de mtodo. De
qualquer forma, no h como excluir a memria de ambos, pois, quando
isto acontece, o silncio fala por ela.
Quando o pesquisador realiza o registra dados no dirio de
campo, por exemplo, sua memria est presente. a existncia da
memria do pesquisador, no momento em que presencia os
acontecimentos e os registra, que permite que uns dados e no outros
sejam considerados relevantes em funo da pesquisa que empreende. A
excluso da memria do pesquisador, tambm neste caso, uma
tentativa de invalidar tais dados. Quando no, uma tentativa de
desqualificar os sujeitos envolvidos, o que pode ter a ver com a busca de
uma pretensa neutralidade. Neutralidade esta que, no limite, no s
ignora a existncia do sujeito pesquisador, como tambm a do sujeito
pesquisado.
Como fonte de dados, o registro em dirio de campo visa
registrar os acontecimentos, gestos e aes que o pesquisador viu, ouviu
ou presenciou (DANTAS, 1997; S. COSTA, 2002). Nestes casos, o
registro , muitas vezes, o registro da construo de outras pessoas
(ANDRADE, 1997).
Este registro pode ser de acontecimentos ou por interesse
de pesquisa. Quando feito por um pesquisador, realizado depois que o
mesmo definiu um objeto e um objetivo de pesquisa e, portanto, satisfaz
31
um interesse pr-estabelecido. Para tanto, o pesquisador participa da
realidade de corpo inteiro, mesmo que empenhado s em coletar dados.
Alis, os dados coletados para fins cientficos, por meio de
qualquer tcnica, tm como elemento atuante o pesquisador e sua
memria. Nas cincias, a coleta de dados visa objetivos bem definidos: a
soluo de uma problemtica no interior de um tema de pesquisa,
fundamentada em uma rea do conhecimento e um referencial terico-
metodolgico.
Consideradas as condies e os objetivos expostos, nas
Cincias Humanas, o uso atuante da memria do pesquisador para fins
de coleta de dados em trabalhos cientficos justificado. A subjetividade
do pesquisador se revela, ento, como intersubjetividade, visto que a
memria do pesquisador, como elemento de sua humanidade, s
possvel porque est em relao com a humanidade dos sujeitos
pesquisados e mediados por uma inteno de pesquisa cientfica.
Contudo, chamamos a ateno para o fato de estarmos
tratando da memria tambm numa outra tica. A tica deste pesquisador
que participou de um acontecimento como um membro, ou seja, sem
nenhuma intencionalidade que no fosse a existncia comum em
espao/tempo determinado, sem efetuar registros, a no ser em funo
de atividades pedaggicas no curso Magistrio de Frias ou em minha
prpria memria, portanto, naquela ocasio, sem intencionalidade
cientfica.
Estamos tratando do uso da memria por parte do sujeito
que participou de um acontecimento e que, posteriormente, se viu na
condio de pesquisador, com a possibilidade de buscar na memria,
para fins cientficos, fatos e acontecimentos nos quais esteve presente,
pois estes fazem parte do objeto e do objetivo da presente pesquisa.
Tal situao tambm foi vivida por ngela Caires (1999),
durante sua tese de Doutorado, Fios Tecidos: A malha da terceirizao no
setor txtil em Araraquara, na qual relata as angstias impostas pela
32
discusso acadmica com relao posio do pesquisador. As
inquietaes surgiram porque sua pesquisa envolveu uma realidade que,
no passado, esteve relacionada sua vivncia concreta, enquanto ex-
empregada da rea de Relaes Humanas da empresa que exigia
lealdade de seus trabalhadores e que, agora, serviu de objeto de estudo.
Contudo, ainda segundo Caires, as experincias vividas e sentidas pelo
cientista social constituem componentes que contribuem para o
conhecimento da realidade social. Apoiada em Heleith Saffiotti, a
pesquisadora afirma buscar na razo e na emoo os instrumentos
necessrios interpretao de uma realidade que cruza experincia
pessoal com a experincia de outros sujeitos (CAIRES, 1999, p. 1-2).
Diferentemente de Caires que tratou de pesquisar uma
realidade que envolvia a Indstria Lupo, empresa tradicional da cidade de
Araraquara, na qual trabalhou durante muitos anos, minha relao de
proximidade com o objeto pesquisado e o uso da minha memria como
fonte de dados no consistiu em ocasio de angstia. Minha relao com
as lembranas de situaes vividas, e que agora servem para clarear e
auxiliar no registro e na reflexo sobre os dados da pesquisa, coletados
tambm por meio da bibliografia e das entrevistas, deu-se de maneira
prazerosa.
Assim, est claro que o revisitar da memria propicia o
descrever de ambientes em que os acontecimentos ocorreram, trazendo a
tona as situaes em que houve o cruzamento de experincias de
sujeitos. Na tentativa de captar dados por meio um olhar dirigido prpria
memria, o pesquisador capaz de compreender um espao e um
processo que tambm enquadram a sua dimenso espacial e subjetiva.
Jos Moura Gonalves Filho (1997) diz no texto Olhar e
Memria, que a memria, ao descrever fatos, situaes, gestos e
acontecimentos sobre uma realidade vivida tem impacto e eloqncia
junto aos observadores participantes, que nestes acontecimentos se
engajaram integralmente (GONALVES FILHO, 1997, p. 95).
33
O pesquisador, estando de posse de uma teoria e mediante
um certo grau de vigilncia epistemolgica, pode realizar um processo
interpretativo dos dados coletados. Assim, o resgate da memria a
busca de uma histria, na qual a memria do pesquisado o meio no
qual se busca reconstruir, desse passado vivido, os elementos
necessrios ao entendimento, explicao ou comprovao de fatos
presentes.
Nesta perspectiva, a relao dialtica estabelecida pelo
pesquisador entre memria - dados/teoria/interpretao, quando passa
pelo crivo de uma rea do conhecimento cientfico, considerada trabalho
cientfico. E torna-se cincia menos por ser um discurso nico, e sim
porque esta relao uma possibilidade dentro da cincia, e, como tal,
pode ser contestada ou confirmada. Essa relao se faz mais dialtica na
medida em que se faz mais reveladora e mais respeitosa a interao
pesquisador - pesquisado.
Gonalves Filho cita Ecla Bosi e afirma que o relembrar
exige um esprito desperto, a capacidade de no confundir a vida atual
com a que passou, de reconhecer as lembranas e op-las s imagens de
agora. O autor considera uma certa espessura existencial e poltica da
memria que oferece o passado atravs de um modo de ver o passado,
fazendo cruzar a histria e a intimidade:
O olhar que se desperta em direo ao passado, divertindo-se e compenetrando-se nas imagens de um outro tempo, suscitadas nos materiais e nas obras que a memria impregnou, longe de constituir-se num impedimento nostlgico histria, instaura um desequilbrio na relao com o presente vivido e representado como progresso. Ergue-se uma oposio ao fetichismo do moderno, oposio desqualificao e esvaziamento da experincia (GONALVES FILHO, 1997, p. 95).
Para o autor citado, a memria s entra em contraste com o
esforo das cincias quando esta interpreta a histria renunciando nela
34
tomar parte. Neste estudo, assumimos a nossa posio por uma cincia
cheia de intenes, por isto, assumimos nosso olhar com subjetividade.
Assumimos o jeito de olhar que v a memria como no estando
dissociada do viver humano, pois esse viver finca raiz na participao
ativa e natural.
Esse enraizamento, conforme entende Simone Weil (1979),
define o ser humano em consonncia com seu ambiente cultural, o que
no s produz este enraizamento como fornece a memria desta
existncia, fazendo cruzar a histria e a intimidade (apud GONALVES
FILHO, 1997).
Neste estudo, a contextualizao das aes dos Sem Terra,
nos aspectos histricos, polticos e educacionais poderia ser prejudicada,
no fosse o recurso memria. Da mesma forma, sem outras fontes
(entrevistas, bibliografias, anlise de artigos de revistas e de jornais), a
compreenso de como ocorre a tentativa de dar espacialidade da
Proposta Pedaggica do MST, e o tipo de espacialidade que adquire nos
assentamentos do Estado de So Paulo no estaria completo.
Organizamos a dissertao do seguinte modo. No captulo 1,
fazemos uma retrospectiva sobre a histria da ocupao da terra no
Brasil, enfocando a colonizao, a constituio da propriedade privada, os
conflitos envolvendo a questo da terra, os movimentos sociais de luta
pela terra do sculo XX, em especial a formao do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST.
No captulo 2, focalizamos a histria da educao brasileira
e seu descaso com a educao das populaes moradoras no meio rural.
E relacionamos algumas mudanas recentes na poltica educacional
brasileira.
No captulo 3, tratamos as ocupaes de terras pblicas e
latifndios improdutivos como modo de o MST espacializar a luta pela
terra. Assinalamos estas aes do MST como maneiras de introduzir nos
acampamentos e nos assentamentos formas de sociabilidade e
35
socializao, que constam em seu projeto sociocultural e do identidade
aos Sem Terra.
No captulo 4, abordamos a construo de uma estrutura
coletiva que atua em questes relacionadas com a educao dos que
lutam pela terra e pela reforma agrria em nosso pas. Focalizamos a
importncia de tal estrutura para construir e implementar a Proposta
Pedaggica do MST nas escolas pblicas de acampamentos e
assentamentos, organizados pelo movimento.
No captulo 5, apresentamos a organizao do Setor de
Educao do MST/SP e verificamos sua dificuldade em encaminhar a
implantao da Proposta Pedaggica do MST nas escolas pblicas em
reas de assentamento.
Finalmente, nas Consideraes Finais, pontuamos algumas
contribuies do MST para a renovao do pensamento e da prtica
pedaggica no meio rural brasileiro e apontamos algumas concluses,
que no so definitivas, estando abertas a novas contribuies.
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Captulo 1
UM OLHAR SOBRE A HISTRIA DA TERRA NO BRASIL
A invaso chegou de barco nesta Amrica Latina. Veio riscado da Europa este plano de chacina. Vinha em nome da civilizao Empunhando a espada e uma cruz na outra mo. (Z Pinto cantor e poeta do MST)
Este captulo faz uma breve retrospectiva sobre a histria de
ocupao da terra no Brasil. Com isso, procuramos sistematizar, de
maneira breve, o processo poltico dos conflitos de terra no Brasil desde a
colonizao, a constituio da propriedade privada, a Repblica, em
especial os movimentos sociais de luta pela terra no sculo XX e a
formao do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST.
1.1 Civilizao do novo Mundo
A ocupao das novas terras se deu por meio da tomada de
terras indgenas pelo europeu no sculo XVI. Tal acontecimento, como diz
o poeta, foi riscado pela Coroa de Portugal, originou o processo
vulgarmente denominado de colonizao do Novo Mundo. As terras
tomadas dos indgenas, por meio da espada em uma mo e a cruz na
outra, foram consideradas domnio da Coroa de Portugal. As incurses de
franceses, de ingleses e de holandeses fez Portugal enviar a primeira
expedio colonizadora nova terra, em 1530, chefiada por Martim
Afonso de Sousa. Em 1549, D. Joo III instituiu o regime de Capitanias
Hereditrias e o Governo Geral.
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A formao de Capitanias Hereditrias foi a forma que a
metrpole encontrou para envolver empreendedores privados na
colonizao das novas terras, sem grandes nus financeiros Coroa (M.
COSTA, 1988, p. 27-8). A partir deste momento, as terras do novo
mundo foram entregues, em nome da Coroa Portuguesa, aos capites-
donatrios, os quais se tornavam possuidores, mas no proprietrios da
terra. Os donatrios eram fidalgos, gente da pequena nobreza,
burocratas, comerciantes, ligados Coroa que possuam poderes, tanto
na esfera econmica (arrecadao de tributos) como na esfera
administrativa (distribuio de sesmarias9 e datas), alm de poderes
polticos, militares e jurdicos.
Vrios fatores contriburam para a concentrao da terra no
perodo. Um dos critrios de concentrao foi o lao de sangue,
fortemente considerado na conquista de uma possesso de uso da terra
advinda do regime de sesmarias:
As doaes de sesmarias, estipuladas pela Coroa Portuguesa eram vinculadas s famlias dos primeiros donatrios, obrigando aos sucessores herdeiros a guardarem sempre os mesmos apelidos. (...) Porm, as doaes constituam apenas a legitimidade da posse, e os direitos e privilgios do donatrio (VARNHAGEN, 1975).
O regime de morgadio tambm contribuiu para concentrar a
terra nas mos de poucos, privilegiando o direito de herana do filho
primognito. Tal regime foi abolido aps a Independncia. O casamento
entre filhos das famlias abastadas, como se sabe, foi outro componente
da constituio das grandes propriedades no Brasil.
Episdios como a expulso e a violncia foram outros
fatores que tambm contriburam significativamente para o aumento desta
concentrao. O poderio advindo da concentrao no se resumiu, como
9 O regime de sesmarias, existente em Portugal, foi implantado no Brasil pelo Governo Geral.
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j dito, apenas terra, mas tambm a poderes de uma sociedade de
mentalidade escravocrata e, posteriormente, oligrquica, com o fim da
escravido.
A obteno do direito de posse da terra tambm estava
vinculada possibilidade de cultiv-la, ou seja, o regime vigente concedia
a posse e o uso, desde que o beneficirio pudesse realizar cultivo,
efetuado com o trabalho escravo. O uso do trabalho cativo para o cultivo
foi outro fator que garantiu a concentrao da posse e do uso da terra.
Com a proibio do cativo indgena em 1611, o negro foi
trazido da frica por meio do trfico ultramarino e constituiu a modalidade
preferencial de mo-de-obra. Com isto, a empresa mercantil europia, sob
a justificativa de falta de braos, tratou de fazer do trfico ultramarino de
indivduos e de grupos africanos a sua mais nova e rentvel atividade
comercial.
Contra a explicao do uso de mo-de-obra escrava pela
falta de braos, Martins (1996) cita Maria Sylvia de Carvalho Franco,
quando esta afirma que o carter compulsrio do trabalho no provinha
da escassez absoluta da mo-de-obra, mas do fato de que a oferta
desses trabalhadores no mercado era regulada pelo comrcio negreiro.
O autor cita mais uma vez Carvalho Franco em nota de rodap (nota n.
32, da 6 ed. de O cativeiro da terra), na qual se diz: ...uma das mais
importantes implicaes da escravido que o sistema mercantil se
expandiu condicionado a uma fonte externa de suprimento de trabalho e
isto no por razes de uma perene carncia interna... (apud MARTINS,
1996, p. 25).10
A maior empreitada civilizatria europia na Amrica
Brasileira foi iniciada com a escravido de indgenas e prosseguiu com o
cativeiro dos negros. Vale dizer, os europeus introduziram a invaso da
terra e o genocdio de seres humanos sob o pretexto de civilizar o novo
mundo. Esta invaso foi efetuada por meio de um instrumento poltico (a 10 Ver CARVALHO FRANCO (1969) Homens Livres na Ordem Sociedade Escravrocrata.
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simpatia do rei), definida por um instrumento legal (o regime de
capitanias), fundamentada por um regime comercial (a produo de bens)
e baseada numa atrocidade (introduo do cativeiro humano, com a
escravido de indgenas e africanos). Vale ressaltar que a sistemtica de
distribuio da terra aos fidalgos foi adotada para que eles fossem
privilegiados com o acesso a uma terra cuja posse e tambm o uso
ficavam sob a chancela da Coroa Portuguesa.
Embora as terras no tivessem valor monetrio at 1850,
quando esta situao comea a ser modificada, os poderes dos fidalgos
advinham da possibilidade de dar posse de terra queles que no eram
fidalgos. Eram os fidalgos que utilizam os direitos adquiridos pela
proximidade com a Coroa que decidiam sobre quais e como os demais
membros da populao tinham acesso a posse da terra. Neste sentido, os
ndios, os negros quilombolas e os posseiros tinham acesso terra de
forma marginal e a revelia dos fidalgos. O fato que a maioria da
populao, composta por indgenas, escravos e homens livres (mulatos,
agregados, sitiantes e escravos libertos), ficou fora das regras definidas
pela Coroa Portuguesa para a posse e uso da terra e quando incorporada
ao sistema, o foi de forma subordinada ao poder dos fidalgos.
1.2 - Terra de liberdade terra comprada
O regime de ocupao por meio de sesmarias durou at
1822, ano em que foi extinto pelo rei D. Joo VI, poucos meses antes da
independncia do Brasil, visando modernizao da legislao
portuguesa e colonial.
Somente em 1850, a Lei 601/1850, chamada Lei de Terras,
definiu medidas legais para um novo regime fundirio. Tal lei foi elaborada
para dar conta de uma questo legal, a suspenso do regime de
sesmarias; de uma questo poltica, a assinatura de tratado com a
Inglaterra estipulando o fim do trfico ultramarino de escravos; de uma
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questo social, dificultar o acesso de homens livres, de imigrantes e de
escravos terra mediante a previso do fim do regime de escravido.
At 1850 a terra no tinha valor. Mas, com a Lei de Terras,
as classes dominantes tomaram medidas legais para confiscar a terra e
restringir o acesso mesma. Esta lei foi o passo inicial para o
estabelecimento do regime de propriedade privada da terra no Brasil. Lei
que indenizou a Unio com a doao de todas as terras no tituladas,
direito este transferido aos Estados pela 1 Constituio Republicana,
promulgada em 1891, aps a instaurao do Regime Republicano,
ocorrido em 1889.
Um quadro comparativo a respeito do surgimento da
propriedade privada pode ser buscado nas anlises de Marx e Engels.
Segundo estes autores, a constituio da propriedade privada na
Inglaterra foi um dos elementos primordiais do surgimento do sistema
capitalista. Enquanto propriedade privada, a terra apareceu ao lado da
riqueza em mercadorias e escravos, ao lado da riqueza em dinheiro. (...)
A terra, agora podia tornar-se mercadoria, podia ser vendida ou
penhorada (MARX e ENGELS, 1982). A constituio dessa forma
propriedade da terra, na Inglaterra, foi alicerada no cercamento de
grandes extenses de terras utilizadas de forma comunal por vrios
camponeses (para a caa, a pastagem e retira de lenhas) para torn-las
propriedades de poucos e no avano sobre as pequenas unidades de
produo agrcola, fatores que contriburam para transformar drstica e
violentamente o antigo modo artesanal de produo. Com esta
transformao, a terra de uso de um certo nmero de famlias tornou-se a
terra de negcios, em propriedade de um nico proprietrio. A
intensificao dessa mudana causou o rompimento da tradio baseada
na relao servo-senhor.
Na Europa, a transformao da terra em propriedade
demorou vrios sculos para ocorrer. Longe de ser mais justa, a
constituio da propriedade privada naquele continente esteve
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relacionada industrializao e s transformaes nas relaes sociais,
as quais mudaram a economia agrria tradicional para uma sociedade,
cada vez mais, dominada social e economicamente pela aplicao de
tcnicas e de novas formas capitalistas de produzir. Em resumo, tais
mudanas destruram relaes de obrigaes costumeiras e compulsrias
devidas por um servo a seu senhor, passando a predominar as relaes
monetrias, o novo elemento mediador das relaes sociais, incluindo-se
o acesso ou no terra.
No Brasil, a Lei de Terras constitui em propriedade privada
uma terra que pertencia, originalmente, ao Estado. A lei serviu para conter
o acesso terra para alguns e para certific-la como propriedade privada
para uma minoria. Por isto, este processo foi legal, mas ilegtimo.
Na verdade, a Lei de Terras surgiu no instante da assinatura
de um tratado com a Inglaterra, proibindo o trfico ultramarino de
escravos, o que fez subir consideravelmente o valor imobilizado para
adquirir mo-de-obra escrava no mercado interno.
Apesar de ter havido o fim do trafico ultramarino de escravo,
isto no significou o fim de suprimento de mo-de-obra escrava para a
economia cafeeira, em ascenso, na regio do Vale do Paraba. Tal
suprimento foi conseguido com o trfico inter-provincial, possvel graas
ao declnio da empresa aucareira nordestina.
Sobre esse perodo, Miriam L. M. Leite afirma: mais valioso
do que a terra eram os escravos. Maria Isaura Pereira de Queiroz
pondera que o valor venal era nulo antes do aparecimento do escravo e
do proprietrio (apud MARTINS, 1996, p. 25). Martins conclui, tinha valor
o bem sujeito a comrcio, coisa que com a terra ocorria apenas
limitadamente (idem, ibidem).
A partir desse perodo, alm do seu carter poltico, a posse
da terra adquiriu tambm um carter ideolgico, ou seja, passou a
generalizar-se a idia de que o acesso terra se consegue pela compra,
ou, como se diz muito, mediante o suor do trabalho. Por meio da lei, a
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maioria das possesses de terra deixou de ter, em tese, relao com a
Coroa ou o Estado, passando a ser fruto de uma pretensa compra.
Se, no antigo sistema, as terras no eram livres para todos,
seu uso e posse estiveram subordinados Corte e ao sangue, com a Lei
de Terras foi criada a propriedade privada da terra. Essa forma de
aquisio subjugou os que no possuam dinheiro - escravos, libertos,
agregados, filhos bastardos e imigrantes - ao trabalho como forma de
adquirir a compra de terras.
Porm, Jos de Souza Martins (1996), no livro O Cativeiro
da Terra, defende a hiptese de que a terra privada pressupe a
liberdade do escravo, ou seja, para transformar a terra livre em terra
cativa a sociedade se viu obrigada a abrir mo do cativeiro de africanos.
Somente a, quando mergulhamos fundo nas relaes sociais, que
percebemos que a Lei de Terra foi um instrumento capaz de contribuir
para transformar a terra livre em terra propriedade privada de um
capitalista.
A lei passou, ento, a regular a aquisio da terra por meio
da compra, uma forma de conter o acesso da maioria da populao
mesma. Segundo Martins, com a descoberta do ouro e o fim do sistema
de cativeiro indgena, a nova etapa da economia colonial estaria apoiada
no escravo negro, isto , no escravo-mercadoria que estimulava o
comrcio martimo e os interesses comerciais dos mercadores
metropolitanos, envolvidos no trfico de escravos africanos (MARTINS,
1996, p. 121).
A utilizao do escravo como um componente fundamental
do sistema de produo colonial obrigava o fazendeiro a imobilizar uma
certa quantia de capital no escravo, seja prprio ou emprestado a juro.
Portanto, o uso do escravo como mercadoria-trabalho teve
como conseqncia a subordinao da produo colonial ao capital
mercantil, incrementando a rentabilidade do sistema comercial, tornando-
o mais atraente aos olhos da classe detentora de capitais.
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O fazendeiro-capitalista tambm esteve diretamente
vinculado ao sistema mercantil. O fazendeiro no se personificou apenas
nas relaes de produo no interior da fazenda, mas tambm nas
relaes mantidas fora da fazenda, com os comissrios de caf, e mais
tarde, j no final do sculo XIX, com os exportadores. A prpria fazenda
significou o conjunto dos bens, a riqueza acumulada, principalmente os
bens produzidos pelo trabalho e o trabalho personificado no escravo
(MARTINS, 1996, p. 14-23).
O contraponto da subordinao ao capital mercantil,
representada na figura do escravo, foi transformar o escravo e no a
fazenda em principal valor da economia colonial. Pode-se concluir, assim,
que a subordinao ao capital mercantil dificultou a transformao
imediata da terra de posse em propriedade privada da terra.
A transformao da terra em propriedade privada, na rea
nova de produo de caf, foi um processo que ganhou contornos mais
definidos nas ltimas dcadas do sculo XIX e, principalmente, nas
primeiras dcadas do sculo XX, momento em que a terra substituiu o
escravo enquanto valor fundamental da economia.
Esta substituio do valor fundamental da economia foi um
processo que esteve diretamente ligado vinda de imigrantes europeus e
ao fim do regime escravocrata. Contudo, a abundncia de terra no Brasil
constituiu um impedimento para extrair do imigrante a sua fora de
trabalho. O assunto foi resolvido, segundo Martins, na obra citada,
quando a sociedade estimulou outra forma de cativeiro. No mais o
cativeiro de africanos, mas o cativeiro da terra.
Primeiramente submeteu-se o imigrante ao trabalho para um
fazendeiro e, s posteriormente, o imigrante conseguiu a posse da terra
ou ento a liberdade, para trabalhar para outro fazendeiro. A renovao
da forma de cativeiro contou com a participao do Estado, s assim
ocorreu a transio do valor-escravo para o valor-terra. O Estado atuou
nas duas frentes para impulsionar esta transformao necessria do valor
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fundamental. Em primeiro lugar, o Estado passou a arcar com os custos
do transporte de imigrantes, o que antes era bancado pelo prprio
fazendeiro. Em segundo lugar, o prprio Estado incumbiu-se de fazer da
poltica de imigrao uma poltica de Estado.
Assim, foi longo o processo pelo qual a terra passou a ser
revestida de seu carter de propriedade privada. Em outras palavras, a
Lei de Terras promoveu uma excluso to ilegtima quanto a provocada
pelo regime de capitanias e sesmarias. A lei no resolveu os conflitos j
existentes, que at foram ampliados, e adquiriu nova roupagem,
transformou-se em conflitos envolvendo uma terra uma terra
propriedade privada.
1.3 - Vrios conflitos pela terra
impossvel tratar das vrias formas de luta da populao
para se livrar do sistema de dominao criado ou originado pela
sistemtica de ocupao das terras na Amrica Brasileira. Contudo,
algumas no devem deixar de ser mencionadas, mesmo no tendo o
aprofundamento merecido.
A convvio do colonizador com os habitantes das novas
terras no foi pacfico, vrios foram os confrontos dos povos indgenas
contra o invasor. Assim, como foram diversos os confrontos promovidos
pelos negros organizados em Quilombos. O mais conhecido foi o
Quilombo de Palmares/AL, mais outros se formaram em vrias partes do
Brasil, atravessando praticamente toda a nossa histria.
Houve, ainda, as revoltas provinciais: Cabanagem no Par
(1835-1840), Praieira em Pernambuco (1848), Sabinada na Bahia (1837-
1838), Balaiada no Maranho (1838-1841) e Farroupilha no Rio Grande
do Sul (1835-1845).
Em perodos mais recente, ocorreram as revoltas de
Canudos, o Cangao e as Ligas Camponesas no Nordeste, Trombas e
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Formoso no Centro-Oeste, Contestado e Porecatu na regio Sul, que
tambm no podem ser descartadas. De modo geral, todos estes
movimentos envolveram direta ou indiretamente a questo da terra.
No final do sculo XIX, notadamente aps 1850, e durante
todo o sculo XX, ocorreram com freqncia disputas polticas ligadas
posse, ocupao e propriedade da terra, definida legalmente como
propriedade privada. Essas disputas marcaram a transformao da terra
de posse e uso em propriedade privada da terra, revelando os conflitos e
as condies de trabalho e de vida do homem do campo no Brasil.
Os movimentos de Quilombos, de Canudos e de Contestado
so exemplos de manifestaes de resistncia na terra. Os dois ltimos
sero tratados a seguir, em funo de ter ocorrido no perodo republicano,
portanto mais prximo de ns, e por sua representatividade com relao
disposio de seus membros em permanecer na terra.
1. 4 - Movimentos de Canudos e Contestado
Entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX, a
economia mundial foi submetida a transformaes scio-econmicas. Tais
transformaes tiveram reflexos no Brasil que passava pela crise do
Regime Imperial.
Junta-se a isto o agravamento do mandonismo local e a
ascenso do coronelismo. Este conjunto de fatores representou tempos
miserveis para as camadas pobres da populao que sofriam mais do
que quaisquer outras as conseqncias dos conflitos constantes,
caractersticas da estrutura scio-econmica brasileira tradicional.
Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, as camadas
subordinadas ofereciam resistncia a este estado de coisas.
As reaes a este estado de coisas so em geral de tipo religioso: lderes sagrados surgem, cuja ao restauradora da ordem
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perdida; sobrepondo-se aos chefes polticos locais, tem por misso pacificar e disciplinar zonas e regies, e mostram para os camponeses um comportamento protetor (QUEIROZ, 1976, p 28).
Com a Proclamao da Repblica, a situao de misria e
de espoliao das camadas pobres foi acentuada. Canudos e Contestado
foram movimentos de reao situao de subalternidade das
populaes camponesas, do ponto de vista de prestgio e de poder, e
tiveram a guerra como desdobramento.
Como Canudos, o movimento do Contestado pode ser inserido no tipo de movimento messinico. Ou seja, um movimento religioso que tem como base a crena em futuras catstrofes das quais s se salvaro os que forem adeptos do messias (TOTA, 1983, p 8-9). Esses movimentos foram, geralmente, explicados pelo
conceito de messias, pois os pesquisadores procuram destacar a ligao
de seus membros com a forte religiosidade se seus lderes. Assim, as
interpretaes realizadas sobre Canudos e Contestado, que tm como
eixo de anlise o conceito de messias, mascara o carter scio-poltico da
luta.
Uma outra interpretao sobre esses movimentos, a qual
adotamos, foi postulada por Clovis Moura (2000). O autor contesta as
interpretaes de Canudos que se baseiam no conceito de messianismo
como eixo de anlise, pois tal conceito deriva da metodologia weberiana,
atravs da qual os movimentos sociais e culturais so analisados no
campo das idias, ficando no nvel das aparncias.
Para Moura, anlises deste tipo desconsideram o nexo
causal da luta dos populares de Canudos e seu contedo poltico, ou seja,
no permitem verificar na luta dos participantes uma oposio ordem
latifundirio-oligrquica, embora seus membros possam no ter plena
conscincia disto (MOURA, 2000, p. 27).
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1.4.1 - O movimento de Canudos
O movimento de Canudos ocorreu entre 1893 e 1897, nos
sertes da Bahia, tendo como lder Antnio Conselheiro. No arraial de
Canudos, tambm chamada fazenda Canudos, os seguidores de
Conselheiro, compostos na maior parte por camponeses e ex-escravos,
fundaram uma organizao coletiva que passaram a chamar Belo Monte.
A organizao de Canudos se ops submisso aos coronis, passando
a ser considerada inimiga de guerra e sendo firmemente combatida por
um total de quatro expedies militares do Exrcito.
A amplitude do temor que o arraial de Canudos causou nos
meios militares ficou evidente na fala de Soares, um militar que participou
da ofensiva contra Canudos. Para ele, a destruio da organizao
coletiva de Canudos constituiu uma questo de honra para as foras
militares, principalmente aps a derrota da terceira expedio comandada
pelo coronel Moreira Csar, fato que abalou o esprito do pblico
(SOARES, 1902, p. 5-128).
Com o intuito de conter tal abalo, foi mobilizada a quarta
expedio militar contra a populao de Canudos e seu lder. O Ministro
da Guerra, Francisco de Paula Argolo, foi o encarregado de organizar
esta expedio, com o objetivo de exterminar Canudos. Foram
convocados os seguintes corpos do Exrcito: regimento de artilharia de
campanha, regimento de cavalaria, batalhes de infantaria e algumas
guarnies em pontos remotos. A mobilizao desse grande contingente
militar foi lenta devido s enormes distncias e aos deficientes meios de
transporte do perodo.
Segundo Soares, Canudos foi uma colossal povoao
habitada por 30 ou 35 mil pessoas prontas para morrer pelo seu ideal.
Os mais inverossmeis boatos fervilharam sobre Canudos, sua fortaleza e
o nmero de fanticos. Os habitantes do arraial foram declarados inimigos
do pas e no amanhecer de 5 de outubro de 1897 ocorreu a derrocada de
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Canudos. Quatro sobreviventes escaparam entrincheirados entre os
escombros fumegantes, que to pouco se entregaram, pelo contrrio,
atacaram com fria para que se completasse o extermnio (SOARES,
1902).
O reprter do Jornal O Estado de So Paulo Euclides da
Cunha fez a cobertura da guerra. Tempos depois (1901) ficou famoso por
escrever Os Sertes, romance no qual interpreta a saga de Canudos.
Depois de ter assistido ao massacre que eliminou a quase totalidade dos
35 mil habitantes de Canudos o autor pode ter uma viso condescendente
pa