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MST_Dissertacao_Os Sem Terra e a Educacao

Date post: 05-Oct-2015
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Dissertação sobre a escola e o MST.

of 223

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS (UFSCar) CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS (CECH)

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO (PPGE)

    OS SEM TERRA E A EDUCAO: um estudo

    da tentativa de implantao da Proposta Pedaggica do MST em escolas de

    assentamentos no Estado de So Paulo

    SIDINEY ALVES COSTA

    SO CARLOS SP 2002

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    SIDINEY ALVES COSTA OS SEM TERRA E A EDUCAO: um estudo

    da tentativa de implantao da Proposta Pedaggica do MST em escolas de

    assentamentos no Estado de So Paulo

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao do Centro de Educao e Cincias Humanas da Universidade Federal de So Carlos como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, na rea de Concentrao em Metodologia de Ensino, sob a orientao do Prof. Dr. Csar Augusto Minto.

    SO CARLOS SP 2002

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar

    C837st

    Costa, Sidiney Alves. Os sem terra e a educao: um estudo da tentativa de implantao da proposta pedaggica do MST em escolas de assentamentos no Estado de So Paulo / Sidiney Alves Costa. -- So Carlos : UFSCar, 2002. 103 p. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2002. 1. Educao rural. 2. Movimento dos sem-terra. 3. Proposta pedaggica. 4. Assentamentos rurais. 5. Escolas rurais. I. Ttulo. CDD: 370.19346 (20a)

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    Desconfieis do mais trivial na aparncia singelo. E examineis, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: No aceiteis o que de hbito como coisa natural, Pois em tempo de desordem sangrenta, De confuso organizada, De arbitrariedade consciente, De humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossvel de mudar.

    Bertold. Brecht

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    AGRADECIMENTOS

    Um trabalho acadmico no realizado apenas por quem o escreve. Muitas pessoas contribuem direta ou indiretamente para a sua realizao, com idias, leituras, incentivos, crticas... Assim, agradeo algumas delas. Ao orientador Prof. Dr. Csar Augusto Minto que, dividido entre a docncia e a militncia, soube encontrar tempo para orientar-me e tambm corrigir meus desacertos com o cuidado de um cirurgio. Profa. Dra. Dulce C. A. Whitaker, de quem recebi estmulos para o incio e a conduo da dissertao, pela participao no Exame de Qualificao e na Defesa deste trabalho. Profa. Dra. Petronilha Beatriz Gonalves e Silva, professora do PPGE e do DME/UFSCar, por encorajar o meu caminhar na Ps-Graduao e pelas sugestes no Exame de Qualificao. Profa. Dra. Maria Waldenez de Oliveira, professora do PPGE e do DME/UFSCar, por acreditar e incentivar a realizao desta pesquisa e pela participao na Banca de Defesa. Agradeo especialmente Silvia Regina Marques Jardim, valorosa companheira afetiva e intelectual, por acompanhar atentamente a realizao deste trabalho, por dividir os momentos de dvidas e de alegrias e por cuidar de boa parte dos meus deslizes para com a lngua escrita. minha me Sidlia Rosa Costa, mulher de minha vida e a meu pai Jos Alves Costa, exemplo de determinao. s minhas irms Luciana e Juliana Alves Costa, grandes mulheres! Aos meus irmos Aparecido e Valguineis Alves Costa, pela humana hombridade! Algumas pessoas marcaram profundamente a minha vida, devo agradec-las por isto. Talvez no seja possvel citar todas por falta de espao e de memria! - Dulce e Mrio Whitaker, Elis Fiamengue, Deco, Santi, Kiko, Lelo, Marivaldo, Solange... Agradeo aos colegas que dividiram comigo as certezas e incertezas da vida intelectual: Nazar, Ivani, Helma, Leilany, Marcos, Samira, Dolores. Agradeo Karina P. Guimares, ao Fernando Cosenzo, Moema Cotrin, ao Klaiton Ramalho e ao Elsio Vieira, este pela leitura, da FAIMI/Mirassol. Ao CNPq pela concesso de bolsa de I/C e A/T no projeto AI: Assentamentos de Trabalhadores Rurais: a construo de um novo modo de vida num campo de possibilidades e diversidades e CAPES pela concesso de Bolsa/DS durante o mestrado. Incentivos fundamentais pesquisa. Agradeo aos professores do PPGE/UFSCar, em especial os da rea de Metodologia de Ensino. Agradeo o carinho e a dedicao dos funcionrios da secretaria do PPGE e do Departamento de Metodologia de Ensino -DME.

  • 5

    Aos Sem Terra do MST que lutam para ocupar o latifndio e derrubar as cercas da ignorncia. Lutadores do povo que aprendem e ensinam as perenes artes de educar.

  • 6

    RESUMO A presente dissertao de mestrado aborda a forma especfica de luta pela terra que deu origem espacializao e territorializao do MST e construo de seu projeto de reforma agrria, efetuando um recorte especial para a questo educacional. Neste sentido, a pesquisa tem como eixos as temticas Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST e Educao. Privilegia o modo como o movimento ocupou-se da histria da luta pela terra e de seu percurso nesta e as conjuga com a histria da educao brasileira, principalmente com a educao rural, o que resulta na tentativa de implantar a sua proposta pedaggica, denominada Proposta Pedaggica do MST. Estuda, assim, as sistematizaes pedaggicas feitas pelo movimento, a partir de suas experincias educacionais nos acampamentos e assentamentos do Brasil. Em especial, busca compreender as dificuldades de espacializao das experincias educacionais em assentamentos do Estado de So Paulo, bem como as contribuies pedaggicas do MST educao brasileira, notadamente s escolas do meio rural e s escolas dos assentamentos de reforma agrria.

  • 7

    ABSTRACT The present research studies the fight for the land that caused the space (espacializao) and the territory (territorializao) of MST and construction of its agrarian reform project. In this time, MST had a special care about Education. So, this researchs themes are Landless Rural Workers Movement (MST) and Education. It is a study about the manner how the movement engaged in the history of fight for the land and MSTs trajectory in it, as well as MST makes a junction with Brazilian Education History, mainly rural education which results in the tentative in introduce its Pedagogic Proposal, called MSTs Pedagogic Proposal (Proposta Pedaggica do MST). So, this research studies pedagogic systematizations by the movement to start by its educational experiences in encampments and settlements of Brazil. In special, this work searches to understand difficulties about space of educational experiences in settlements of State of Sao Paulo (Estado de So Paulo), as well MSTs pedagogic contributions to Brazilian Education, mainly schools of agrarian reform settlements.

  • 8

    SUMRIO

    Introduo..................................................................................................9 1 - Situando o pesquisador..........................................................................9 2 - Situando o objeto e o objetivo de pesquisa..........................................11 3 - O papel da teoria..................................................................................15 3.1 - Definies conceituais de espao e territrio....................................15 3.2 - Educao e Movimentos Sociais......................................................18 4 - A memria e os caminhos da pesquisa...............................................22 4.1 - A participao do pesquisador no processo de pesquisa e a dinamizao do trabalho de pesquisa..................................26 CAPTULO 1 Um olhar sobre a histria da terra no Brasil...............33 1.1 Civilizao do novo Mundo...............................................................33 1.2 Terra de liberdade terra comprada ...............................................36 1.3 Vrios conflitos pela terra ................................................................40 1.4 Movimentos de Canudos e Contestado...........................................41 1.4.1 O movimento de Canudos ............................................................43 1.4.2 A Guerra do Contestado................................................................45 1.5 Os conflitos em Trombas, em Formoso e em Porecatu...................47 1.6 As Ligas Camponesas......................................................................49 1.7 As Polticas pblicas de assentamentos em So Paulo...................52 1.8 O perodo de redemocratizao.......................................................54 CAPTULO 2 Mudanas ocorridas na educao rural brasileira...................................................................................................56 2.1 Educao na poca Colonial...........................................................56 2.2 - Educao no Perodo Imperial..........................................................61 2.3 Educao no Perodo Republicano..................................................62 2.4 Movimentos de educao popular dos anos 60 ..............................67 2.5 Educao rural no final do sculo XX...............................................68 2.6 Agrupamentos das escolas rurais paulistas.....................................68 2.7 Reformas educacionais no final dos anos 90...................................74

  • 9

    CAPTULO 3 A construo do MST e a elaborao de uma forma de luta pela terra.............................................................77 3.1 - A construo do MST no Estado de So Paulo................................81 3.2 Ocupao e acampamento: formas de luta do MST........................86 3.3 Assentamento: sociabilidade e socializao....................................95 3.4 Formao da identidade Sem Terra do MST.................................100 3.5 O modo de vida e o projeto sociocultural do MST..........................107 Captulo 4 Uma nova forma de aprendizado: a construo da Proposta Pedaggica do MST....................................113 4.1 Preocupao com as crianas (1979 1984)................................114 4.2 - Articulao educacional (1985 1988)...........................................118 4.3 Avano educacional no MST (1989 1994)..................................122 4.4 Novas frentes de atuao educacional (1995 2000....................130 4.5 A Resistncia Proposta Pedaggica do MST..............................135 CAPTULO 5 A Proposta Pedaggica do MST como horizonte .....................................................................................139 5.1 A Espacialidade do Setor de Educao do MST no Estado de So Paulo.................................................................139 5.2 A difcil implantao da Proposta Pedaggica do MST no Estado de So Paulo............................................................142 5.3 A direo tomada pela Proposta Pedaggica do MST no Estado de So Paulo.................................................................161 A Caminho da Concluso.....................................................................169 1 A crtica ao modelo urbano de escola aplicado no meio rural............................................................................................169 2 Os Sem Terra como centro da ao pedaggica..............................174 3 A formao do professor para implantar a Proposta Pedaggica do MST.................................................................177 4 A ao pedaggica como uma ao coletiva....................................179 5 A transformao do tempo e do espao da escola...........................180 6 A centralidade da ao pedaggica na identidade dos Sem Terra.........................................................................................181 7 O questionamento das matrizes pedaggicas..................................183 8 O MST como parte do processo educacional...................................184 Concluindo: amarrando os fios do horizonte.....................................186 Fontes Bibliogrficas.........................................................................................192

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    INTRODUO

    Mire e veja: Isto no o de um relatar passagens ...Conto o que fui e vi, no levantar do dia (Guimares Rosa).

    1 - Situando o pesquisador

    No poeta Guimares Rosa, busco inspirao para dizer que

    esta dissertao no um relatar passagens e sim parte da experincia

    deste pesquisador, iniciada no levantar do(s) dia(s) em uma ocupao.

    Trata-se de um estudo que tem seu nascedouro na vivncia em um

    acampamento de luta pela terra, no qual pude compartilhar do empenho

    do MST na questo educacional dos acampados e dos assentados.

    Em maio de 1992, participei de ocupao que ocorreu na

    cidade de Iper, regio de Sorocaba/SP, e l permaneci at agosto de

    1993. Neste perodo, conheci o MST mais de perto. Como membro do

    Acampamento Ipanema, participei de sua equipe de educao, do

    coletivo regional de educao1 e, ao mesmo tempo, fui aluno do Curso de

    Magistrio de Frias,2 o que tornou possvel conhecer parte da

    organizao educacional no MST.

    1 O MST organiza os assentamentos em regionais, sendo os assentamentos de Ipanema, de Porto Feliz e de Itapetininga pertencentes Regional Sorocaba/SP. O ideal que cada acampamento e cada assentamento tenham sua equipe de educao unida aos coletivos regionais de educao, estes, por sua vez, participam do Setor de Educao do seu Estado. E os membros do Setor de Educao integram o Coletivo Nacional de Educao. 2 Curso de nvel mdio (2 Grau), amparado em legislao educacional do Rio Grande do Sul, que intercala o Tempo Escola (jul.;jan./fev. perodo de frias) e Tempo Comunidade (meses restantes). Na poca que dele participei (07/1992 e 01-02/1993), foi realizado em parceria com a FUNDEP/DER, na cidade de Braga/RS. Atualmente ministrado no ITERA/MST, na cidade de Veranpolis/RS (CALDART, 1997; FUNDEP, 1994; MORAES, 1997).

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    Assim, uma raiz desta dissertao tem sua origem nessa

    participao, que, naquele momento, foi totalmente desinteressada no

    que diz respeito a realizar um trabalho acadmico. No entanto, mais tarde,

    impulsionou esta pesquisa.

    O aprofundamento das experincias deu-se com minha vida

    acadmica. O interesse em compreender as questes sociais motivou o

    meu ingresso no curso de Cincias Sociais da Faculdade de Cincias e

    Letras - FCL/UNESP - de Araraquara/SP, em 1995. Desde ento, temas

    como Educao, Reforma Agrria, Movimentos Sociais foram se

    constituindo no universo das minhas indagaes.

    Tais indagaes foram amadurecidas com a participao no

    Ncleo de Pesquisa e Documentao Rural - NUPEDOR3, coordenado

    pela Prof Dr Vera L. S. Botta Ferrante. Neste ncleo, fui pesquisador do

    Grupo de Educao, coordenado pela Prof Dr Dulce C. A. Whitaker,

    mediante participao no projeto AI/CNPq "Assentamento de

    Trabalhadores rurais: a construo de um novo modo de vida num campo

    de possibilidades e diversidades".

    A participao no projeto mencionado, inicialmente como

    bolsista de Iniciao Cientfica e posteriormente como bolsista de Apoio

    Tcnico, possibilitou-me estudar os temas Educao e Reforma Agrria

    com base em teorias sociolgicas teorias que procuram situar o

    assentamento como um novo espao social e os assentados como novos

    atores sociais.4 Desta participao, originou-se, entre outros

    aprendizados, a compreenso de que a anlise das possibilidades e das

    diversidades existentes nos assentamentos, bem como a apreenso do

    modo de vida dos assentados requer a reformulao de teorias ou a

    construo de teorias especficas.

    3Ncleo de Pesquisa e Documentao Rural da UNESP - Araraquara/SP, que h mais de treze anos vem fazendo anlises dos novos atores sociais, dos novos espaos sociais e das possibilidades e diversidades do novo modo de vida dos assentados. 4Sobre as teorias sociolgicas referidas (WHITAKER & FIAMENGUE, 1995; ARAJO, 1996; DANTAS, 1997; FIAMENGUE, 1997; FERRANTE, 2000).

  • 12

    O ingresso, em 1999, no Mestrado do PPGE da UFSCar, na

    rea de concentrao em Metodologia do Ensino, permitiu aprofundar-me

    no estudo das temticas mencionadas, possibilitando acrescentar viso

    sociolgica um olhar para a educao e chegar a esta dissertao.

    2 Situando o objeto e o objetivo de pesquisa

    A questo da terra est inserida no movimento mais amplo

    da histria brasileira, como veremos no captulo 1, que abrange desde os

    primrdios do processo de colonizao europia no novo mundo, passa

    pela constituio da propriedade privada (1850), pelas guerras de

    Canudos e Contestado, tem reflexos nas Ligas Camponesas, durante o

    final dos anos 50 e incio dos anos 60 do sculo XX, e outras lutas e

    desemboca no processo de complexificao das relaes sociais no

    campo at chegar na retomada da luta pela reforma agrria dos anos 70 e

    80 do sculo XX.

    Neste contexto, um dos fatores fundamentais foi a

    Revoluo de 30, perodo a partir do qual o Brasil passou a implementar

    uma poltica de substituio de importaes e estimular a industrializao

    crescente.

    A partir de meados da dcada de 50, o campo brasileiro

    comeou a sentir fortemente os reflexos desta opo industrializante.

    Houve grande aprofundamento de relaes capitalistas no campo

    brasileiro e o incio do processo de transformao da agricultura.

    Processo este que foi ampliado com a ditadura militar iniciada em 1964,

    principalmente na regio sul e sudeste do Brasil (FERNANDES, 1996). A

    intensificao das relaes capitalistas no campo nos anos 70 e 80 deu

    origem modernizao dolorosa, que aumentou a utilizao de

    mquinas e insumos na agricultura, avultou a concentrao da

    propriedade privada da terra e ampliou a excluso e a explorao no

    campo brasileiro (G. SILVA, 1982).

  • 13

    Em resposta excluso e explorao, a luta pela terra e

    pela reforma agrria foi retomada a partir do final dos anos 70 e incio dos

    anos 80. Perodo no qual os trabalhadores rurais decidiram retomar a

    bandeira da reforma agrria, de forma mais organizada. A luta pela

    reforma agrria renasceu, assim, da organizao e da atuao dos

    movimentos rurais, sendo seus membros considerados novos

    personagens5 no novo contexto da redemocratizao brasileira.

    Outros estudos tm procurado abranger um conjunto de

    dimenses diretamente ligadas valorizao dos sujeitos envolvidos na

    luta pela terra e aos impactos positivos que esta questo desencadeou na

    sociedade e no meio acadmico. Tais estudos tm procurado elucidar,

    entre outras coisas: o surgimento dos movimentos sociais rurais e a

    fundamentao de suas concepes polticas (TORRENS, 1994;

    FERNANDES, 1996); a construo e a reconstruo cultural promovida

    pelos movimentos sociais e as rupturas nas trajetrias dos sujeitos

    (WHITAKER & FIAMENGUE, 1995; DANTAS, 1997; FIAMENGUE, 1997;

    BOGO, 2000; CALDART, 2000a e 2000b; CASTELO BRANCO, 1999).

    A retomada da luta pela terra, pelos movimentos sociais,

    serviu para problematizar duas perspectivas de anlises que utilizaram a

    teoria marxista das classes fundamentais (burguesia x proletariado) para

    interpretar, de forma conservadora, o papel da populao moradora do

    meio rural brasileiro. Uma produziu interpretaes que apontaram a

    necessria transformao da populao do campo em mo-de-obra

    assalariada. A outra procurou tratar o campo numa tica que privilegia

    exclusivamente a racionalidade capitalista: ora considerando a reforma

    agrria uma ao que impedia a modernizao da sociedade; ora uma

    ao que acelerava o desenvolvimento da acumulao capitalista e,

    portanto, fortalecia o capitalismo. Ambas as interpretaes negavam aos

    5 Os novos personagens do processo de redemocratizao dos anos 80 sculo XX so retratados por E. SADER (1998) Quando os novos personagens entram em cena.

  • 14

    atores sociais em luta pela terra o papel de protagonista de uma luta pela

    transformao social.

    Importa ressaltar aqui que a experincia de conduzir a luta

    pela terra permitiu iniciar a construo do Movimento dos Trabalhadores

    Rurais Sem Terra MST, no final de 1979, no Rio Grande do Sul

    movimento que tem se empenhado para que um conjunto de aes,

    valores e idias que compem seu projeto sociocultural6 seja vivenciado

    de forma embrionria nos acampamentos e de maneira enraizada com a

    conquista do assentamento.

    A educao um dos elementos deste projeto sociocultural.

    Partindo de uma perspectiva que considerada humanista e socialista, o

    MST formulou a sua Proposta Pedaggica, a qual no esconde sua forte

    ligao com as teorias do educador Paulo Freire.

    Educador comprometido com seu tempo e com seus

    educandos, Paulo Freire defendeu, ao longo de sua vida, a necessidade

    de uma educao que contribusse com o educando na ao humana de

    transformao do mundo, enquanto sujeito da histria de sua prpria

    emancipao. Em sua obra Pedagogia do Oprimido (1996), o autor

    proclama a necessidade de uma educao que tenha como ponto de

    partida a relao opressor-oprimido. Nesta relao, os opressores

    transformam os oprimidos em objetos. Se os oprimidos forem capazes de

    ao poltica consciente de transformao da realidade, deslocam os

    primeiros de sua posio, o que pode vir a restaurar a humanidade de

    ambos.

    A educao bancria no contribui para essa

    transformao, visto que ela monologa e conduz opresso, pois nela

    os estudantes so objetos. A educao libertadora, pelo contrrio, pode

    6O projeto sociocultural do MST envolve os elementos de uma reforma agrria que inclua um programa de assentamento, uma poltica de financiamento e crdito e uma infra-estrutura social e cultural. Sobre o assunto veja-se: MST (1995) Programa de Reforma Agrria; BOGO (1998) A vez dos Valores, BOGO (2000) O MST e a cultura; CALDART (2000a) Pedagogia do MST; MST (1999) Como fazemos a escola de ensino fundamental.

  • 15

    levar os oprimidos liberdade, pois ela dialgica, problematizadora.

    Voltada para ao poltica consciente e para as relaes entre reflexo e

    ao. O que exige uma postura crtica do educador e do educando para,

    juntos, compreender a desumanizao, caracterizada pela injustia,

    explorao e violncia, e, ao mesmo tempo, transformar esta realidade

    cultural e fsica de opresso.

    A Proposta Pedaggica do MST foi elaborada medida que

    os Sem Terra7 perceberam que conquistar e ampliar o nmero de escolas

    no foi suficiente para implementar uma forma ou maneira de educar que

    cultivasse e projetasse a emancipao e a cidadania de seus membros.

    Diante disto, os Sem Terra iniciaram a construo de

    coletivos para refletir o que queriam com a escola de assentamento e

    decidiram que as mudanas na instituio escolar devem vincul-la ao

    projeto social dos Sem Terra, portanto, assim como o projeto foi uma

    elaborao coletiva tambm as aes de mudana na escola devem ser.

    O depoimento de uma professora de assentamento mostra

    esta disposio de mudana, que deve ser realizada com a participao

    da comunidade: a comunidade a nica capaz de exigir uma

    transformao real no jeito de ensinar do professor (apud CALDART &

    SCHUWAAB, 1991, p. 88).

    Entendemos que o MST criou sua forma de ver e conceber a

    educao e, ao mesmo tempo, organizou uma estrutura coletiva para

    realizar a expanso desta educao. A este conjunto que inclui a

    Proposta Pedaggica do MST (forma) e os coletivos (estrutura) para

    implement-la (a proposta) denominamos espacialidade da Proposta

    Pedaggica do MST.

    Neste sentido, analisamos as aes educacionais do MST e

    procuramos compreender, principalmente, a construo da Proposta

    Pedaggica do MST, como ela adquire espacialidade e o tipo de

    espacialidade que adquire nos assentamentos do Estado de So Paulo. 7Sobre o uso da grafia Sem Terra e/ou sem-terra ver item 3.2 desta dissertao.

  • 16

    Neste sentido, formulamos os seguintes questionamentos: Como ocorre e

    quais os sujeitos da construo e a espacializao da Proposta

    Pedaggica do MST? Quais as dificuldades da espacializao da

    Proposta Pedaggica? Que contribuies a ao pedaggica do MST tem

    trazido para a educao brasileira?

    A dissertao diz respeito a um estudo da relao entre MST

    e Educao, ou seja, ao modo como o movimento ocupou-se da histria

    da luta pela terra e de seu percurso nesta histria e as conjuga com a

    histria da educao brasileira, principalmente a educao rural,

    resultando na construo da Proposta Pedaggica do MST. Tratamos de

    compreender como os Sem Terra se apropriam dos aprendizados

    informais adquiridos com a luta de seu movimento e como se ocupam da

    educao formal fornecida nas escolas de assentamentos rurais e

    constri uma proposta pedaggica para modificar a educao oferecida

    nas escolas dos assentamentos.

    Em outras palavras, este estudo se refere maneira de os

    Sem Terra buscarem espacializar sua proposta pedaggica em escolas

    de assentamento rural e, desse modo, formularem contribuies

    pedaggicas que no dizem respeito somente s escolas dos

    assentamentos rurais, mas tambm escola rural e educao brasileira.

    3 - O papel da Teoria

    Maria Conceio D'Incao ressalta o papel da teoria na busca

    do conhecimento: a relao dialtica desta com os fatos. Segundo este

    entendimento, a teoria projeta e antecipa a pesquisa e, ao mesmo tempo,

    oferece uma gama de conceitos com os quais o pesquisador reflete e

    registra os resultados de uma pesquisa. A teoria elemento de mediao

    na busca do conhecimento, ajuda a sair do plano da percepo imediata,

    passar por uma abstrao analtica e voltar, ao final da pesquisa, ao

  • 17

    concreto explicado como um todo ricamente articulado e compreendido

    (D'INCAO, 1976, p. 18).

    Nesta pesquisa, o embasamento terico, entendido como

    um conjunto conceitual, mediou a compreenso da construo, da

    espacializao e das contribuies educacionais do MST. Neste sentido,

    apontamos a definio de alguns conceitos utilizados na pesquisa, a

    reviso bibliogrfica e os caminhos percorridos na realizao desta

    dissertao.

    3.1 - Definies conceituais de espao e territrio

    O conceito de espao est, muitas vezes, relacionado com o

    conceito de territrio, mais, freqentemente, este confundido ou adotado

    como sinnimo daquele. Para evitar equvocos, apresentamos a

    significao dos conceitos de espao e territrio adotados neste trabalho.

    O espao est relacionado com o fsico, com o palpvel,

    com uma rea de terra ou rea de uma nao, para citar alguns

    exemplos. O espao, em sentido amplo, a dimenso material

    preexistente a todo conhecimento e a toda prtica humana. Enquanto

    palco da ao humana, o espao um local que passa a existir a partir do

    momento em que um ser humano manifesta uma viso intencional sobre

    ele.

    Conforme Fernandes, no interior de um espao ocorre a

    espacialidade enquanto a forma e a estrutura da vivncia dos indivduos

    ou dos grupos no interior de um espao. O autor considerou a

    espacialidade dos Sem Terra como a forma e a estrutura que eles

    utilizam para construir e recriar saberes e experincias que atendam s

    suas necessidades e a seus interesses na disputa pela reforma agrria

    (FERNANDES, 1996, p. 225ss.). Assim, a espacialidade forma de

    organizar a sociabilidade do acampamento, de modo a humanizar o

    espao e transform-lo em ambiente de identificao dos indivduos na

  • 18

    disputa pela reforma agrria. A espacialidade , ento, um primeiro

    espao, um espao que no definitivo, mas serve aos interesses de

    iniciar a primeiras prticas sociais e, conseqentemente, as primeiras

    formas de socializao dos Sem Terra.

    J a espacializao designa os Sem Terra carregando suas

    experincias por diferentes lugares do territrio, na busca do recomeo

    como novos sujeitos (FERNANDES, 1996, idem). Na espacializao est

    contida a idia de espalhar a luta, ou seja, levar para todos os cantos do

    territrio nacional e todos os ambientes sociais, econmicos e polticos, os

    ideais defendidos pelos Sem Terra. Com esse deslocamento da luta, os

    Sem Terra podem carregar para novos espaos as experincias de

    sociabilidade do acampamento e tambm herdar as experincias

    acumuladas em outras lutas. O deslocamento das experincias sobre o

    territrio nacional vai transformando cada espao um espao no qual os

    sem Terra tentam estabelecer um novo espao de relao entre si e com

    os outros. Enfim, uma nova forma de ordenar a luta para alm do prprio

    espao de luta efetiva o acampamento e o assentamento vai

    surgindo.

    Corroborando M. Chenais e Y. Barel, respectivamente, Zil

    Mesquita definiu o territrio como o espao de um sistema social no

    interior do qual uma prtica social se sabe ou se cr eficaz, competente e

    legtima. Tais contribuies fundamentam a concepo da autora de

    territrio como um espao que necessita ser apropriado pelo homem,

    concretamente ou abstratamente e, portanto, receber atributos de valores,

    considerados fundamentais para ele se dar ao territrio: o territrio a

    priso que os homens se do. O territrio designa, assim, um espao

    selecionado pelo homem para a existncia de um agrupamento

    (MESQUITA, p. 80-2).

    Enquanto espao humanizado, o territrio tem seu limite na

    territorialidade, que a vivncia num espao semiologizado, ou seja, a

    territorialidade o territrio no qual o humano pode expressar sua

  • 19

    conscincia ou projet-la sob a forma de significado, por meio da imagem,

    da linguagem, do sistema de signos e de cdigos (MESQUITA, p. 76 -

    83).

    Maria de Lourdes Bandeira (1988), no livro O territrio Negro

    em espao Branco,8 tratou a territorialidade como relao do homem com

    um territrio cheio de significados e de possibilidades de significao, no

    qual possvel reelaborar a identidade. Apesar de no incluirmos a

    questo tnica neste estudo, a obra forneceu-nos uma slida referncia

    para tratar da influncia do territrio na formao e reconstruo da

    identidade Sem Terra. Neste sentido, pontuamos aqui suas contribuies

    que recebero a devida reflexo no momento oportuno.

    Para o que nos interessa aqui, apontamos, juntamente com

    a autora, que na rea rural existe vida comunitria em todas as instncias

    da vida social. Nesta convivncia social total, a territorialidade um

    componente e amlgama da tradio rural que permite o constituir e o

    transformar da identidade, justamente porque a territorialidade possibilita

    a classificao das instituies e dos modos de vida entre nossos e

    deles. Neste sentido, a gesto de um espao contribuiu decisivamente

    para a redefinio positiva da identidade dos membros da comunidade

    rural. 8A autora trata da definio e atualizao da identidade tnica do grupo negro na tenso dialtica da oposio preto X branco em trs momentos: Vila Bela Capital da Provncia ou Vila Bela dos Brancos; Vila Bela dos Pretos ou a constituio da comunidade negra e, finalmente, Vila Bela como palco da alteridade preto X branco na expanso da fronteira capitalista. Vila Bela foi fundada as margens do Rio Guapor, em 1748, como capital da provncia de Mato Grosso e serviu para que a Coroa Portuguesa garantisse a posse e domnio sobre os territrios aurferos de Cuiab e Mato Grosso e, ao mesmo tempo, a posse da bacia amaznica. A transferncia da capital do Mato Grosso para Cuiab ocorreu em 1835, marcando a sada dos brancos da Vila Bela e formao da Vila Bela dos Pretos. A sada dos brancos ensejou uma situao atpica, circunstanciando a resistncia dos pretos que manipularam semelhana/diferena como fundamento da energia criadora do enegrecimento de um espao branco constitudo. O retorno do branco ocorreu com a frente extrativista e o patronato e/ou com o avano das frentes pioneiras sobre o municpio de Vila Bela [no final do sculo XIX e incio do sculo XX]. Estes personagens e as relaes que encarnam atingiram radicalmente o modo de produo tradicional dos pretos de Vila Bela, desorganizando as estruturas comunitrias de produo e desintegrando, no seu rastro, as estruturas tradicionais de distribuio e consumo dos pretos, exigindo a mudana na identidade em funo das transformaes da territorialidade, amalgama desta comunidade de pretos.

  • 20

    O conceito de territorializao significa a conquista de

    fraes de um territrio. Neste sentido, a territorializao da luta pela terra

    um processo de conquistas de fraes do territrio pelos Movimentos

    Sociais e expressa concretamente o resultado das conquistas da luta e,

    ao mesmo tempo, apresenta os novos desafios a superar (FERNANDES,

    1996, p.225 42).

    A conquista do assentamento de reforma agrria resultou na

    territorializao do MST, possibilitou certa espacialidade dos ideais e dos

    valores construdos pelo movimento, bem como serviu de base para a

    realizao de um trabalho de socializao poltica, o que pode levar

    formao de novos grupos. A conquista do territrio ou territorializao da

    luta tambm permitiu a organizao e a gesto do espao do

    assentamento conquistado, fatores importantes para a conquista da

    cidadania. Segundo Milton Santos, a possibilidade de a populao

    organizar e gerir o espao so instrumentais a uma poltica de justia

    social, permitido criar o que ele chama de modelo cvico - territorial (M.

    SANTOS, 1999, p. 6).

    Definidos alguns conceitos com os quais realizaremos nossa

    interpretao sobre o espao e o territrio da luta pela terra, nos

    deteremos sobre algumas abordagens acerca de Educao e Movimentos

    Sociais.

    3.2 - Educao e Movimentos Sociais

    Os estudos sobre Movimento Social e Educao podem ser

    divididos, para efeito explicativo, em dois grandes grupos, cada qual

    abrangendo os mais diversos aspectos.

    Consideramos do primeiro grupo os estudos e as obras que

    abordam a atuao dos movimentos sociais e apontam os prprios

    movimentos como agncias formadoras, portanto, tais estudos vem os

    movimentos sociais como espaos informais de aprendizado, de

  • 21

    educao e de socializao de seus membros. Destacamos os livros e as

    teses relacionadas a seguir.

    Maria da Glria Gohn, no seu livro Movimentos Sociais e

    Educao, constata o carter educativo dos movimentos sociais urbanos

    e revela processos educativos que ocorrem fora dos canais institucionais

    de educao, ou seja, os aprendizados no esto restritos aos contedos

    especficos e nem so transmitidos por meio de tcnicas e instrumentos

    do processo pedaggico.

    A autora ressalta que o carter educativo dos movimentos

    sociais urbanos ocorre por meio de trs dimenses: a dimenso da ao

    organizada, que tem como substrato a defesa de uma cidadania

    coletiva, levando elaborao de tticas e estratgias; a dimenso

    da cultura poltica, que fundamenta a prtica cotidiana em um movimento

    social e tem a questo pedaggica como instrumento que ilumina as

    aes presentes e projeta os passos futuros e a dimenso

    espao/tempo, que envolve conhecimentos que permitem compreender

    as aes historicamente, bem como apreender a desumanizao ocorrida

    no tempo e no espao (GOHN, 1992, p. 18-20).

    Roseli Saleti Caldart, em seu livro Pedagogia do Movimento

    Sem Terra, busca compreender a experincia de formao dos sujeitos

    do MST, assim como a experincia de produo da identidade social,

    cultural e poltica, enquanto estes constitui o MST. A autora considera que

    os processos formativos no movimento social vo alm daquilo que a

    escola propica. Apesar disso, reconhece a importncia do papel da

    escola para a formao dos sujeitos do MST.

    Na anlise desta autora, sobressai uma pedagogia que tem

    como sujeito educador principal o MST, que educa os sem-terra

    enraizando-os em uma coletividade forte, e pondo-os em movimento na

    luta pela sua prpria humanidade. E assinala a existncia de uma

    dialtica educativa no movimento, que tem permitido identificar nos seus

    membros uma conscincia de sujeitos sociais vinculados a uma luta social

  • 22

    e a uma luta de classe e a um projeto de futuro um sentido sociocultural

    (CALDART, 2000a, p. 11ss.).

    Na tese de Clia Regina Vendramini, Conscincia de Classe

    e Experincias scio-educativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais

    Sem Terra, h uma anlise sobre os sujeitos em formao no interior do

    MST, na qual se percebe a tentativa de compreender a conscincia de

    classe construda a partir de experincias scio-educativas dos sujeitos

    do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

    Embora os conceitos de conscincia de classe, classes

    sociais e novos movimentos sociais tenham sido forjados para explicar os

    acontecimentos ligados ao urbano, a autora acredita ser possvel utiliz-

    los para a interpretao dos sujeitos que atuam na luta pela reforma

    agrria (VENDRAMINI, 1999, p. 1-13).

    Maria Teresa Castelo Branco, em sua tese Os Jovens Sem-

    Terra: Identidades em Movimento, pesquisou a formao da identidade

    de Jovens Sem Terra, membros do MST no Estado de So Paulo e

    constatou que ela se constri coletivamente na luta realizada por suas

    famlias.

    Castelo Branco afirma que a formao da identidade

    construda em funo de prticas de enfrentamento coletivo da ordem

    instituda. Isto , a identidade Sem Terra construda medida que eles

    necessitam desvendar as contradies sociais com as quais se

    defrontam. Muitas vezes, desvendar tais contradies significa subverter

    as imagens negativas que lhes so impostas. Algumas vezes, esta

    subverso necessita da estruturao de novas relaes no acampamento

    e no assentamento, em meio aos quais as novas geraes vo constituir

    um conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmas (CASTELO

    BRANCO, 1999, p. 11-16).

    Consideramos do segundo grupo os estudos e obras que

    tratam desde a influncia dos movimentos sociais nos processos e

    espaos formais pblicos e privados de ensino, de educao e de

  • 23

    formao, at os processos de aprendizagem e ensino que ocorrem na

    escola ou fora dela. Os livros e as dissertaes que se encaminharam

    nesta direo so relacionados a seguir.

    Nilma Lino Gomes, em seu texto A contribuio dos Negros

    para o Pensamento Educacional Brasileiro, mostra que as aes dos

    movimentos sociais no campo educacional no se restringem apenas aos

    aprendizados realizados fora dos canais institucionais, pois h muito

    tempo suas aes incluem os canais institucionais. Em seu estudo sobre

    o movimento negro, a autora afirma que os movimentos sociais

    sensibilizam pesquisadores, tericos e educadores sobre alguns

    aspectos da realidade educacional.

    Da mesma forma, os movimentos sociais procuram

    introduzir novas temticas, novos olhares e novas nfases na pesquisa,

    na teorizao e nas propostas de interveno sobre a questo

    educacional (GOMES, 1997, p.20).

    No livro de Roseli S. Caldart, Educao em Movimento:

    formao de educadoras e educadores no MST, so abordados os

    aspectos relativos formao de educadores e construo de uma

    proposta de educao, vinculadas s necessidades e aos desafios da luta

    pela Reforma Agrria. A obra focaliza, ainda, os processos por meio dos

    quais os sujeitos sociais (trabalhadores/as do campo) passaram a se

    constituir como sujeitos sociais de sua prpria educao, sem

    desconsiderar a necessidade de transformaes sociais mais amplas em

    nosso pas (CALDART, 1997, p. 15).

    Nesta obra de Caldart h uma descrio sobre a formao

    de educadores/as da reforma agrria para atuarem nas escolas de

    assentamento e de acampamentos conquistados pelo MST e sobre a

    tentativa de articular os/as trabalhadores/as que se envolveram

    diretamente com a escola e com a proposta de educao do MST. A

    anlise privilegia as experincias de formao desenvolvidas atravs do

    MST, com vista formao de professoras/es que valorizasse a cultura

  • 24

    do meio rural, contribuindo para solucionar os desafios enfrentados na

    luta pela terra e na terra conquistada (CALDART, 1997, p. 15).

    Na dissertao de Clia Regina Vendramini, Ocupar,

    Resistir e Produzir: Um Estudo da Proposta Pedaggica do Movimento

    dos Sem Terra, na qual a autora pesquisa a educao em assentamentos

    do MST no Estado de Santa Catarina, constata-se a necessidade de

    relacionar a organizao poltica, educativa e produtiva dos sujeitos do

    movimento com a totalidade social. Seu trabalho se consubstancia numa

    anlise crtica da Proposta Pedaggica do MST e de sua aplicao no

    interior de algumas escolas.

    A autora aponta a necessidade de se buscar uma totalidade

    relacionando os princpios pedaggicos e metodolgicos da Proposta

    Pedaggica do MST com a reforma agrria e com a cooperao agrcola

    defendida pelo MST (VENDRAMINI, 1992, p. 8).

    Na dissertao de Isabela Camini, Cotidiano Pedaggico de

    Professores e Professoras em uma Escola de Assentamento do MST:

    Limites e Desafios, a autora aborda o cotidiano pedaggico de

    professores/as pertencentes ao ensino pblico estadual em uma escola

    de assentamento do MST no Estado do Rio Grande do Sul e constata que

    a luta por Educao neste Movimento Social j tem reconhecimento e

    que a escola j faz parte da luta maior pela conquista de um pedao de

    terra (CAMINI, 1998, p. 19-52).

    Os estudos citados tornaram-se importantes referncias

    para compreender a educao pretendida pelos Sem Terra, ou seja, para

    apreender a tentativa do MST em espacializar para as escolas de

    assentamentos de reforma agrria, mantidas pelo poder pblico paulista,

    as elaboraes terico-pedaggicas e terico-metodolgicas da Proposta

    Pedaggica do MST.

    4 A memria e os caminhos da Pesquisa

  • 25

    Nas cincias, tanto as pesquisas quanto as temticas so

    construes histricas, dizem respeito a escolhas feitas por seres

    humanos situados no tempo/espao de que necessitam resolver

    determinados problemas. Concomitantemente, ao selecionar temas e

    teorias, o pesquisador elege as metodologias, os caminhos para a

    realizao da pesquisa, estes tambm resultados de opes.

    A escolha da metodologia de pesquisa constitui, assim, uma

    necessidade daqueles que pretendem empenhar-se no trabalho de

    sistematizar e/ou produzir conhecimentos. E os caminhos so diversos.

    Mas alguns passos so fundamentais: ter clareza da direo tomada para

    se chegar ao tema, ao objeto e ao problema de pesquisa; escolher o

    referencial terico que dar suporte s suas pesquisas; elaborar o

    instrumental (ferramenta) necessrio para a realizao de pesquisas. Na

    maioria dos casos, a pesquisa propriamente dita se inicia quando tais

    fatores j foram preliminarmente definidos. Contudo, no decorrer da

    pesquisa alguns desses passos so redefinidos ou merecem melhor

    questionamento. Tudo isso faz parte do trabalho de pesquisador.

    Na tentativa de estabelecer um dilogo a respeito da

    realizao desta pesquisa, faremos algumas consideraes sobre os

    passos seguidos desde nossas proposies iniciais at chegar ao

    presente texto de dissertao.

    Segundo Suely Ferreira Deslandes, as atividades que

    compem a fase exploratria, alm de antecederem construo do

    projeto, tambm a sucedem (in MINAYO, 1994, p. 31). Na fase

    exploratria desta pesquisa, algumas leituras foram fundamentais para

    uma melhor aproximao do objeto e do objetivo de pesquisa. Com tal

    inteno, procurei entrar em contato com professores que realizavam

    pesquisas na rea de sociologia da educao, bem como passei a

    realizar leituras sobre educao, sobre a luta pela terra, sobre a reforma

    agrria e sobre os movimentos sociais.

  • 26

    Nesta fase foi tambm fundamental a participao no

    NUPEDOR, no qual realizamos reflexes coletivas sobre a questo rural,

    relativos ao preconceito contra o homem rural e referentes metodologia

    de pesquisa no meio rural. Na oportunidade, iniciamos a escrita de um

    livro relatando nossa experincia metodolgica de um olhar poliocular

    para a compreenso da totalidade humana dos sujeitos assentados de

    reforma agrria (WHITAKER, 2002). O amadurecimento neste processo

    foi um dos grandes impulsionadores para a realizao desta dissertao e

    dos rumos que ela tomou.

    Munido da inteno de pesquisa, prossegui realizando

    pesquisa bibliogrfica sobre as temticas arroladas. Boa parte das leituras

    realizadas se encontram mencionadas no corpo da dissertao, mas

    algumas merecem ser citadas, a ttulo de exemplo: a dissertao de

    Mestrado de Bernardo Manano Fernandes, depois publicada sob o ttulo

    MST: formao e territorializao (Editora Hucitec, 1996); o livro

    Assentamentos Rurais, organizado por Leonildes Servolo de Medeiros

    (Editora Unesp, 1994); o livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire

    (Editora Vozes, 1996); o livro O que mtodo Paulo Freire, organizado

    por Carlos Rodrigues Brando (Editora Brasiliense, 1981); o livro

    Educao e escola no campo de Jacques Therrien e Maria Nobre

    Damasceno (orgs.) (Editora Papirus, 1993). Alm destas obras

    mencionadas, outras foram consultadas.

    As leituras, realizadas ao longo da minha vida acadmica,

    forneceram elementos para a elaborao desta dissertao. lgico que

    nem tudo se aproveitou de pronto, mas muitas das vivncias

    mencionadas serviram de substrato ou se constituram em referncias

    obrigatrias na escolha do objeto e na realizao da pesquisa.

    Tanto a participao em congresso, palestras, atividades de

    pesquisa e de reflexo em grupo, quanto a minha experincia de vida

    ajudaram na realizao desta dissertao: 1) A consulta ao dirio de

    campo, elaborado numa das etapas do Curso de Magistrio de Frias

  • 27

    (DER, jan./fev. de 1993), foi fundamental para auxiliar nas recordaes

    sobre a questo educacional no MST; 2) As observaes e vivncias

    registradas em dirio de campo (NUPEDOR/UNESP-Araraquara, 1

    semestre de 1998), durante a pesquisa de iniciao cientfica realizada

    em assentamentos na regio central do Estado de So Paulo, auxiliaram

    na recuperao das relaes dos assentados com seu espao e com os

    agentes do governo, com atacadistas (ou atravessadores) e com outras

    lideranas; 3) A participao como recenseador no I Censo de Reforma

    Agrria (INCRA, final 1996 e incio de 1997) contribuiu para conhecer

    alguns assentamentos como o Timbor e o Primavera, em Andradina/SP;

    o Assentamento gua Vermelha, em Turmalina/SP; o Assentamento de

    Pereira Barreto/SP; 4) As visitas a acampamentos e assentamentos do

    MST do Estado de So Paulo, as participaes em eventos de formao

    ou em reunies com lideranas do MST, o retorno a assentamentos

    visitados anteriormente foram serviu para uma aproximao com os

    sujeitos e com a realidade pesquisada.

    Parte dos dados foram coletados por meio de trs

    entrevistas semi-estruturadas e gravadas, sendo duas realizadas no incio

    de janeiro de 2001, no Assentamento Pirituba, regional Itapeva/MST

    SP. A entrevista com BN, assentada em Itapeva/SP, rea I do

    Assentamento Pirituba, foi realizada em sua casa. Esta entrevistada foi

    uma das primeiras dirigentes do Setor de Educao do MST/SP. Quando

    fomos para esta regional j tnhamos a inteno de entrevist-la, pois

    poderamos obter um panorama da construo do Setor de Educao no

    Estado de So Paulo. Atualmente esta entrevistada agente de sade do

    municpio, desenvolve esta atividade no assentamento e participa do

    Setor de Sade do MST/SP.

    A entrevista com JA e BL, filho e filha, respectivamente, de

    assentados em Itapeva/SP, rea III do Assentamento Pirituba, foi feita ao

    mesmo tempo (uma s entrevista). A realizao desta entrevista foi

    decidida quando j me encontrava na regional de Itapeva. Num primeiro

  • 28

    momento, a inteno era entrevistar apenas o JA, que recentemente

    havia sido escolhido para participar do coletivo regional de educao

    regional de Itapeva. Como, na hora da realizao da entrevista, estava

    presente sua irm BL, que ex-participante do SE e atualmente faz parte

    do Setor de Formao do MST/SP, consideramos importante registrar seu

    depoimento.

    A terceira entrevista foi realizada com KL, em julho de 2001,

    no escritrio da Regional Nordeste do MST, na cidade de Ribeiro

    Preto/SP. A entrevistada realizou trabalhos na escola do Assentamento

    de Sumar/SP, depois, enquanto cursou Pedagogia na Unesp/Marlia-SP,

    estreitou sua relao com o MST, apoiando-o em suas aes. Aps o

    trmino de Pedagogia entrou para o MST e foi trabalhar na equipe de

    educao em acampamento da regio do Vale da Paraba/SP, em

    seguida fez parte da direo do SE/SP. Atualmente liderana do MST,

    atuando no Setor de Frente de Massa e acompanha o Setor de Formao

    e o Setor de Educao do MST do Estado de So Paulo.

    As entrevistas, as bibliografias, a memria e o Dirio de

    Campo foram instrumentais empregados na coleta dos dados. O dilogo

    com sujeitos que vivenciam ou vivenciaram acontecimentos semelhantes

    aos referidos nesta dissertao tambm foram considerados fonte de

    dados ou elementos para melhor apreender a realidade e os temas

    pesquisados.

    Tais dados foram submetidos a uma descrio densa

    (GEERTZ, 1993), numa tentativa de melhor compreender a realidade

    estudada e, ao mesmo tempo, o uso de diferentes formas de coleta de

    dados objetivou a triangulao dos dados (DANDR, 1999).

    4.1 - A participao do pesquisador no processo de pesquisa e a dinamizao do trabalho de pesquisa

  • 29

    A compreenso de uma realidade pesquisada nas Cincias

    Humanas ampliada e aprofundada quando h a interao de pelo

    menos trs fatores: o olhar atento sobre a realidade; a relao entre o

    pesquisador, os sujeitos da pesquisa e a realidade pesquisada; e a teoria

    como elemento de mediao entre os dados e os objetivos perseguidos

    (S. COSTA e outros in WHITAKER, 2002).

    Contudo, a postura de neutralidade, atribuda cincia

    moderna, dificultou, se no impediu, a considerao pelo ser humano

    como uma totalidade holstica. O filsofo Ren Descartes, em Discurso do

    Mtodo, defendeu a separao entre corpo e mente como sinnimo de

    objetividade cientfica, acabando por ser reconhecido como o idelogo

    que justificou os pressupostos da cincia cartesiana, elaborada pelos

    cientistas do sculo XVII.

    O questionamento desta concepo pelas Cincias

    Humanas serviu para recolocar o humano e a totalidade holstica no

    centro das preocupaes cientficas. E a totalidade dos processos

    humanos e naturais, que h muito se encontrava sufocada, foi

    redescoberta nestas cincias. No Brasil, a Cincias Humanas j

    desistiram dessa neutralidade desde meados do sculo XX Socilogos

    tm discutido o papel dos sujeitos desde os anos 70/80, um exemplo

    pode ser buscado em Eder Sader (1998).

    A memria e seu uso nas Cincias Humanas um dos

    caminhos metodolgicos que tem recebido ateno dos pesquisadores.

    Por estar presente na cena da pesquisa, a memria do pesquisador no

    deve ser deslegitimada pelo fato de o pesquisador ter estado ou estar

    imerso na realidade a que se prope investigar. Contudo, o encontro entre

    o sujeito pesquisador com a realidade e o sujeito pesquisado no deve

    ser elemento de confuso. O pesquisador necessita diferenciar a sua

    memria (que deve passar por controle epistemolgico) da memria do

    pesquisado (que tem que ser respeitada). O pesquisador controla

  • 30

    epistemologicamente a sua memria e utiliza a teoria para analisar,

    refletir, as representaes/dados do pesquisado.

    Uma detida ateno a qualquer dos fenmenos sociais

    revela a presena maior ou menor do pesquisador. Alis, por demais

    conhecido que o pesquisador est, ele prprio, imerso na realidade

    pesquisada, isto faz parte da realidade humana. E, quando se considera

    esta questo fundamental, salta aos olhos a humanidade do pesquisador

    e do pesquisado, exceto nos casos em que se pretende desconsiderar um

    ou outro, quer figuradamente, quer por uma questo de mtodo. De

    qualquer forma, no h como excluir a memria de ambos, pois, quando

    isto acontece, o silncio fala por ela.

    Quando o pesquisador realiza o registra dados no dirio de

    campo, por exemplo, sua memria est presente. a existncia da

    memria do pesquisador, no momento em que presencia os

    acontecimentos e os registra, que permite que uns dados e no outros

    sejam considerados relevantes em funo da pesquisa que empreende. A

    excluso da memria do pesquisador, tambm neste caso, uma

    tentativa de invalidar tais dados. Quando no, uma tentativa de

    desqualificar os sujeitos envolvidos, o que pode ter a ver com a busca de

    uma pretensa neutralidade. Neutralidade esta que, no limite, no s

    ignora a existncia do sujeito pesquisador, como tambm a do sujeito

    pesquisado.

    Como fonte de dados, o registro em dirio de campo visa

    registrar os acontecimentos, gestos e aes que o pesquisador viu, ouviu

    ou presenciou (DANTAS, 1997; S. COSTA, 2002). Nestes casos, o

    registro , muitas vezes, o registro da construo de outras pessoas

    (ANDRADE, 1997).

    Este registro pode ser de acontecimentos ou por interesse

    de pesquisa. Quando feito por um pesquisador, realizado depois que o

    mesmo definiu um objeto e um objetivo de pesquisa e, portanto, satisfaz

  • 31

    um interesse pr-estabelecido. Para tanto, o pesquisador participa da

    realidade de corpo inteiro, mesmo que empenhado s em coletar dados.

    Alis, os dados coletados para fins cientficos, por meio de

    qualquer tcnica, tm como elemento atuante o pesquisador e sua

    memria. Nas cincias, a coleta de dados visa objetivos bem definidos: a

    soluo de uma problemtica no interior de um tema de pesquisa,

    fundamentada em uma rea do conhecimento e um referencial terico-

    metodolgico.

    Consideradas as condies e os objetivos expostos, nas

    Cincias Humanas, o uso atuante da memria do pesquisador para fins

    de coleta de dados em trabalhos cientficos justificado. A subjetividade

    do pesquisador se revela, ento, como intersubjetividade, visto que a

    memria do pesquisador, como elemento de sua humanidade, s

    possvel porque est em relao com a humanidade dos sujeitos

    pesquisados e mediados por uma inteno de pesquisa cientfica.

    Contudo, chamamos a ateno para o fato de estarmos

    tratando da memria tambm numa outra tica. A tica deste pesquisador

    que participou de um acontecimento como um membro, ou seja, sem

    nenhuma intencionalidade que no fosse a existncia comum em

    espao/tempo determinado, sem efetuar registros, a no ser em funo

    de atividades pedaggicas no curso Magistrio de Frias ou em minha

    prpria memria, portanto, naquela ocasio, sem intencionalidade

    cientfica.

    Estamos tratando do uso da memria por parte do sujeito

    que participou de um acontecimento e que, posteriormente, se viu na

    condio de pesquisador, com a possibilidade de buscar na memria,

    para fins cientficos, fatos e acontecimentos nos quais esteve presente,

    pois estes fazem parte do objeto e do objetivo da presente pesquisa.

    Tal situao tambm foi vivida por ngela Caires (1999),

    durante sua tese de Doutorado, Fios Tecidos: A malha da terceirizao no

    setor txtil em Araraquara, na qual relata as angstias impostas pela

  • 32

    discusso acadmica com relao posio do pesquisador. As

    inquietaes surgiram porque sua pesquisa envolveu uma realidade que,

    no passado, esteve relacionada sua vivncia concreta, enquanto ex-

    empregada da rea de Relaes Humanas da empresa que exigia

    lealdade de seus trabalhadores e que, agora, serviu de objeto de estudo.

    Contudo, ainda segundo Caires, as experincias vividas e sentidas pelo

    cientista social constituem componentes que contribuem para o

    conhecimento da realidade social. Apoiada em Heleith Saffiotti, a

    pesquisadora afirma buscar na razo e na emoo os instrumentos

    necessrios interpretao de uma realidade que cruza experincia

    pessoal com a experincia de outros sujeitos (CAIRES, 1999, p. 1-2).

    Diferentemente de Caires que tratou de pesquisar uma

    realidade que envolvia a Indstria Lupo, empresa tradicional da cidade de

    Araraquara, na qual trabalhou durante muitos anos, minha relao de

    proximidade com o objeto pesquisado e o uso da minha memria como

    fonte de dados no consistiu em ocasio de angstia. Minha relao com

    as lembranas de situaes vividas, e que agora servem para clarear e

    auxiliar no registro e na reflexo sobre os dados da pesquisa, coletados

    tambm por meio da bibliografia e das entrevistas, deu-se de maneira

    prazerosa.

    Assim, est claro que o revisitar da memria propicia o

    descrever de ambientes em que os acontecimentos ocorreram, trazendo a

    tona as situaes em que houve o cruzamento de experincias de

    sujeitos. Na tentativa de captar dados por meio um olhar dirigido prpria

    memria, o pesquisador capaz de compreender um espao e um

    processo que tambm enquadram a sua dimenso espacial e subjetiva.

    Jos Moura Gonalves Filho (1997) diz no texto Olhar e

    Memria, que a memria, ao descrever fatos, situaes, gestos e

    acontecimentos sobre uma realidade vivida tem impacto e eloqncia

    junto aos observadores participantes, que nestes acontecimentos se

    engajaram integralmente (GONALVES FILHO, 1997, p. 95).

  • 33

    O pesquisador, estando de posse de uma teoria e mediante

    um certo grau de vigilncia epistemolgica, pode realizar um processo

    interpretativo dos dados coletados. Assim, o resgate da memria a

    busca de uma histria, na qual a memria do pesquisado o meio no

    qual se busca reconstruir, desse passado vivido, os elementos

    necessrios ao entendimento, explicao ou comprovao de fatos

    presentes.

    Nesta perspectiva, a relao dialtica estabelecida pelo

    pesquisador entre memria - dados/teoria/interpretao, quando passa

    pelo crivo de uma rea do conhecimento cientfico, considerada trabalho

    cientfico. E torna-se cincia menos por ser um discurso nico, e sim

    porque esta relao uma possibilidade dentro da cincia, e, como tal,

    pode ser contestada ou confirmada. Essa relao se faz mais dialtica na

    medida em que se faz mais reveladora e mais respeitosa a interao

    pesquisador - pesquisado.

    Gonalves Filho cita Ecla Bosi e afirma que o relembrar

    exige um esprito desperto, a capacidade de no confundir a vida atual

    com a que passou, de reconhecer as lembranas e op-las s imagens de

    agora. O autor considera uma certa espessura existencial e poltica da

    memria que oferece o passado atravs de um modo de ver o passado,

    fazendo cruzar a histria e a intimidade:

    O olhar que se desperta em direo ao passado, divertindo-se e compenetrando-se nas imagens de um outro tempo, suscitadas nos materiais e nas obras que a memria impregnou, longe de constituir-se num impedimento nostlgico histria, instaura um desequilbrio na relao com o presente vivido e representado como progresso. Ergue-se uma oposio ao fetichismo do moderno, oposio desqualificao e esvaziamento da experincia (GONALVES FILHO, 1997, p. 95).

    Para o autor citado, a memria s entra em contraste com o

    esforo das cincias quando esta interpreta a histria renunciando nela

  • 34

    tomar parte. Neste estudo, assumimos a nossa posio por uma cincia

    cheia de intenes, por isto, assumimos nosso olhar com subjetividade.

    Assumimos o jeito de olhar que v a memria como no estando

    dissociada do viver humano, pois esse viver finca raiz na participao

    ativa e natural.

    Esse enraizamento, conforme entende Simone Weil (1979),

    define o ser humano em consonncia com seu ambiente cultural, o que

    no s produz este enraizamento como fornece a memria desta

    existncia, fazendo cruzar a histria e a intimidade (apud GONALVES

    FILHO, 1997).

    Neste estudo, a contextualizao das aes dos Sem Terra,

    nos aspectos histricos, polticos e educacionais poderia ser prejudicada,

    no fosse o recurso memria. Da mesma forma, sem outras fontes

    (entrevistas, bibliografias, anlise de artigos de revistas e de jornais), a

    compreenso de como ocorre a tentativa de dar espacialidade da

    Proposta Pedaggica do MST, e o tipo de espacialidade que adquire nos

    assentamentos do Estado de So Paulo no estaria completo.

    Organizamos a dissertao do seguinte modo. No captulo 1,

    fazemos uma retrospectiva sobre a histria da ocupao da terra no

    Brasil, enfocando a colonizao, a constituio da propriedade privada, os

    conflitos envolvendo a questo da terra, os movimentos sociais de luta

    pela terra do sculo XX, em especial a formao do Movimento dos

    Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST.

    No captulo 2, focalizamos a histria da educao brasileira

    e seu descaso com a educao das populaes moradoras no meio rural.

    E relacionamos algumas mudanas recentes na poltica educacional

    brasileira.

    No captulo 3, tratamos as ocupaes de terras pblicas e

    latifndios improdutivos como modo de o MST espacializar a luta pela

    terra. Assinalamos estas aes do MST como maneiras de introduzir nos

    acampamentos e nos assentamentos formas de sociabilidade e

  • 35

    socializao, que constam em seu projeto sociocultural e do identidade

    aos Sem Terra.

    No captulo 4, abordamos a construo de uma estrutura

    coletiva que atua em questes relacionadas com a educao dos que

    lutam pela terra e pela reforma agrria em nosso pas. Focalizamos a

    importncia de tal estrutura para construir e implementar a Proposta

    Pedaggica do MST nas escolas pblicas de acampamentos e

    assentamentos, organizados pelo movimento.

    No captulo 5, apresentamos a organizao do Setor de

    Educao do MST/SP e verificamos sua dificuldade em encaminhar a

    implantao da Proposta Pedaggica do MST nas escolas pblicas em

    reas de assentamento.

    Finalmente, nas Consideraes Finais, pontuamos algumas

    contribuies do MST para a renovao do pensamento e da prtica

    pedaggica no meio rural brasileiro e apontamos algumas concluses,

    que no so definitivas, estando abertas a novas contribuies.

  • 36

    Captulo 1

    UM OLHAR SOBRE A HISTRIA DA TERRA NO BRASIL

    A invaso chegou de barco nesta Amrica Latina. Veio riscado da Europa este plano de chacina. Vinha em nome da civilizao Empunhando a espada e uma cruz na outra mo. (Z Pinto cantor e poeta do MST)

    Este captulo faz uma breve retrospectiva sobre a histria de

    ocupao da terra no Brasil. Com isso, procuramos sistematizar, de

    maneira breve, o processo poltico dos conflitos de terra no Brasil desde a

    colonizao, a constituio da propriedade privada, a Repblica, em

    especial os movimentos sociais de luta pela terra no sculo XX e a

    formao do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST.

    1.1 Civilizao do novo Mundo

    A ocupao das novas terras se deu por meio da tomada de

    terras indgenas pelo europeu no sculo XVI. Tal acontecimento, como diz

    o poeta, foi riscado pela Coroa de Portugal, originou o processo

    vulgarmente denominado de colonizao do Novo Mundo. As terras

    tomadas dos indgenas, por meio da espada em uma mo e a cruz na

    outra, foram consideradas domnio da Coroa de Portugal. As incurses de

    franceses, de ingleses e de holandeses fez Portugal enviar a primeira

    expedio colonizadora nova terra, em 1530, chefiada por Martim

    Afonso de Sousa. Em 1549, D. Joo III instituiu o regime de Capitanias

    Hereditrias e o Governo Geral.

  • 37

    A formao de Capitanias Hereditrias foi a forma que a

    metrpole encontrou para envolver empreendedores privados na

    colonizao das novas terras, sem grandes nus financeiros Coroa (M.

    COSTA, 1988, p. 27-8). A partir deste momento, as terras do novo

    mundo foram entregues, em nome da Coroa Portuguesa, aos capites-

    donatrios, os quais se tornavam possuidores, mas no proprietrios da

    terra. Os donatrios eram fidalgos, gente da pequena nobreza,

    burocratas, comerciantes, ligados Coroa que possuam poderes, tanto

    na esfera econmica (arrecadao de tributos) como na esfera

    administrativa (distribuio de sesmarias9 e datas), alm de poderes

    polticos, militares e jurdicos.

    Vrios fatores contriburam para a concentrao da terra no

    perodo. Um dos critrios de concentrao foi o lao de sangue,

    fortemente considerado na conquista de uma possesso de uso da terra

    advinda do regime de sesmarias:

    As doaes de sesmarias, estipuladas pela Coroa Portuguesa eram vinculadas s famlias dos primeiros donatrios, obrigando aos sucessores herdeiros a guardarem sempre os mesmos apelidos. (...) Porm, as doaes constituam apenas a legitimidade da posse, e os direitos e privilgios do donatrio (VARNHAGEN, 1975).

    O regime de morgadio tambm contribuiu para concentrar a

    terra nas mos de poucos, privilegiando o direito de herana do filho

    primognito. Tal regime foi abolido aps a Independncia. O casamento

    entre filhos das famlias abastadas, como se sabe, foi outro componente

    da constituio das grandes propriedades no Brasil.

    Episdios como a expulso e a violncia foram outros

    fatores que tambm contriburam significativamente para o aumento desta

    concentrao. O poderio advindo da concentrao no se resumiu, como

    9 O regime de sesmarias, existente em Portugal, foi implantado no Brasil pelo Governo Geral.

  • 38

    j dito, apenas terra, mas tambm a poderes de uma sociedade de

    mentalidade escravocrata e, posteriormente, oligrquica, com o fim da

    escravido.

    A obteno do direito de posse da terra tambm estava

    vinculada possibilidade de cultiv-la, ou seja, o regime vigente concedia

    a posse e o uso, desde que o beneficirio pudesse realizar cultivo,

    efetuado com o trabalho escravo. O uso do trabalho cativo para o cultivo

    foi outro fator que garantiu a concentrao da posse e do uso da terra.

    Com a proibio do cativo indgena em 1611, o negro foi

    trazido da frica por meio do trfico ultramarino e constituiu a modalidade

    preferencial de mo-de-obra. Com isto, a empresa mercantil europia, sob

    a justificativa de falta de braos, tratou de fazer do trfico ultramarino de

    indivduos e de grupos africanos a sua mais nova e rentvel atividade

    comercial.

    Contra a explicao do uso de mo-de-obra escrava pela

    falta de braos, Martins (1996) cita Maria Sylvia de Carvalho Franco,

    quando esta afirma que o carter compulsrio do trabalho no provinha

    da escassez absoluta da mo-de-obra, mas do fato de que a oferta

    desses trabalhadores no mercado era regulada pelo comrcio negreiro.

    O autor cita mais uma vez Carvalho Franco em nota de rodap (nota n.

    32, da 6 ed. de O cativeiro da terra), na qual se diz: ...uma das mais

    importantes implicaes da escravido que o sistema mercantil se

    expandiu condicionado a uma fonte externa de suprimento de trabalho e

    isto no por razes de uma perene carncia interna... (apud MARTINS,

    1996, p. 25).10

    A maior empreitada civilizatria europia na Amrica

    Brasileira foi iniciada com a escravido de indgenas e prosseguiu com o

    cativeiro dos negros. Vale dizer, os europeus introduziram a invaso da

    terra e o genocdio de seres humanos sob o pretexto de civilizar o novo

    mundo. Esta invaso foi efetuada por meio de um instrumento poltico (a 10 Ver CARVALHO FRANCO (1969) Homens Livres na Ordem Sociedade Escravrocrata.

  • 39

    simpatia do rei), definida por um instrumento legal (o regime de

    capitanias), fundamentada por um regime comercial (a produo de bens)

    e baseada numa atrocidade (introduo do cativeiro humano, com a

    escravido de indgenas e africanos). Vale ressaltar que a sistemtica de

    distribuio da terra aos fidalgos foi adotada para que eles fossem

    privilegiados com o acesso a uma terra cuja posse e tambm o uso

    ficavam sob a chancela da Coroa Portuguesa.

    Embora as terras no tivessem valor monetrio at 1850,

    quando esta situao comea a ser modificada, os poderes dos fidalgos

    advinham da possibilidade de dar posse de terra queles que no eram

    fidalgos. Eram os fidalgos que utilizam os direitos adquiridos pela

    proximidade com a Coroa que decidiam sobre quais e como os demais

    membros da populao tinham acesso a posse da terra. Neste sentido, os

    ndios, os negros quilombolas e os posseiros tinham acesso terra de

    forma marginal e a revelia dos fidalgos. O fato que a maioria da

    populao, composta por indgenas, escravos e homens livres (mulatos,

    agregados, sitiantes e escravos libertos), ficou fora das regras definidas

    pela Coroa Portuguesa para a posse e uso da terra e quando incorporada

    ao sistema, o foi de forma subordinada ao poder dos fidalgos.

    1.2 - Terra de liberdade terra comprada

    O regime de ocupao por meio de sesmarias durou at

    1822, ano em que foi extinto pelo rei D. Joo VI, poucos meses antes da

    independncia do Brasil, visando modernizao da legislao

    portuguesa e colonial.

    Somente em 1850, a Lei 601/1850, chamada Lei de Terras,

    definiu medidas legais para um novo regime fundirio. Tal lei foi elaborada

    para dar conta de uma questo legal, a suspenso do regime de

    sesmarias; de uma questo poltica, a assinatura de tratado com a

    Inglaterra estipulando o fim do trfico ultramarino de escravos; de uma

  • 40

    questo social, dificultar o acesso de homens livres, de imigrantes e de

    escravos terra mediante a previso do fim do regime de escravido.

    At 1850 a terra no tinha valor. Mas, com a Lei de Terras,

    as classes dominantes tomaram medidas legais para confiscar a terra e

    restringir o acesso mesma. Esta lei foi o passo inicial para o

    estabelecimento do regime de propriedade privada da terra no Brasil. Lei

    que indenizou a Unio com a doao de todas as terras no tituladas,

    direito este transferido aos Estados pela 1 Constituio Republicana,

    promulgada em 1891, aps a instaurao do Regime Republicano,

    ocorrido em 1889.

    Um quadro comparativo a respeito do surgimento da

    propriedade privada pode ser buscado nas anlises de Marx e Engels.

    Segundo estes autores, a constituio da propriedade privada na

    Inglaterra foi um dos elementos primordiais do surgimento do sistema

    capitalista. Enquanto propriedade privada, a terra apareceu ao lado da

    riqueza em mercadorias e escravos, ao lado da riqueza em dinheiro. (...)

    A terra, agora podia tornar-se mercadoria, podia ser vendida ou

    penhorada (MARX e ENGELS, 1982). A constituio dessa forma

    propriedade da terra, na Inglaterra, foi alicerada no cercamento de

    grandes extenses de terras utilizadas de forma comunal por vrios

    camponeses (para a caa, a pastagem e retira de lenhas) para torn-las

    propriedades de poucos e no avano sobre as pequenas unidades de

    produo agrcola, fatores que contriburam para transformar drstica e

    violentamente o antigo modo artesanal de produo. Com esta

    transformao, a terra de uso de um certo nmero de famlias tornou-se a

    terra de negcios, em propriedade de um nico proprietrio. A

    intensificao dessa mudana causou o rompimento da tradio baseada

    na relao servo-senhor.

    Na Europa, a transformao da terra em propriedade

    demorou vrios sculos para ocorrer. Longe de ser mais justa, a

    constituio da propriedade privada naquele continente esteve

  • 41

    relacionada industrializao e s transformaes nas relaes sociais,

    as quais mudaram a economia agrria tradicional para uma sociedade,

    cada vez mais, dominada social e economicamente pela aplicao de

    tcnicas e de novas formas capitalistas de produzir. Em resumo, tais

    mudanas destruram relaes de obrigaes costumeiras e compulsrias

    devidas por um servo a seu senhor, passando a predominar as relaes

    monetrias, o novo elemento mediador das relaes sociais, incluindo-se

    o acesso ou no terra.

    No Brasil, a Lei de Terras constitui em propriedade privada

    uma terra que pertencia, originalmente, ao Estado. A lei serviu para conter

    o acesso terra para alguns e para certific-la como propriedade privada

    para uma minoria. Por isto, este processo foi legal, mas ilegtimo.

    Na verdade, a Lei de Terras surgiu no instante da assinatura

    de um tratado com a Inglaterra, proibindo o trfico ultramarino de

    escravos, o que fez subir consideravelmente o valor imobilizado para

    adquirir mo-de-obra escrava no mercado interno.

    Apesar de ter havido o fim do trafico ultramarino de escravo,

    isto no significou o fim de suprimento de mo-de-obra escrava para a

    economia cafeeira, em ascenso, na regio do Vale do Paraba. Tal

    suprimento foi conseguido com o trfico inter-provincial, possvel graas

    ao declnio da empresa aucareira nordestina.

    Sobre esse perodo, Miriam L. M. Leite afirma: mais valioso

    do que a terra eram os escravos. Maria Isaura Pereira de Queiroz

    pondera que o valor venal era nulo antes do aparecimento do escravo e

    do proprietrio (apud MARTINS, 1996, p. 25). Martins conclui, tinha valor

    o bem sujeito a comrcio, coisa que com a terra ocorria apenas

    limitadamente (idem, ibidem).

    A partir desse perodo, alm do seu carter poltico, a posse

    da terra adquiriu tambm um carter ideolgico, ou seja, passou a

    generalizar-se a idia de que o acesso terra se consegue pela compra,

    ou, como se diz muito, mediante o suor do trabalho. Por meio da lei, a

  • 42

    maioria das possesses de terra deixou de ter, em tese, relao com a

    Coroa ou o Estado, passando a ser fruto de uma pretensa compra.

    Se, no antigo sistema, as terras no eram livres para todos,

    seu uso e posse estiveram subordinados Corte e ao sangue, com a Lei

    de Terras foi criada a propriedade privada da terra. Essa forma de

    aquisio subjugou os que no possuam dinheiro - escravos, libertos,

    agregados, filhos bastardos e imigrantes - ao trabalho como forma de

    adquirir a compra de terras.

    Porm, Jos de Souza Martins (1996), no livro O Cativeiro

    da Terra, defende a hiptese de que a terra privada pressupe a

    liberdade do escravo, ou seja, para transformar a terra livre em terra

    cativa a sociedade se viu obrigada a abrir mo do cativeiro de africanos.

    Somente a, quando mergulhamos fundo nas relaes sociais, que

    percebemos que a Lei de Terra foi um instrumento capaz de contribuir

    para transformar a terra livre em terra propriedade privada de um

    capitalista.

    A lei passou, ento, a regular a aquisio da terra por meio

    da compra, uma forma de conter o acesso da maioria da populao

    mesma. Segundo Martins, com a descoberta do ouro e o fim do sistema

    de cativeiro indgena, a nova etapa da economia colonial estaria apoiada

    no escravo negro, isto , no escravo-mercadoria que estimulava o

    comrcio martimo e os interesses comerciais dos mercadores

    metropolitanos, envolvidos no trfico de escravos africanos (MARTINS,

    1996, p. 121).

    A utilizao do escravo como um componente fundamental

    do sistema de produo colonial obrigava o fazendeiro a imobilizar uma

    certa quantia de capital no escravo, seja prprio ou emprestado a juro.

    Portanto, o uso do escravo como mercadoria-trabalho teve

    como conseqncia a subordinao da produo colonial ao capital

    mercantil, incrementando a rentabilidade do sistema comercial, tornando-

    o mais atraente aos olhos da classe detentora de capitais.

  • 43

    O fazendeiro-capitalista tambm esteve diretamente

    vinculado ao sistema mercantil. O fazendeiro no se personificou apenas

    nas relaes de produo no interior da fazenda, mas tambm nas

    relaes mantidas fora da fazenda, com os comissrios de caf, e mais

    tarde, j no final do sculo XIX, com os exportadores. A prpria fazenda

    significou o conjunto dos bens, a riqueza acumulada, principalmente os

    bens produzidos pelo trabalho e o trabalho personificado no escravo

    (MARTINS, 1996, p. 14-23).

    O contraponto da subordinao ao capital mercantil,

    representada na figura do escravo, foi transformar o escravo e no a

    fazenda em principal valor da economia colonial. Pode-se concluir, assim,

    que a subordinao ao capital mercantil dificultou a transformao

    imediata da terra de posse em propriedade privada da terra.

    A transformao da terra em propriedade privada, na rea

    nova de produo de caf, foi um processo que ganhou contornos mais

    definidos nas ltimas dcadas do sculo XIX e, principalmente, nas

    primeiras dcadas do sculo XX, momento em que a terra substituiu o

    escravo enquanto valor fundamental da economia.

    Esta substituio do valor fundamental da economia foi um

    processo que esteve diretamente ligado vinda de imigrantes europeus e

    ao fim do regime escravocrata. Contudo, a abundncia de terra no Brasil

    constituiu um impedimento para extrair do imigrante a sua fora de

    trabalho. O assunto foi resolvido, segundo Martins, na obra citada,

    quando a sociedade estimulou outra forma de cativeiro. No mais o

    cativeiro de africanos, mas o cativeiro da terra.

    Primeiramente submeteu-se o imigrante ao trabalho para um

    fazendeiro e, s posteriormente, o imigrante conseguiu a posse da terra

    ou ento a liberdade, para trabalhar para outro fazendeiro. A renovao

    da forma de cativeiro contou com a participao do Estado, s assim

    ocorreu a transio do valor-escravo para o valor-terra. O Estado atuou

    nas duas frentes para impulsionar esta transformao necessria do valor

  • 44

    fundamental. Em primeiro lugar, o Estado passou a arcar com os custos

    do transporte de imigrantes, o que antes era bancado pelo prprio

    fazendeiro. Em segundo lugar, o prprio Estado incumbiu-se de fazer da

    poltica de imigrao uma poltica de Estado.

    Assim, foi longo o processo pelo qual a terra passou a ser

    revestida de seu carter de propriedade privada. Em outras palavras, a

    Lei de Terras promoveu uma excluso to ilegtima quanto a provocada

    pelo regime de capitanias e sesmarias. A lei no resolveu os conflitos j

    existentes, que at foram ampliados, e adquiriu nova roupagem,

    transformou-se em conflitos envolvendo uma terra uma terra

    propriedade privada.

    1.3 - Vrios conflitos pela terra

    impossvel tratar das vrias formas de luta da populao

    para se livrar do sistema de dominao criado ou originado pela

    sistemtica de ocupao das terras na Amrica Brasileira. Contudo,

    algumas no devem deixar de ser mencionadas, mesmo no tendo o

    aprofundamento merecido.

    A convvio do colonizador com os habitantes das novas

    terras no foi pacfico, vrios foram os confrontos dos povos indgenas

    contra o invasor. Assim, como foram diversos os confrontos promovidos

    pelos negros organizados em Quilombos. O mais conhecido foi o

    Quilombo de Palmares/AL, mais outros se formaram em vrias partes do

    Brasil, atravessando praticamente toda a nossa histria.

    Houve, ainda, as revoltas provinciais: Cabanagem no Par

    (1835-1840), Praieira em Pernambuco (1848), Sabinada na Bahia (1837-

    1838), Balaiada no Maranho (1838-1841) e Farroupilha no Rio Grande

    do Sul (1835-1845).

    Em perodos mais recente, ocorreram as revoltas de

    Canudos, o Cangao e as Ligas Camponesas no Nordeste, Trombas e

  • 45

    Formoso no Centro-Oeste, Contestado e Porecatu na regio Sul, que

    tambm no podem ser descartadas. De modo geral, todos estes

    movimentos envolveram direta ou indiretamente a questo da terra.

    No final do sculo XIX, notadamente aps 1850, e durante

    todo o sculo XX, ocorreram com freqncia disputas polticas ligadas

    posse, ocupao e propriedade da terra, definida legalmente como

    propriedade privada. Essas disputas marcaram a transformao da terra

    de posse e uso em propriedade privada da terra, revelando os conflitos e

    as condies de trabalho e de vida do homem do campo no Brasil.

    Os movimentos de Quilombos, de Canudos e de Contestado

    so exemplos de manifestaes de resistncia na terra. Os dois ltimos

    sero tratados a seguir, em funo de ter ocorrido no perodo republicano,

    portanto mais prximo de ns, e por sua representatividade com relao

    disposio de seus membros em permanecer na terra.

    1. 4 - Movimentos de Canudos e Contestado

    Entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX, a

    economia mundial foi submetida a transformaes scio-econmicas. Tais

    transformaes tiveram reflexos no Brasil que passava pela crise do

    Regime Imperial.

    Junta-se a isto o agravamento do mandonismo local e a

    ascenso do coronelismo. Este conjunto de fatores representou tempos

    miserveis para as camadas pobres da populao que sofriam mais do

    que quaisquer outras as conseqncias dos conflitos constantes,

    caractersticas da estrutura scio-econmica brasileira tradicional.

    Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, as camadas

    subordinadas ofereciam resistncia a este estado de coisas.

    As reaes a este estado de coisas so em geral de tipo religioso: lderes sagrados surgem, cuja ao restauradora da ordem

  • 46

    perdida; sobrepondo-se aos chefes polticos locais, tem por misso pacificar e disciplinar zonas e regies, e mostram para os camponeses um comportamento protetor (QUEIROZ, 1976, p 28).

    Com a Proclamao da Repblica, a situao de misria e

    de espoliao das camadas pobres foi acentuada. Canudos e Contestado

    foram movimentos de reao situao de subalternidade das

    populaes camponesas, do ponto de vista de prestgio e de poder, e

    tiveram a guerra como desdobramento.

    Como Canudos, o movimento do Contestado pode ser inserido no tipo de movimento messinico. Ou seja, um movimento religioso que tem como base a crena em futuras catstrofes das quais s se salvaro os que forem adeptos do messias (TOTA, 1983, p 8-9). Esses movimentos foram, geralmente, explicados pelo

    conceito de messias, pois os pesquisadores procuram destacar a ligao

    de seus membros com a forte religiosidade se seus lderes. Assim, as

    interpretaes realizadas sobre Canudos e Contestado, que tm como

    eixo de anlise o conceito de messias, mascara o carter scio-poltico da

    luta.

    Uma outra interpretao sobre esses movimentos, a qual

    adotamos, foi postulada por Clovis Moura (2000). O autor contesta as

    interpretaes de Canudos que se baseiam no conceito de messianismo

    como eixo de anlise, pois tal conceito deriva da metodologia weberiana,

    atravs da qual os movimentos sociais e culturais so analisados no

    campo das idias, ficando no nvel das aparncias.

    Para Moura, anlises deste tipo desconsideram o nexo

    causal da luta dos populares de Canudos e seu contedo poltico, ou seja,

    no permitem verificar na luta dos participantes uma oposio ordem

    latifundirio-oligrquica, embora seus membros possam no ter plena

    conscincia disto (MOURA, 2000, p. 27).

  • 47

    1.4.1 - O movimento de Canudos

    O movimento de Canudos ocorreu entre 1893 e 1897, nos

    sertes da Bahia, tendo como lder Antnio Conselheiro. No arraial de

    Canudos, tambm chamada fazenda Canudos, os seguidores de

    Conselheiro, compostos na maior parte por camponeses e ex-escravos,

    fundaram uma organizao coletiva que passaram a chamar Belo Monte.

    A organizao de Canudos se ops submisso aos coronis, passando

    a ser considerada inimiga de guerra e sendo firmemente combatida por

    um total de quatro expedies militares do Exrcito.

    A amplitude do temor que o arraial de Canudos causou nos

    meios militares ficou evidente na fala de Soares, um militar que participou

    da ofensiva contra Canudos. Para ele, a destruio da organizao

    coletiva de Canudos constituiu uma questo de honra para as foras

    militares, principalmente aps a derrota da terceira expedio comandada

    pelo coronel Moreira Csar, fato que abalou o esprito do pblico

    (SOARES, 1902, p. 5-128).

    Com o intuito de conter tal abalo, foi mobilizada a quarta

    expedio militar contra a populao de Canudos e seu lder. O Ministro

    da Guerra, Francisco de Paula Argolo, foi o encarregado de organizar

    esta expedio, com o objetivo de exterminar Canudos. Foram

    convocados os seguintes corpos do Exrcito: regimento de artilharia de

    campanha, regimento de cavalaria, batalhes de infantaria e algumas

    guarnies em pontos remotos. A mobilizao desse grande contingente

    militar foi lenta devido s enormes distncias e aos deficientes meios de

    transporte do perodo.

    Segundo Soares, Canudos foi uma colossal povoao

    habitada por 30 ou 35 mil pessoas prontas para morrer pelo seu ideal.

    Os mais inverossmeis boatos fervilharam sobre Canudos, sua fortaleza e

    o nmero de fanticos. Os habitantes do arraial foram declarados inimigos

    do pas e no amanhecer de 5 de outubro de 1897 ocorreu a derrocada de

  • 48

    Canudos. Quatro sobreviventes escaparam entrincheirados entre os

    escombros fumegantes, que to pouco se entregaram, pelo contrrio,

    atacaram com fria para que se completasse o extermnio (SOARES,

    1902).

    O reprter do Jornal O Estado de So Paulo Euclides da

    Cunha fez a cobertura da guerra. Tempos depois (1901) ficou famoso por

    escrever Os Sertes, romance no qual interpreta a saga de Canudos.

    Depois de ter assistido ao massacre que eliminou a quase totalidade dos

    35 mil habitantes de Canudos o autor pode ter uma viso condescendente

    pa


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